segunda-feira, 31 de maio de 2010

A fé de Justino - fé católica, apostólica, ... e mártir

Meus caros, é fácil professar a fé em tempos de paz. Rezamos o Credo, batizamos nosssos filhos, alguns se batizam adultos. Mas, veja, no relato impressionante das Atas do Martírio de São Justino como é que ele e seus companheiros professaram a fé. Hoje, fazemo-lo diante de nossos padres, diáconos ou bispo. Vejam diante de quem e diante de que questões o Santo Mártir se põe com toda a clareza e pureza da fé católica e apostólica. Somente assim lembramos que nossa profissão de fé aponta para o martírio, porque aponta para o alto. Jamais esqueçamos... Pensemos nisso sempre, especialmente quando rezarmos o Credo.



Aqueles homens santos foram presos e levados ao prefeito de Roma, chamado Rústico. Estando eles diante do tribunal, o prefeito Rústico disse a Justino: «Primeiramente, manifesta a tua fé nos deuses e obedece aos imperadores». Justino respondeu: «Não podemos ser acusados nem presos por obedecer aos mandamentos de Jesus Cristo, nosso Salvador».

Rústico perguntou: «Que doutrinas professas?». Justino disse: «Procurei conhecer todas as doutrinas, mas acabei por abraçar a doutrina verdadeira dos cristãos, embora ela não agrade àqueles que vivem no erro».

O prefeito Rústico inquiriu: «Que verdade é essa?». Justino explicou: «Adoramos o Deus dos cristãos, a quem consideramos como o único criador, desde o princípio, e artífice de toda a criação, das coisas visíveis e invisíveis; e adoramos o Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, de quem foi anunciado pelos Profetas que viria ao gênero humano como mensageiro da salvação e mestre da boa doutrina. E eu, porque sou homem e nada mais, considero insignificante tudo o que digo para exprimir a sua divindade infinita, mas reconheço o valor das profecias, que previamente anunciaram Aquele que afirmei ser o Filho de Deus. Sei que eram inspirados por Deus os Profetas que vaticinaram a sua vinda para o meio dos homens».

Rústico perguntou: «Portanto, tu és cristão?». Justino confirmou: «Sim, sou cristão».

O prefeito disse a Justino: «Ouve, tu que és tido por sábio e julgas conhecer a verdadeira doutrina: se fores flagelado e decapitado estás convencido de que subirás ao Céu?». Justino respondeu: «Espero entrar naquela morada, se tiver de sofrer o que dizes, pois sei que a todos os que viverem santamente lhes está reservada a recompensa de Deus até ao fim dos séculos».

O prefeito Rústico perguntou: «Então, tu supões que hás-de subir ao Céu, para receber algum prêmio em retribuição?». Justino disse: «Não suponho, sei-o com toda a certeza».

O prefeito Rústico retorquiu: «Bem, deixemos isso e vamos à questão de que se trata, à qual não podemos fugir e é urgente. Aproximai-vos e todos juntos sacrificai aos deuses». Justino respondeu-lhe: «Não há ninguém que, sem perder a razão, abandone a piedade para cair na impiedade».

O prefeito Rústico continuou: «Se não fizerdes o que vos é mandado, sereis torturados sem compaixão». Justino disse: «Desejamos e esperamos chegar à salvação através dos tormentos que sofremos por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo. O sofrimento garante-nos a salvação e dá-nos confiança perante o tribunal de nosso Senhor e Salvador, que é universal e mais terrível que o teu».

E os outros mártires disseram o mesmo: «Faz o que quiseres; porque nós somos cristãos e não sacrificamos aos ídolos».

O prefeito Rústico pronunciou então a sentença, dizendo: «Os que não quiseram sacrificar aos deuses e obedecer à ordem do imperador, sejam flagelados e conduzidos ao suplício, segundo as leis, para sofrerem a pena capital». Glorificando a Deus, os santos mártires saíram para o lugar do costume; e ali foram decapitados e consumaram o seu martírio, dando testemunho da fé no Salvador.


Estamos mesmo dispostos a professar esta fé? Estamos mesmo decididos a batizar, educar e criar nossos filhos nela?

Feliz Semana!

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Quando vos sentirdes tristes, quando vos ofenderem, ...

"Contemplai com mais frequência as estrelas. Quando carregais um peso na alma, observai as estrelas ou o azul do céu. Quando vos sentirdes tristes, quando vos ofenderem, ... entretei-vos ... com o céu. Assim vossa alma encontrará descanso".

Foi com essas palavras comoventes de Pavel A. Florenskij, escritor russo, matemático, filósofo e sacerdote, no tempo das gulag de Stálin, que o Papa Bento XVI concluiu a oração da Regina Caeli de ontem, Domingo da Ascenção do Senhor. O Senhor, aquele que nos abriu as portas da eternidade feliz, elevou a nossa natureza humilde a seu eterno plano de amor, Ele abriu o céu, encheu de eternidade nosso ser.

Já devo ter comentado aqui: "não vos alegreis porque fazeis muitos milagres, mas porque vossos nomes estão escritos nos céus". Santa Teresinha, em seus arroubos de infância lembra em sua "História de uma Alma" do dia em que, ainda criança, viu uma conjunção de estrelas no céu, em forma de um T. E disse ela a seu pai: "Papai, meu nome está lá no céu". Quanta beleza, quanta pureza de coração, quanta abertura de alma!!!

É, de fato, a percepção de que nosso implacável tempo não tem a última palavra sobre as coisas que nos elevará dele e far-nos-á perceber que não somos deste mundo, mas do Pai. No tópico abaixo, lembro da oração sacerdotal de Jesus. Pois bem, a subida de Jesus ao céu, o desaparecimento dos olhos de seus discípulos configura a nova forma de estar conosco: nesse desejo sublime de ser como as estrelas, numa visão poética, de estar abraçados pelo céu, pelo próprio Deus. E assim o é, pois "Ele continua a interceder pela humanidade e junto Pai é nosso eterno intercessor" (cf. Prefácio de Páscoa). E mais, é nos doando a potência de seu Espírito Santo, que realiza em nós tudo aquilo que realiza no seio do Pai.

As palavras de Florenskij são realmente comoventes porque esquecemos de olhar para essas realidades. Quando olhamos para o céu, ou para qualquer outra realidade, fazemo-lo, ou desatenciosamente, ou no sentido de esquadrinhar causas, movimentos, efeitos, equações, comportamentos, etc. Isso tudo também é importante. Isso oferece tantas possibilidades. Mas, meus caros, sinto realmente uma dor muito grande em termos perdido essa dimensão, essa de que a realidade pode nos apresentar surpresas grandiosas e, mais do que isso, revelar-nos, como lembrava o carteiro, de Pablo Neruda (O Carteiro e o Poeta), que todas elas são metáforas de algo ainda maior. Perceber essas realidades nos levam a encontrar nosso verdadeiro destino, senão a tocá-lo em sua totalidade, mas ao menos vislumbrá-lo.

Nosso Senhor nos promete: "vossa tristeza se transformará em alegria". Vários dos Santos Padres, especialmente os do deserto, lembram que a tristeza é uma porta escancarada para os demônios mais diversos. Certamente, a tristeza marcará nossa vida, como numa gulag, presenciada por Florenskij, como na morte de um ente querido, na doença, na perseguição, no ódio que contra nós é alimentado. Porém, a alegria que Jesus promete não é uma alegria como a deste mundo; é algo ainda maior. Muitas vezes, ela aparecerá somente no íntimo do coração, e talvez ninguém venha a percebê-la exteriormente. Os frutos a manifestarão. A Bem-Aventurada Teresa de Calcutá revelou as centenas de vezes que se dispôs ao serviço do Senhor, especialmente nas crianças abandonadas da Índia, carregando em si o peso de que tudo parecia sem esperança, tudo era uma treva. E, no entando, sua vida brilhou como luz.

Assim, o texto citado pelo Santo Padre desperta neste que vos dirige a palavra uma nostalgia do céu. Confesso que muito me comove porque esse sentimento revela exatamente o que sentimos. Num outro local, encontrei uma outra frase impactante: " O insuportável não é a dor, mas a falta de sentido da dor, mais ainda, a dor da falta de sentido" (Oswaldo Giacóia Junior, filósofo). Quantos de nós não sentimos essa última dor. No entanto, essa última (ela é mesmo a última de todas, a pior de todas) dor foi assumida por Deus. O seu Sentido assumiu a falta de sentido. Na Cruz, na Sepultura, o Sentido entrou no universo do absurdo. O absurdo foi habitado pelo Sentido.

Se nós, homens do século XXI, somos constantemente atribulados pelo absurdo, lembremo-nos do Mistério Pascal. Quando o absurdo foi habitado pelo Sentido, aquele perdeu o seu caráter, e o Sentido apontou para onde nunca havia deixado de apontar. A epectase é justamente esse fenômeno que acontece primeiramente no Cristo, depois naqueles que com ele ressuscitam, e em cada coração que se deixa inserir nesse Mistério que nos envolve. A Flecha que se lança para o alto nos lembra no Sl 67, tão cantado nesses dias (v. 19): "subindo nas alturas levastes os cativos".

Cativos éramos nós quando incapazes de olhar para as alturas e só víamos a opacidade ou a utilidade. Agora, as alturas nos foram dadas. Não apenas sentimentos elevados nos foram dados, mas a Realidade mais sublime nos foi dada. Que fizemos com ela?

Que nossos corações sejam tocados por ela e possam viver nessa constante tensão para o alto, embora certamente ocupados com muitas coisas desta terra. "Assim, a vossa alma encontrará descanso". Se nos falta o Espírito, ou se Ele se esconde em nós, invoquemo-lo; só Ele nos revelará a grandeza de todas essas coisas. Se ainda não descobrimos o grandioso valor de nossa existência nesse mundo, urge correr ao encontro dessas realidade, valendo à pena, parar um minuto que seja, interromper o ritmo secular, para respirarmos esse ar de eternidade.

Sim, cada acontecimento de nossa história não está largado no vazio. Eles estão cheios de valor. Como diz a antífona de entrada da Solenidade próxima de Pentecostes: "o Espírito do Senhor encheu a terra inteira, Aleluia!"

Um abraço, em Xto e Feliz Semana!

"Pai, pelos meus te peço..."

Estamos para encerrar o Tempo Pascal e não poderia deixar de escrever agora, para que o final desses 50 dias não passasse em branco. A todos nós, é muito recomendável, nestes dias, ler o discurso que Jesus realiza na última Ceia, especialmente o capítulo 17 inteiro do Evangelho de João. Será leitura do Evangelho diariamente na semana que vem. Também o Santo Padre se debruçou com maestria sobre esse texto na Missa da Última Quinta-feira Santa, in Coena Domini, lembrando do grande benefício da Páscoa: o de que todos conheçam a Deus. Está em:  http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/homilies/2010/documents/hf_ben-xvi_hom_20100401_coena-domini_po.html , cuja leitura recomendo vivamente.

Nesse capítulo, o evangelista enxerga Jesus no contexto de sua despedida, depois de ter falado de seu desaparecimento, agora, orando ao Pai em favor dos que ficam. Nesse texto, a comunidade dos discípulos (Igreja, semente de um mundo renovado) é sentida ser o sonho profundo de Deus, no seu diálogo eterno, diálogo em que os dialogantes estão profundamente interpenetrados. É aí que a Igreja (nós) deve encontrar o seu Princípio, sua característica, sua identidade. Aliás, nessa ocasião, Jesus, ao “elevar o olhar para os céus” (cf. v.1), está realizando o mesmo movimento que o evangelista, no Prólogo (cap. 1), associa ao Verbo de Deus: “No Princípio, era o Verbo; e o Verbo estava voltado para Deus”. Esse movimento é o de Jesus, o Verbo na carne. Várias vezes, no Evangelho, Jesus se encontra nessa perspectiva: a de olhar, em tudo, para o Pai.



Entretanto, o olhar para o Pai não é, na pessoa do Filho, fonte de um certo essenismo, esquecido das realidades presentes. Pelo contrário, aí está justamente a razão de olhar com profunda compaixão (ou seja, fazendo em si a memória dos sofrimentos do outro) para todos os dramas humanos. “Rogo-vos pelos que me deste” ou “Eles são teus” são expressões que nos lembram de que, nesse contexto da Páscoa de Jesus, fomos declarados filhos de Deus. Esta é a verdade sobre nós (“consagra-os na verdade”, lembram?). De fato, se não fosse para nos envolver pela gratuidade de nosso Deus, gratuidade esquecida, esquecimento que é causa de nosso drama, de nada nos adiantaria todo esse “investimento” de Deus, em nossa carne, onde um de nós, o mais inocente, o mais verdadeiro, o mais pleno, é julgado injustamente e assassinado de maneira cruenta.


Porém, as estruturas do mundo, ministras do desespero, polarizam nossa atenção para a condição oposta. Só para ilustrar: estou acompanhando um caso de uma família que se degladia por causa de bens. Muitos de nós passamos por isso, e sabemos como é doloroso. A lógica de mercado e de consumo que impregna nossos poros assim o faz. E talvez não seja muito honesto de nossa parte dizer que jamais nos envolveríamos com isso. Há uma sede de possuir muito grande... E não só de possuir bens, mas pessoas, sentimentos, situações...


Por que será? Onde está nossa esperança? Certa feita, há uns seis anos, passava numa livraria e lia algumas páginas dos livros de Lya Luft, escritora que fez muito sucesso na Bienal do Livro de 2003. Em um deles, “Perdas e Ganhos”, a autora lembrava que a morte não nos persegue, mas nos espera. E é justamente a perspectiva da morte que oferece a possibilidade de se valorizar a vida, de amar sem perder tempo, de ser honesto sem perder tempo, de valorizar o outro e ser feliz com ele, hoje, sem perder tempo. Já diziam os antigos monges: “põe teus olhos no dia de tua morte”. Não é um mandamento, mas um exercício, para que possam, já em nossa passagem aqui na terra, ser transfiguradas todas as realidades perante nossos olhos. Dá-se, pois, em podermos perceber a riqueza e o valor eternos que encontram perante o olhar despojado de todo desejo de posse.

Vemos, pois, em Jo 17, Jesus, na perspectiva de sua morte, olhando para o Pai. Diz Santa Teresa de Jesus que a razão de toda a nossa infelicidade é não mantermos os olhos fixos em Deus. Martin Buber, grande filósofo judeu do século XX, lembra que a nossa melancolia se origina na dificuldade em se dizer “TU”, onde o outro é um outro de verdade, e não uma extensão de mim mesmo, um objeto sobre o qual só consigo dizer “ISSO”. Jesus, ao olhar para o alto, põe-nos na perspectiva deste mesmo movimento: olhar para os dons mais altos, para o dom por excelência – Deus é Pai. E estamos insertos no influxo de sua gratuidade, de seu amor e de seu plano eterno. Se pudermos dar um nome a esse ambiente, esse nome é Espírito Santo, o ambiente dialógico entre o Pai e o Filho, entre o Pai e seus filhos. Nesse ambiente, os filhos de Deus são concebidos; dele se alimentam; nele crescem e encontram a alegria para viver, mesmo com todas as provas que a vida trouxer, porque a esperança é outra...


Eis a Páscoa – sublime diálogo:

– “Tu és meu Filho – eu hoje te gerei!” (Sl 2,7)

– “Senhor, tu és meu Pai!” (Sl 88, 27)


Até mais.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Do Seridó a Roma - Trajetória de um Jesuíta

No decorrer deste ano sacerdotal, entre outras leituras e conferências, estou tendo a oportunidade de ler uma obra exemplar. Trata-se do livro "Do Seridó a Roma - Trajetória de um Jesuíta". A obra foi escrita por Everaldo Dinoá Medeiros (Ir. Tomé, Obl. OSB), que trata da recuperação da memoria de um de seus mais ilustres ancestrais, o Pe. Sebastião Constantino de Medeiros, que foi pároco em Caicó (RN), no decorrer do século XIX, quando aquela cidade ainda era pertencente à Diocese de Olinda, uma das mais antigas e importantes do Brasil.

Além do testemunho do zelo pastoral, sacramental, da obediência, do serviços prestados à Santa Igreja, inclusive quando a Sé de Olinda esteve vacante. No livro, estão diversos registros dessa atividade intrépida, envolta pelos costumes da família sertaneja onde foi criado, da sociedade da época e da Igreja no Brasil, sendo assim muito bem contextualizado.

Chama-nos muita atenção a coerência com que o autor procura preencher as lacunas de informações existentes na História do Brasil, com outras vindas de bibliotecas do exterior, especialmente de Roma.

Pontos altos do livro estão no que diz respeito à questão religiosa (separação Igreja-Estado) e o papel de D. Vital, bispo de Olinda. O autor nos aponta uma Igreja corajosa, capaz de, com toda a sensibilidade pastoral, desfazer aquilo que seus inimigos fazem, estando no meio dela, e, na hora de ser um testemunho corajoso diante de autoridades que desejam se sobrepôr ao Cristo, encontra bispos capazes de se pôr na "linha de tiro", para que a Igreja continue a ser o um lugar de glorificação de Deus e não dos homens. Bem que se poderia tirar da boca de D. Vital as palavras de São Pedro: "é preciso obedecer a Deus antes que aos homens".

Num tempo como o nosso, num dia como o de hoje, quando se encerram as reuniões da Assembléia Geral da CNBB, num ano sacerdotal, e especialmente, no Tempo Pascal, quando celebramos a fundação da Igreja de Cristo, o testemunho desses pastores nos aponta para a grandeza de nossos antepassados, o valor com que, aqui, em terras brasileiras, puderam plantar o Evangelho, e colhê-los no meio de um povo cheio de fé.

É verdade que os tempos são outros, os desafios são maiores, porém o Evangelho é o mesmo, Cristo é o mesmo, e o Espírito, aquele que dá a todos os tempos o poder do Senhor à Igreja, também é o mesmo. Se o desafio é maior, é para que Cristo seja engrandecido ainda mais. Em meio a todas as terríveis notícias que recebemos, lembrar de antepassados como Pe. Sebastião e D. Vital é uma glória e uma força motriz para que tenhamos uma cristandade que no Brasil encontre neles alento e força, sinais de que Deus nunca abandona sua Igreja.

Parabéns ao Everaldo pela belíssima obra. Esperamos que muitos frutos ainda venham dessa memória viva do Pe. Sebastião.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Pentecostes

Irmãos e amigos,


Estamos já no final de nosso Tempo Pascal. Mais duas semanas, e estaremos de volta ao Tempo Comum, mas falaremos sobre este tempo no momento oportuno.

Queremos hoje lembrar que daqui a dois Domingos, a Igreja de Cristo celebra a Solenidade de Pentecostes. Muita gente fala em Pentecostes como a festa do Espírito Santo, mas do que se trata mesmo?

Em tempos de outrora na Antiga Aliança do povo de Israel, celebrava-se, como ainda hoje entre os judeus, a Festa das Semanas, ou da Colheita, 50 dias apos a Páscoa. Isso, porque nesse dia o primeiro feixe das plantações era colhido e entregue ao sumo-sacerdote para oferecer em agradecimento a Deus pelo primeiro fruto das plantações, e, depois se iniciava a colheita.

O que isso tem a ver com a Páscoa cristã?

Cristo morreu e foi sepultado, segundo as escrituras, e o Pai o ressuscitou inundando seu corpo e alma mortos de seu Espírito Santo. É o mesmo Cristo, com seu mesmo corpo, agora glorificado, com sua mesma alma, agora também glorificada, plenificada pelo Espírito. Recebendo este Espírito, Ele o doa aos Apóstolos, fundando agora sua Igreja, sinal de sua presença no mundo durante os séculos, para que estes, com seus legítimos sucessores, os bispos, em comunhão com o Santo Padre, transmitam esse mesmo Espírito, através da Palavra de Deus proclamada e explicada através das culturas e dos séculos e, eficazmente, através dos sacramentos, particularmente o da Eucaristia (Missa), onde se torna constantemente presente o único e perfeito sacrifício de Cristo na cruz e o mistério da Páscoa, pelo qual nos é dado o seu Espírito Santo.

Este acontecimento (Cristo Deus doando o seu Espírito aos Apóstolos e fundando a Igreja Católica) se deu no dia mesmo da Ressurreição e nisso, ao verem o fruto do Amor do Pai sobre o Filho, reacenderam a esperança em seus corações (sim, pois a morte daquele que seria rei os deixou completamente sem sentido, como ficamos quando alguém em quem depositamos toda a nossa vida morre). Eles, de covardes que eram, se tornaram anunciadores ferrenhos do Evangelho, custasse o que tivesse de custar, até a morte com derramamento de sangue, tal como seu Senhor.

Por vários dias, como testemunha São Paulo (1Cor 15,1-8), Cristo realizou a graça de elevar as faculdades psicossomáticas de vários discípulos a algo que na Bíblia é chamado de visão ou aparição do Cristo Ressuscitado, até que num belo dia não mais se via o Cristo na forma visível, a não ser pela fé, na sua Palavra e nos sacramentos, sobretudo. Associa-se esse tempo ao do amadurecimento da fé na Ressurreição, como na Antiga Aliança as plantações amadureciam. A Tradição de São Lucas, assim, situou o acontecimento do dom do Espírito Santo sobre os Apóstolos, Maria e algumas mulheres (ver At 1-2) exatamente no quinquagésimo dia após a primeira experiência da Ressurreição. Por isso, o Tempo Pascal se estende por 50 dias, desde a Vigília Pascal, até o Oitavo Domingo contado a partir do Domingo da Ressurreição, o Domingo de Pentecostes.

Tudo bem! E o que minha vida tem a ver com tudo isso?

Foi pelo Espírito Santo que os Apóstolos falaram em línguas, curaram doentes, denunciaram crimes, deram sentido a diversas vidas perdidas, revivificaram mortos, como nos narra a Tradição lucana dos Atos dos Apóstolos. Que dizem estes acontecimentos para nos?

Somos chamados a Unidade e, portanto, desmascararmos toda espécie de dualismos e de divisões entre homem e Deus, corpo e alma, vida material e vida espiritual, homem e mulher, entre os diversos grupos e comunidades, nações e raças, no sentido de caminharmos todos para a nossa grande morada no seio do Pai. Para isto o homem foi criado, para ser santificado, divinizado. E o homem sente isso em cada desejo de plenitude, de gloria, de realização, porém o homem sozinho já mostrou isso, a Historia está aí para ser vista e encarada de frente. Hoje, vemos a violência instalada em todos os lugares, mas pior do que essa guerra é a guerra silenciosa, sutil, discreta que se trava nos corações humanos, desumanizando-os. Até que o homem de hoje fala muito em unificação, mas uma unificação sem Deus, unificação que exclui que mata, que destrói. Tenta a querer construir um mundo só nosso, em que possamos até acreditar em Deus para alguma coisa que nos sirva para isso, mas logo depois pode ser esquecido. É o homem querendo construir uma torre que alcance os céus das realizações pessoais sozinho. Lembra-me a narrativa da Torre de Babel, no capitulo 11 do Livro do Genesis, em que a única conseqüência foi confusão (=Babel, em hebraico), ninguém mais se entendia. Este é o fruto da separação de nossas realidades materiais da presença de Deus.

Achamos que Deus irá tomar o nosso tempo ou as nossas coisas? É um medo vão. Lembremos que Deus, ao se fazer homem em Cristo não se fez um usurpador dos demais, mas, como diz São Paulo na Carta aos Filipenses, "Ele se fez obediente ate' a morte, e morte de cruz". Da morte, o Pai o ressuscitou, e da Ressurreição, deu-nos a vida, construindo agora um edifício espiritual, muito mais interior: a Igreja, os cristãos, na potência do seu Espírito Santo, no qual continuamente recebemos sua vida divina pelos sacramentos. Mas é esse edifício, que Santo Agostinho tão acertadamente chamou "Cidade de Deus", lembrando as palavras do Salmo 45, que torna possível a realização da cidade terrena de forma digna e plena.

Coloquemos nossa vida, desde o trabalho até as diversões, desde os relacionamentos humanos até nossos projetos, nossas mortes diárias e vitórias na mão do Senhor. Deixemo-nos envolver pelo seu Espírito, pelo
seu sopro suave, que "consola o nosso pranto e sustenta o nosso canto".

Passemos deste mundo para o Pai, ou seja, enxerguemos todas as coisas não mais segundo nossas aspirações mesquinhas, mas segundo a visão de Cristo Morto e Ressuscitado, e eis a verdadeira Páscoa. Voltemos a orar assiduamente, a dedicar ao menos 15 minutos de silencio diário aquele que anima a nossa vida e travarmos um relacionamento pessoal com Ele.

Não há desculpa, pois há tempo para isso. No começo, pode ser difícil, mas "o Espírito vem em socorro de nossa fraqueza". Participemos, pelo menos aos Domingos da Santa Missa, porque esse é o Dia da Ressurreição, "Dia que o Senhor fez para nos", e lá ofereçamos o fruto de nossas mãos, sobretudo o fruto que Deus entrega na Cruz, e dele recebamos, confessados sacramentalmente os pecados, a vida eterna
em cada comunhão, que nos fortalecerá na caminhada semanal.

Deus quer participar de nossa vida; participemos da vida de Deus, e, assim, será gerada a comunhão e a paz. Deus e homem numa só realidade, como no Cristo. Ele por essência; nós porque Deus nos ama e se dá a nós gratuitamente, e nos quer felizes, pois "a glória de Deus é o homem vivo".

A vida eterna nos é dada diariamente, e diariamente podemos acolhê-la ou negá-la. Acolhamo-na e haverá esperança. Vivamos normalmente no nosso hoje, sempre com os olhos na Ressurreição de Cristo, que é nossa Ressurreição, hoje apenas em primícias na fé, e no Último Dia em plenitude, no próprio Cristo.

A ele sejam dadas a gloria e o poder em cada um de nos, hoje e na eternidade, pelos séculos dos séculos. Amém!

terça-feira, 11 de maio de 2010

“Não vos alegreis pelos milagres que fazeis, mas por vossos nomes estarem escritos no céu.”

De fato, nosso Deus não prometeu riquezas, nem sucesso, nem poder, nem um mundo a nossos pés. E, ao olharmos para Jesus, vemos um homem “pobre, humilde e crucificado”, como dizia São Francisco. De fato, “os pássaros têm os seus ninhos, e as raposas têm as suas tocas, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. O Filho do Homem é continuamente provado e marcado pela perseguição, entretanto em profunda paz, porque “vem do Pai e volta para ele”. Quanto às dificuldades e perseguições, inevitáveis para quem desperta, dom para aumentar a confiança, não são fáceis de agüentar, nem para mim que escrevo nem para vocês que lêem. Depois que o Gabriel morreu, encarar um Deus que não nos livra de dificuldades tem trazido um certo sentido a tudo. Não é fácil, repito, mas, aos poucos, vai nos libertando de certas ilusões.


O fato de sermos contingentes tem um papel fundamental na nossa vida: fazer anamnese de nossa humanidade. Primeiro, permitam-me lembrar da etimologia de humanidade. Há, no latim, um termo comum, humus, que lembra terra. Paulo, na Carta aos Filipenses, ao dizer que Cristo se humilhou, quer lembrar de muito mais do que uma depreciação moral; quer-nos lembrar de sua visita às profundezas de nossa terra. Húmus, que nos lembra terra, também nos lembra homo, o homo sapiens et demens, nossa espécie. Lembra-nos a humildade e a humilhação. Além disso, em hebraico, o nome dado ao homem foi Adão, ou Adhamar, o terroso, aquele que se fragiliza ao se expor às diversas intempéries, que se descaracteriza ao entrarem em tensão suas forças internas repulsivas, mas que pode ser moldado ao receber a água e o sopro.

A água nos lembra tempestades, maremotos, afogamentos. A água nos lembra a chuva, a bebida que mata nossa sede, o líquido de limpeza. A água é um dos quatro elementos alquímicos utilizados nas antigas tradições, de modo particular em rituais de iniciação. É assim que a água foi usada no nosso Batismo. Os discípulos tiveram medo das águas, quando, no Mar da Galiléia, estiveram sob a tempestade, sentindo-se ameaçados. Não era à toa. As antigas tradições mitológicas hebraicas associavam à água a presença de Leviatã, um monstro marinho. A tempestade do Mar da Galiléia quis ser uma interpelação à fé dos discípulos, a qual foi observada por Jesus naquela ocasião. Mas as águas também foram entendidas como símbolo das profundezas interiores, tenebrosas e assustadoras. Mergulhar nas águas, como na simbologia batismal nos lembra entrar nessas profundezas, harmonizando as polaridades e as dicotomias interiores. Dizia, ainda, um Padre do Deserto, que, “de nada vale o Batismo nas águas quando não se realiza o batismo das lágrimas”. As lágrimas são uma solução fisiológica, portanto predominantemente composta de água, e simbolizam a entrada em nossa interioridade, rumo a libertação da mesma. O Batismo na água aconteceu, no começo. E não somente na água, mas também no Espírito (pneuma = sopro). O Batismo das lágrimas se encerram no dia de nossa morte.

Diz o salmista: “levantaram as torrentes sua voz, levantaram as torrentes seu fragor; muito mais que o fragor das grandes águas, poderoso é o Senhor nos altos céus” (Sl 93). Maremotos que invadem nossa vida querem fazer despertar o nosso húmus, a nossa proveniência da terra, ou seja, nossa fragilidade, mas será o ponto de partida da descoberta e do encontro com O que habita o mais profundo de nós mesmos: mais poderoso do que as águas. Nesse momento, o homem começa a ser moldado e pode se encontrar com a sua identidade verdadeira.

Esse foi o caminho daquele que se reconheceu Filho do Homem. Mesmo sabendo que não havia para um filho de homem uma vida fácil e segura, amou ser homem como nós, amou ser terroso. A Quaresma quis ser para os cristãos, nesses quarenta dias que se encerram na tarde da próxima Quinta-feira Santa, (como o Ramadã para os muçulmanos, ou o Yom Kippur, para os judeus, bem como os períodos de penitência e sobriedade de outras tradições), um tempo de amar o terroso que somos, amar o terroso que o outro é, amar o terroso onde a Realidade Suprema quis habitar; um tempo de nos deixar atrair por esta Realidade, justamente de onde ela se encontra, no Filho do Homem, passando (Pesach = Páscoa) do homem de mentira para o homem de verdade, da máscara para o rosto, da dispersão para a unidade, do pecado para a graça, do egoísmo para a gratuidade, do mundo para Deus. As águas, como a cruz, já não mais serão uma grave ameaça, mas o caminho aberto para a realização de um interior frustrado com contínuas ilusões, para o encontro como os traumas da humanidade ferida, que tanto necessita de amor e realização, num mundo onde a tecnologia, a pressa, as aparências, o dinheiro e o poder falam tão alto, mas um coração, um centro de vida foi esquecido, dando margens ao surgimento de uma letargia, uma normose, o reino da mediocridade.

Um coração foi esquecido. Mas está aí nas águas, escondido no subsolo marinho de nosso Adão. Vamos ao encontro dele?

A Páscoa que surpreende - comentário a At 16,22-24, texto da liturgia de hoje

Essa passagem arquetípica dos Atos dos Apóstolos é uma entre tantas através da qual a Liturgia vem nos motivar a refletir acerca da bondade incondicionada do Pai. O mais interessante é que os fatos dessa perícope o fazem através de situações aparentemente calamitosas e contraditórias.
Primeiro, com Paulo e Silas, esses dois intrépidos missionários. Tendo entrado na Europa, também aí sofrem a rejeição por causa do Reino de Deus, pois é um reino que incomoda, desaloja, desafia nossa mediocridade. As injustiças que sofrem fazem parte da reação que as frustrações ferventes de seus opositores promovem: são corações perturbados, que perturbam tudo ao redor. Ordem, para eles, é o “status quo” que compensa os desequilíbrios interiores que os levam a ser sedentos de poder e “donos da vida”.

Mas o que, me chamou a atenção nesse texto foi o que aconteceu com o carcereiro. Antes de mais, o que é um carcereiro? É um homem pago para garantir que presos não irão fugir. Na sociedade, seu papel é importante porque há uma necessidade remediativa acerca de pessoas envolvidas com o crime. Os carcereiros são pessoas importantes no que concerne à garantia da ordem social. Este carcereiro, entretanto, tem o papel para manter aquela ordem do parágrafo acima. Ele é instrumento de manutenção de uma estrutura viciada. E sabe que, se não o for, poderá morrer, mesmo que seja de fome, por não ter mais o seu salário. Então, acontece o inesperado: um terremoto. Os alicerces da cadeia são abalados, as portas são abertas. O abalo dos alicerces faz-nos lembrar do abalo das bases sobre as quais nossa vida (inclusive a do carcereiro) é construída. Elas são vez por outra abaladas, sofrem avarias e acabam por ser fragilizadas, desembocando na necessidade de mudança de alicerces. Quando alicerces se abalam, as estruturas se modificam, e as portas já não se mantém fechadas. Pude presenciar isso num local onde os alicerces estavam cedendo e as portas já não fechavam. Que dizer de um local assim perante um terremoto? Portas abertas lembram-nos as portas do sheol, a mansão dos mortos, abertas pelo mistério pascal de Cristo; lembram-nos o dia de nosso Batismo, em que entramos na Igreja pela porta, simbolizando as portas do Reino dos Céus, que nos foram abertas por esse mesmo mistério. Na realidade, um terremoto ocorreu na vida desse carcereiro. Tudo virou de cabeça para baixo. Poderia ter insistido em se matar, fruto de sua mediocridade, a não elevação de seus olhos para uma Realidade maior, uma águia que vive como galinha. Fenderam-se as estruturas de sua existência.


Entretanto, ao ouvir a voz consoladora de Paulo, ele se ajoelha aos seus pés, perguntando “que devo fazer para ser salvo?” Normalmente, queremos salvar a nossa pele, segundo a lógica voluntariamente aceita em nossa história. Mas Paulo lembra da família dele: “crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e tua família”. Paulo lembra de que não nos salvamos sozinhos. E a salvação desse homem não necessariamente corresponderá ao fato de se safar perante os magistrados de Filipos, mas de poder encontrar um horizonte infinitamente mais amplo para a sua existência; o quem sabe um alicerce firme diante das tempestades e tremores da vida, a “pedra angular” de sua vida.

Mas, uma questão ainda: quem estava preso? Os discípulos ou o carcereiro? Os discípulos cantam hinos, enquanto o carcereiro dorme; os discípulos permanecem em seu lugar, aparentemente tranqüilos, enquanto o carcereiro tenta se matar diante da intempérie. Enfim, para quem as portas se abriram?
Resposta a isso pode ser encontrada nos versículos abaixo, em que o carcereiro vai escutar a Palavra e cuidar daqueles que, em nome do Nome e do Reino, encontram-se espezinhados pelo sistema. O carcereiro se liberta da lógica antiga, do homem velho. Ele é batizado e oferece uma refeição (símbolo da Eucaristia) para saciar a todos os que se encontram famintos, ou seja, todos os personagens da situação. Aí, já não há carcereiros nem encarcerados. A partir daí, os papéis passados já assumem um referencial diferente, de tal maneira a se manifestarem inversos.

“Alegrou-se ele e sua casa porque creu em Deus.” De fato, quando nosso horizonte se abre à Eternidade, surge a alegria de Ser. Há a descoberta de não sermos mais tão somente filhos do pai ou da mãe, filhos do sistema, filhos da culpa, filhos da escravidão, filhos do cárcere, filhos de genes diferenciados, filhos do nosso temperamento ou dos hormônios que estão em constante transporte em nosso organismo ou ainda filhos da cidade, do campo, do oriente ou do ocidente, mas unicamente da Vida, em seu desejo por si mesma, ou em outras palavras, de Deus mesmo, do que transcende, do que ultrapassa, do Sempre Mais. Talvez tenhamos tudo isso, mas não para sermos vítimas do sistema, da culpa, da escravidão, do cárcere ou do que quer que seja, mas para redimir tudo isso.

É a Páscoa! Passagem da sujeição à libertação.