segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"Agora que o clrão da luz se apaga", as crianças foram dormir o sono dos justos

Agora as crianças foram dormir. Graças a Deus, as cólicas de Thalita foram mais suaves hoje. Como é grande a vocação paterna. O Salmo de hoje (67) lembrava: "dos órfãos Ele é pai e das viúvas protetor; é assim o nosso Deus em sua santa habitação". Na mesma liturgia, São Paulo lembra que o mesmo Deus não nos deu um espírito de escravos, mas o Espírito que clama em nós "Abá, ó Pai!" Eis a verdadeira e pura oração, que brota de um coração puro...

Ester, ao clamar a Deus por seu povo, pedia chorando "vinde em socorro de minha orfandade" (Est 4,17)

Na paternidade, desempenhamos o papel que, por excelência e autoridade pertencem unicamente a Deus: "não chameis a ninguém de pai, porque um só é o Pai que está nos céus". É quase uma temeridade sermos chamados de pais. E é assim que nossos filhos aprendem a nos chamar.

Indigno dessa vocação, só uma maneira vejo a de encarar esse drama ontológico. Orar ao Pai. Reconhecer o Espírito que foi posto em nós, pela graça do Batismo e do Matrimônio. O Pai do céu nos outorga a capacidade de podermos absorver o que é unicamente dEle: as glórias e as penas do Pai. Por essa vocação, nossos filhos vão aprendendo que não são órfãos. Aprendem que uma pai, uma mãe, um Pai Eterno os ama. Uma vocação divina, dada a mim, a tantos de nós...

E ser pai não exige muito; na realidade exige tudo: um movimento descendente do corpo e da alma, até mesmo das nossas potências mais pueris, para mostrarmos aquilo que na sua simplicidade é de Deus.

Há pouco, lia para o meu filho (ele tem feito cada um de nós ler a Bíblia para ele todas as noites - é o Ofício de Vigílias dele) a passagem tão comovente dos lírios do campo e das aves do céu (Mt 6, 18 ss.). Fui trazendo ao meu coração a paternidade de Deus, que lembrando-se de seu Filho, a Sabedoria que é gerada por Ele desde toda a eternidade, constituiu essas imagens de sua imensa liberdade, na liberdade dos seres criados. O Filho, a Sabedoria, que brincava com elas desde o princípio, era  livre porque olhava para todos os bens com liberdade, de tal modo a jamais deixar que a possibilidade dos males do futuro viessem a tirar o olhar contemplativo sobre seu Pai.

Que grandiosidade a vocação de pai: lembrar aos nossos filhos de que foram feitos para a liberdade. Não são os condicionamentos do mundo que os constituirão. Mas uma paternidade cheia do olhar da paternidade de nosso Deus, o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tremo diante disso! Porque nem sempre meu olhar é esse olhar. Rogo a Deus que meu olhar aprenda no olhar para ele, e do cruzamento de olhares, nasça um olhar de liberdade em nossos filhos. E tendo os pais que têm possam apontar, como uma flecha apontada para o infinito alvo (lembrem-se da epectase), possam eles olharem para o Pai celeste com o olhar de Jesus. Essa é a hora em que diminuímos, e Ele cresce. Sim, como dizia Gibran, poeta libanês, "nossos filhos não são nossos filhos; são filhos do desejo da vida por si mesma".

Mas para além de minhas fraquezas, reafirmo minha serena certeza de quando falhar nessa pedagogia (que já é uma mistagogia), por causa de meu pecado, por causa de meu olhar nem sempre tão fixo em Cristo, o Pai celeste, que, em Cristo, atraiu tudo para si, ao ser levantado da terra, especialmente as crianças, não abandonará meus filhos, não abandonará nossas crianças, e será tudo neles.

Sim, porque o pedido de Ester foi escutado: Ele veio em socorro de nossa orfandade.

Termino a noite com as palavras de nossa música popular brasileira: "hoje eu quero paz de criança dormindo, quero o abandono de flores se abrindo para enfeitar a noite do meu bem", do Eterno Bem...

Boa e serena noite a todos!

domingo, 25 de outubro de 2009

Os noivos...

Acabamos de falar a noivos sobre Planejamento Familiar cristão. Sabemos como nosso mundo está comprometido com o politicamente correto e de como nossos jovens, mais, nossas crianças crescem aprendendo os valores do mundo, sem uma família, sem uma comunidade que lhes dê suporte humano.

Sabemos que falamos palavras que não agradam ao mundo, e até mesmo muitos cristãos se envergonham de falar (o que de per si é uma vergonha para o cristão). Sabemos que muitos jovens se irritam ao tratarmos de um assunto tão sagrado. Não sabemos quantos matrimônios ali serão válidos.

Temos a certeza serena de que nosso falar em Cristo é sempre loucura e é desprezado pelos que pensam como o mundo. Mais ainda, temos a esperança firme de Deus insufla seu amor perene naqueles que o buscam, e naqueles que Ele quer para si.

Lembro agora das palavras da música de José Acácio Santana, "Põe a semente na terra":

Toda semente é um anseio de frutificar / e todo fruto é uma forma da gente se dar.

Põe a semente na terra, não será em vão / não te preocupe a colheita, plantas para o irmão

Toda a palavra é um anseio de comunicar / e toda a fala é uma forma de a gente se dar.

Todo o tijolo é um anseio de edificar / e toda a obra é uma forma de a gente se dar.

sábado, 24 de outubro de 2009

E falando em epectase

Vejam esse comentário de São Gregório de Nissa à Vida de Moisés. É um comentário ao Evangelho de hoje (XXX Domingo Comum B - O cego Bartimeu, Mc 10,46-52), mas dá as noções do que seja a epectase cristã.

Um abraço a todos e Santo Domingo!

Dos escritos de São Gregório de Nissa, bispo.



«Logo ele recuperou a vista e seguiu Jesus pelo caminho»

[No Monte Sinai], Moisés disse ao Senhor: «Mostra-me a Tua glória». Deus respondeu-lhe: «Farei passar diante de ti toda a Minha bondade (...), mas tu não poderás ver a Minha face» (Ex 33, 18ss.).] Experimentar este desejo parece-me porvir de uma alma animada pelo amor à beleza essencial, uma alma a quem a esperança não pára de conduzir da beleza que já viu para aquela que está para além. [...] Este pedido audacioso, que ultrapassa os limites do desejo, almeja pela beleza que está para além do espelho, do reflexo, para a ver face a face. A voz divina satisfaz o pedido, recusando-o simultaneamente [...]: a magnanimidade de Deus concede-lhe a satisfação do desejo, mas, ao mesmo tempo, não lhe promete repouso nem saciedade. [...] É nisto que consiste a verdadeira visão de Deus: aquele que para Ele eleva os olhos nunca mais cessa de O desejar. É por isso que Ele diz: «não poderás ver a Minha face». [...]


O Senhor que tinha respondido a Moisés exprime-se da mesma forma aos Seus discípulos, clarificando o sentido desta simbologia. Ele diz «Se alguém quiser vir após Mim», (Lc 9, 23) e não: «Se alguém quiser ir à Minha frente». Ao que Lhe faz um pedido a respeito da vida eterna, propõe o mesmo: «Vem e segue-Me» (Lc 18, 22). Ora, aquele que segue caminha virado para as costas daquele que o guia. Portanto, o ensinamento que Moisés recebe sobre a maneira pela qual é possível ver a Deus é este: ver a Deus é segui-Lo para onde Ele conduzir. [...]


Com efeito, aquele que não conhece o caminho não pode viajar em segurança se não seguir o guia. Este precede-o, mostrando-lhe o caminho; por isso, quem o segue não se desviará do caminho se se mantiver virado para as costas daquele que o conduz. Com efeito, se se deixar ir ao lado ou de frente para o guia tomará uma via diferente da indicada. Por isso, Deus diz àquele a quem conduz: «Não poderás ver a Minha face», o que significa: «não olhes de frente o teu guia», porque, se assim fizesses, correrias num sentido que Lhe é contrário. [...] Como vês, é importante aprender a seguir a Deus: para aquele que assim O segue nenhuma contradição do mal se poderá opor ao seu caminhar.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"Virão a ti nações de longe"

“Resplenderás, qual luz brilhante, até os extremos desta terra; virão a ti nações de longe, dos lugares mais distantes, invocando o santo nome, trazendo dons ao Rei do céu.” (Tb 13,13)

Nesta profecia, podemos nos encantar, nos alegrar, jubilar com intenso gáudio na presença de Deus. Te Deum, laudámus. Sim, porque “há mais alegria no céu por um pecador que se converte do que por noventa e nove que não precisam de conversão”. Anteontem, perto do fim da tarde a Secretaria de Imprensa do Vaticano lançou em SMS, para muitos jornalistas credenciados, o que o Santo Padre já havia autorizado publicar do que ele está realizando: a acolhida, não de um, mas de cerca de quinhentos mil fiéis cristãos, que tendo nascido e crescido dentro do anglicanismo, estavam batendo à porta da Igreja Católica Apostólica Romana, e esta porta acaba de ser aberta. Como os senhores viram na mensagem que enviei antes, a Congregação para a Doutrina da Fé está encarregada de esclarecer toda a situação, por enquanto, mas em poucos dias o Santo Padre publicará uma Carta Apostólica, oficializando a entrada desse universo todo específico dos Anglicanos Católicos. Não quero entrar nos aspectos da questão particular em si, que envolve, por um lado, as disputas antigas entre a Coroa Britânica e a Igreja Católica e os recentes escândalos e aberrações doutrinais, hierárquicos e morais que vem acontecendo por lá, e, por outro, os tesouros da Tradição que foram resguardados por muitos fiéis dessas Igrejas. Quero contemplar esses irmãos, quero me deter na beleza da Igreja, Aquela Igreja, sonhada por Cristo, é verdade que ainda por ver plenamente esse sonho se realizar, mas, com certeza, dando imagens, sinais, de que Ele nunca a abandona.

A passagem bíblica que citei acima é encontrada no livro de Tobias. É um ketuvin, uma novela edificante, escrita em grego, nos tempos da diáspora de Israel, cerca de 200 aC. Está entre os livros assim chamados deuterocanônicos das Sagradas Escrituras. A história, os senhores devem conhecê-la, fala da família de um exilado Tobit, homem piedoso. Sofria com a deportação de Israel e recolhia cada cadáver que encontrava para sepulta-lo, mesmo que isso lhe custasse a vida. Detalhes à parte, em função de uma dessas ocasiões, esse homem fica cego e perde seu sustento físico e se torna escândalo até para a própria esposa. O Arcanjo Rafael vem em seu socorro, mas propõe que seu filho Tobias vá ao encontro de uma distante parente sua, Sara, que já havia casado sete vezes, mas todas as vezes que o casamento estava para se consumar, um demônio, não sabemos muitas informações sobre ele, senão o seu nome, Asmodeu (Ash + modé = o destruidor, do hebraico), vinha ao seu leito e matava o marido. Rafael conduz Tobias a Sara. E, que belo, na noite nupcial, eles oram instantemente a Deus suplicando que os males daquela família fossem curados. O Arcanjo Rafael eleva a Deus essas preces e a relação entre eles se consuma, constituindo assim uma família. Depois, ele retorna à casa de seu pai, com o óleo extraído de um peixe, trazido das terras de Ragüel, pai de Sara, e o derrama em seus olhos, que voltam a enxergar. É depois de ver esses sinais e acontecimentos da grandeza de Deus que Tobias eleva a Deus o cântico cujo versículo pus logo no início e que continua assim:

"- Em ti se alegrarão as gerações das gerações e o nome da Eleita durará por todo o sempre.

- Então, te alegrarás pelos filhos dos teus justos, todos unidos, bendizendo ao Senhor, o Rei eterno.
- Haverão de ser ditosos todos quantos que te amam, encontrando em tua paz sua grande alegria."

De fato, Sara representa a Israel sempre atacada pelas forças inimigas, ao tentar fazer alianças com os povos vizinhos, em nome da força que esperava ter, a despeito do poder de seu Deus. Exilada, já não tinha mais em quem confiar: nem em Deus, em quem já não confiava, nem nas potências. Tobit era o homem que esperava em Deus, dir-se-ia um justo, mas havia de purificar sua esperança, e, mais ainda, ser ele mesmo sinal de que Deus age para além de nossas expectativas. Na realidade o Cântico de Tobias (Tb 13, 13-15, aqui citado) é um reconhecimento de que aquele Israel humilhado era justamente o material de que Deus iria se utilizar para trazer todos os povos à salvação, que se dá unicamente na esperança no Deus vivo e verdadeiro. A visão de Tobias era semelhante a que o Profeta (Is 63) já havia também tido: “as nações caminharão à tua luz, e os reis ao brilho da tua aurora. Levanta os olhos e olha à tua volta. De longe, os teus filhos, que vem perto de ti.” Muito anteriormente, Balaão, um mago, que havia sido enviado para amaldiçoar os filhos de Israel conduzidos por Moisés, ao ver aquela multidão de gente morando em tendas, no deserto, crendo apenas no Deus Altíssimo, não conseguiu dizer uma única palavra de maldição; só conseguiu abençoar: "Oráculo de Balaão, filho de Beor, oráculo do homem que tem os olhos abertos; oráculo daquele que ouve as palavras de Deus, que vê o que o poderoso lhe faz ver, que cai, e seus olhos se abrem. Como são belas as tuas tendas, ó Jacó, e as tuas moradas, ó Israel! Elas se estendem como vales, como jardins ao longo de um rio, como aloés que o Senhor plantou, como cedro junto das águas. A água transborda de seus cântaros, e sua semente é ricamente regada. Seu rei é mais poderoso do que Agag, seu reino está em ascensão" (Nm 5, 3-7).

Todas as profecias sobre Israel se consumam em Cristo e na Igreja. NEle, “tudo está consumado”. NEle, as profecias encontram a realidade. Todas aquelas visões de uma multidão no deserto, vivendo de fé, são visões sobre o povo que vive “da fé no Filho de Deus que o amou e por ele se entregou”. É assim que caminhamos no mundo. Não é à toa que Jesus, o Bom, o Belo, o Único Pastor, usa com tanta eloqüência a imagem da ovelha perdida e reencontrada, a do doente que é curado, a do pecador que se converte. Não é à toa que, Ele mesmo, ressuscita mortos, cura endemoninhados, chicoteia os perversos. Jesus diz ainda de ser a verdadeira Videira, que faz permanecer aqueles que permanecem nEle. Ao ressuscitar dos mortos, transmite o seu Espírito, o Espírito que, por Ele, procede do Pai e impele homens de toda parte a busca-lO, através do testemunho da Igreja. Nela, renascem os filhos desta luz, a luz da fé, para que, nos sacramentos, na oração, na vivência evangélica, morram para si mesmos e sejam um só corpo vivo com Ele, o Corpo Místico de Cristo, a Igreja.

Apesar de tantas contradições que ora experimentamos aqui, dentro de sua estrutura humana, de suas idiossincrasias, a Igreja é realidade que brota do lado de Cristo, em favor do homem, de cada homem, do homem uno, reconciliado, pacificado no amor. Fala-se tanto de ecumenismo, de diálogo, de uma série de ações a serem feitas aqui e acolá e se esquece tanto que, assim como a Igreja é de Deus, o ecumenismo é também uma ação de Deus. A Igreja, em todas a sua vivência, também na ecumênica, é como uma rosa, uma flor que desabrocha dia após dia, segundo o tempo daquele para quem não tempo, e que contém todo o tempo. Não sou eu, não somos nós que iremos fazer o botão florescer a fim da força. A força, tantas vezes usada, despetalará o botão e há de comprometer sua beleza para os que estão vendo-a de fora.

Tantas vezes isso aconteceu. Tantas vezes isso acontece. O Santo Padre, Bento XVI, no início de seu pontificado, recordo como hoje, disse: “meu programa de governo é o de estar à escuta, fazendo a vontade dAquele que não fez a sua vontade”. Hoje, encontrando cenas como essa, o retorno de meio milhão de anglicanos, não posso deixar de lembrar dessas palavras e comover-me profundamente. Se por um lado, vamos continuar precisando aprender a nos acolher uns aos outros aqui dentro, esquecendo todos os rótulos que possamos nos dar uns aos outros, seja de progressistas, seja de tradicionalistas, triunfalistas, e todos os “istas”, por outro, como diz o Salmo 132, “como é bom, como é suave, ver os irmãos vivendo juntos, bem unidos”. Sim, é bom ver que os povos que outrora se foram agora querem professar conosco aquela fé que os apóstolos nos deixaram. É bom ver, exatamente com os elementos típicos de como a Tradição os formou ao longo dos séculos, deixando-os intactos, que o altar em torno do qual se reúnem é o mesmo que o nosso, o sacrifício que lhes redime a eles, é o mesmo que nos redime também.

Mas a beleza do gesto de Bento XVI está justamente no fato de “ouvi-lO”, de fazer a vontade de um Outro. Pastor para todos, sinal de unidade para os fiéis cristãos, Bento XVI assume o papel de quem é o administrador prudente, a quem o Senhor confiou sua família, para lhes dar o pão a seu tempo, conforme lembra o Evangelho de hoje (Lc 12,42). Não foi sua erudição acadêmica, não foram seus títulos honoris causa, não foram suas honras e cursos, palestras ou livros, que assim o levaram a fazer. Lembro-me de Cristo dizendo a Pedro: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um homem que te revelou isso, mas o meu Pai que está nos céus”. Tantos eruditos, tantos “homens de igreja” quiseram fazer o ecumenismo a seu modo, e a única coisa que conseguiram fazer foi levar seu povo à apostasia, a abandonar a fé pura e simples no Cristo. Lembram-se do caso dos lefebvrianos, acontecido no começo do ano? A quase totalidade do Colégio Universal dos Bispos quis devorá-lo vivo por admiti-los à fé. No dia 10 de março, Sua Santidade deu o devido puxão de orelha. Não tenho nada com eles, não fazem meu estilo, não sou da escola deles, mas de uma coisa não posso esquecer, como o Papa não esqueceu: eles são meus irmãos, filhos de Deus. Se estavam excomungados, era necessário que buscá-los, ouvi-los, falar-lhes, fazer todo o esforço possível para que voltassem a comungar conosco, se conservam a fé pura e simples do Evangelho. Lembrem do filho que foge de casa, do filho pródigo. Nesta semana, vimos casos de três menores aqui no Brasil que fugiram de casa por motivos os mais diversos. Precisavam ser encontrados, acolhidos, amados, queridos.

Lembram da Summorum Pontificum? Já pude ver, ouvir, ler, meditar e me divertir com as mais diversas interpretações da atitude do Santo Padre em escrever o Motu Proprio que autoriza qualquer sacerdote celebrar a Santa Missa pelo Missal de 1962, editado pelo Bv. João XXIII, após revisão do Concílio de Trento (séc. XVI) e a mais antiga elaboração por São Gregório Magno (séc. VI), sem qualquer outra autorização prévia. Confesso que tenho minhas preferências pelo Missal de 1970, a forma ordinária do Rito Latino, publicado após o Concílio Vaticano II, pelo Servo de Deus Paulo VI, usado devidamente, conforme a simbologia para a qual as rubricas apontam. Na verdade, apontam porque bebem das fontes dos Missais e Sacramentários antigos. Se por um lado, o Missal de 1962 traz de volta significantes eloqüentes da adoração, do sacerdócio, do sacrifício (assim também acontece com o Missal Anglicano antigo, que continuará sendo usado pelos nossos irmãos recém-acolhidos), por outro, a Palavra de Deus é lida e meditada sistematicamente nos textos atuais, há um acolhimento de elementos da Tradição Oriental e abre-se possibilidade para concelebrações e outros pontos que são uma vitória. Mas não é menos verdade que a Divina Liturgia de São João Crisóstomo valoriza os elementos místicos, uma simbologia forte, de sons, imagens, perfumes, palavras. Lembram aquela liturgia solene do Apocalipse. Ao publicar o Motu proprio, quis dar um passo atrás, com aqueles que não caminharam adiante, e questionou os que foram adiante por não prestarem atenção no porquê aqueles irmãos estavam encurralados. Foi isso que irritou o clero e preocupou a outros: ele foi pastor de verdade.

E ao dar um passo atrás, embora 90% do clero católico romano ter se irritado ou preocupado com a atitude do Papa, que não retira nada do que se tem hoje, ao contrário, só acrescenta, o Papa recebeu elogios de alguém inesperado: o Patriarca Ortodoxo Kiril I, de Moscou. Até aqui, Moscou nunca havia se pronunciado tão fortemente em favor de Roma como nesse momento. E, apesar também de suas idiossincrasias, que não são fáceis, intuo um motivo: o Papa não está dialogando apenas com as pessoas, especialmente com os cristãos, ao redor do espaço, mas também ao longo do tempo. Gilbert K. Chesterton, na Ortodoxia, obra-prima de sua filosofia contemporânea, lembra de que a Tradição é a única forma de sustentar uma pretensa democracia. E sabem por quê? Porque só ela escuta no tempo e no espaço. Os modernistas gostam de ouvir só o que é de hoje, ouvem a todos, desde que seja hoje; os outros estão mortos. Será isso uma visão do que Jesus diz a interlocutores de outrora: “vossos pais mataram os profetas” e “andais sobre túmulos”? Será essa a medida da arrogância de nossos tempos? Será tão grande a soberba de achar que nosso tempo tem tantos recursos que já não precisam do que os tempos de outrora nos já disseram?

Pois bem a Ortodoxia Grega e Russa se aproximam hoje ainda mais de Roma por causa desse olhar saudoso, sobre as fontes do cristianismo. É impressionante quanto o mundo islâmico, em seus representantes mais relevantes admira igualmente essa genuinidade dos gestos de Bento XVI. Quando de sua visita à Jordânia, o príncipe daquele país fez menção a esses avanços ao longo do tempo e do espaço. Lembram-se de quando o Papa esteve na Alemanha, na Universidade de Regensburg, em Ratisbona, e, sem medo de imprensa nenhuma falou de fé e razão? A imprensa jogou no ventilador as preciosas palavras de Bento XVI, semeou o joio e fez o mundo islâmico se irar contra o Ocidente, porque, segundo ela, o Papa tinha dito que os muçulmanos eram irracionais porque faziam guerra em nome da fé. Não havia sido nada disso; muito mais: ele lembrou de que no século XIV um monarca cristão intelectual, Manuel, o Paleólogo, dialogava com um muçulmano (comum naquela época!) dizendo que a razão estava a favor de que a violência jamais se justifica com a fé. Mas, mal que veio para bem, o Papa se reuiniu com 138 intelectuais islâmicos, entre eles o príncipe da Jordânia, para levar esse diálogo adiante. Em breve, Bento XVI irá a mais uma sinagoga, esta em Roma, sentir com os judeus os anseios pela vinda do Messias. Eles não o viram, mas muitos deles ainda querem vê-lo (como os gregos de outrora, que pediram a São Filipe: “queremos ver Jesus”, os judeus querem ver o Messias), embora o Papa coma e beba o seu Corpo e o seu Sangue todos os dias. “Virão a ti nações de longe...” Como disse o próprio Papa Bento XVI, na Catedral da Sé, em maio de 2007: "o cristianismo cresce por atração, não por proselitismo".

Quão belo é ler Olivier Clément, teólogo ortodoxo do século XX falando das fontes do cristianismo (Fontes, Ed. Subiaco, Juiz de Fora), da catequese, da teologia mística dos primeiros oito séculos do cristianismo, onde éramos, sim, minoria, mas não estávamos nem um pouco preocupados com isso. Apenas era necessário anunciar o Evangelho sempre, a toda criatura, transparecê-lo em nós por inteiro, para que se despertassem as consciências de que “aquela Beleza sempre Antiga e tão Nova” nos fala no hoje, no agora de nosso ser. Era um cristianismo despretensioso, sem estratégias, apesar de nunca fugir da mística, estratégia de buscar a Deus; sem militância, apesar de nunca negar a fé e até o sangue se assim lhe fosse pedido. Ali, todos éramos um. Um fato como esse acabou por atrair muita gente. Foi quando enfiamos o pé numa ideologia chamada “agostinismo político”, ou seja, a idéia de que todo ser humano tinha necessariamente de ser cristão, que se perdeu o rumo, Ocidente já era incapaz de dialogar com Oriente, mística e esoterismo eram postos no mesmo saco, o canto e a arte sacra deram lugar a degringolações litúrgicas, e o próprio Ocidente começou a não mais se conter, aparecendo reforma luterana aqui, calvinista ali, anglicana acolá. Depois vieram outras ideologias, e do século XX para cá, o fracasso do agostinismo político deu lugar a duas possibilidades: o retorno a Deus ou a entrega às ideologias do mundo, mesmo que subjacentes em discretos e pequenos gestos, que dessacralizam a vida e o cristianismo. Como nunca, a vida é desvalorizada com palavras que dizem o contrário. E isso acontece justo no momento em que o cristianismo sofre o mesmo. Olhemos para a cruz! Lá está Deus; lá está o homem. “Eis o homem”, diz Pilatos. “Na verdade, este homem era o Filho de Deus”, diz o centurião, o último dos subordinados de Pilatos. Lá, essas duas realidades se encontram.

Nunca vivi naquele tempo, mas a Catequese de nossos Santos Patriarcas nos dão um gosto de uma saudade de algo que ainda não vimos. Porque esses homens experimentavam Deus em espírito e verdade. Sonho, rezo, opero para que em mim Deus seja verdade. Talvez esteja longe disso, mas estou a caminho. Sonho, rezo, opero para que nossa Igreja continue a escancarar ainda mais a porta para Cristo, parafraseando o Servo de Deus João Paulo II, também no seu discurso de início de pontificado, nos idos 1978, de tal modo a acomodar em si todas essas realidades, pessoas e universos. Para essa fala, São Bento usa da palavra do Salmo 118: “dilatar o coração”. Afinal, o que é a fé, senão a possibilidade de conciliar o inconciliável? Se somos homens de fé, deixemos que ela aja em nós, para que todas as coisas em Cristo sejam recapituladas, a começar de nós. Não seria isso que o gesto profético do Bv. João XXIII ao abrir o Concílio Vaticano II quis dizer, quando convocava todos os cristãos, a começar pelos bispos conciliares, à conversão? “Peçamos a Deus a graça da conversão!”

Com eles, com nossos irmãos anglicanos-católicos, possamos nos converter, possamos admirar a ação de nosso Deus que manifesta sinais maravilhosos em sua Igreja, mostrando que ela não está à deriva, apesar de tantas vezes termos motivos humanos de pensar o contrário. A presença do Espírito Santo garante a sua força renovadora em seus dons e primícias.

Com Tobias, continuo a dizer: “Ó minh'alma, vem, bendize ao Senhor, o grande Rei, pois será reconstruída sua casa em Sião, que para sempre há de ficar pelos séculos, sem fim” (Tb 13, 16). Amém!
Emerson Sarmento Gonçalves