sábado, 28 de agosto de 2010

Continuando a aproximar Jesus e as crianças - II

Agora, publicada no último dia 23 em ZENIt.org, as palavras do Cardeal Antonio Cañizares Llovera, Prefeito da Congregação para o Culto Divino, sobre a Primeira Comunhão às Criznças, relembrando as iniciativas dos sumos pontífices de São Pio X a Bento XVI.


Cardeal Cañizares: Jesus e as crianças
Há cem anos, Pio X antecipava a idade para a primeira comunhão
CIDADE DO VATICANO, segunda-feira, 23 de agosto de 2010 (ZENIT.org) – No contexto do centenário do decreto Quam singulari Christus amore (8 de agosto de 1910), de São Pio X – Papa que foi beatificado em 1951 e canonizado em 1954 –, publicamos a reflexão do prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, cardeal Antonio Cañizares, apresentada em L'Osservatore Romano. Bento XVI discutiu esse tema na audiência geral de quarta-feira passada.
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Completam-se agora cem anos da promulgação do decreto Quam singulari, do Papa São Pio X, pelo qual, seguindo fielmente os ensinamentos do Concílio IV de Latrão e os de  Trento, estabeleceu a primeira comunhão e primeira confissão das crianças à idade do uso de razão, quer dizer, em torno dos sete anos.
Esta disposição do santo Papa supunha um caminho muito importante na prática pastoral e na concepção habitual de então, que por razões diversas, tinha atrasado a idades posteriores este acontecimento tão transcendente para o homem.
Com este decreto, São Pio X, o grande Papa da piedade e da participação eucarística, com o desejo de renovação eclesial que inspirou seu pontificado, ensinou a toda Igreja o sentido, lugar, valor e centralidade da sagrada comunhão para a vida de todos os batizados, incluídas as crianças.
Com este gesto, ao mesmo tempo, destacava e recordava a todos o amor e a predileção de Jesus pelas crianças, que, além de fazer-se criança, manifestou seu amor por elas com gestos e palavras, até o ponto de dizer: “se não forem como as crianças, não entrarão no reino dos céus”; “deixai que as crianças venham a mim, não as impeçam, porque delas é o reino dos céus”. Elas são sempre amigas muito especiais do Senhor. 
Com a mesma predileção, com o mesmo olhar amoroso e com a mesma atenção e solicitude singular, a Igreja olha, atende, cuida e se preocupa com as crianças. Por isso, ela, como mãe amorosa, quer para seus filhos pequenos, os primeiro no reino de Deus, que, com as devidas disposições, participem logo do melhor e mais importante que Jesus nos deixou em sua memória: seu Corpo e seu Sangue, o Pão da vida. Pela sagrada comunhão, Jesus em pessoa, Filho de Deus, entra dentro da vida de quem o recebe e coloca sua morada nele. Não há maior amor, nem maior presente. Isso é um dom de amor que vale mais que todo o restante que se possa dar à vida de cada homem. Estar com o Senhor; que o Senhor esteja em nós, dentro de nós; que nos alimente e sacie; que nos tome pelas mãos e nos guie; que nos vivifique e permaneçamos fielmente em comunhão e amizade com ele: é sem dúvida o mais importante, o mais gratificante, o mais gozoso que pode acontecer a alguém.
Como atrasar, pois, às crianças, este encontro com Jesus, elas que são seus melhores amigos, as especialmente queridas por Deus, o Pai, objeto de especial cuidado da Igreja, mãe santa? 
A primeira comunhão das crianças é como o início de um caminho junto a Jesus, em comunhão com ele: o início de uma amizade destinada a durar e se fortalecer toda a vida com ele; começo de um caminho, porque com Jesus, unidos sem nos separar, procedemos bem e a vida se faz boa e virtuosa; com ele dentro de nós podemos ser sem dúvida pessoas melhores. Sua presença entre nós e conosco é luz, vida e pão no caminho. O encontro com Jesus é a força de que necessitamos para viver com alegria e esperança. Não podemos, atrasando a primeira comunhão, privar as crianças – a alma e o espírito das crianças – desta graça, obra e presença de Jesus, deste encontro de amizade com ele, desta participação singular do próprio Jesus e deste alimento do céu para poder amadurecer e chegar assim à plenitude.
Todos, especialmente as crianças, têm necessidade do Pão descido do céu, porque também a alma deve se nutrir e não bastam nossas conquistas, a ciência, as coisas técnicas, por muito importantes que sejam. Necessitamos de Cristo para crescer e amadurecer em nossas vidas. Isso é ainda mais importante neste tempo que vivemos e o é de modo especial para as crianças, frequentemente objeto, infelizmente, de manipulação e de destruição de sua grandeza, pureza, simplicidade, “santidade”, capacidade de Deus e de amor que as constitui. As crianças vivem imersas em mil dificuldades, envolvidas em um ambiente difícil que não lhes favorece ser o que Deus quer delas; muitas são vítimas da crise da família. Nesse clima ainda lhes é mais necessário o encontro, a amizade, a união com Jesus, sua presença e sua força. São, por sua alma limpa e aberta, as mais bem dispostas, sem dúvida, para isso.
O centenário do decreto Quam singulari é uma ocasião providencial para recordar e insistir no ato de receber a primeira comunhão quando as crianças tiverem a idade do uso de razão, que hoje, inclusive, parece se antecipar. Não é recomendável, por isso, a prática que se está introduzindo cada dia mais de atrasar a idade da primeira comunhão. Ao contrário, é ainda mais necessário o ato de adiantá-la. Perante tantas coisas que estão acontecendo com as crianças, e o ambiente tão adverso em que crescem, não as privemos do dom de Deus: este pode ser, é a garantia de seu desenvolvimento como filhos de Deus, engendrado pelos sacramentos da iniciação cristã no seio da santa mãe Igreja. A graça do dom de Deus é mais poderosa que nossas obras e que nossos planos e programas. Quando São Pio X adiantou a idade da primeira comunhão, também insistiu na necessidade de uma boa formação, de uma boa catequese. Hoje devemos acompanhar este ato de adiantar a idade com uma nova e vigorosa pastoral de iniciação cristã. As linhas marcadas pelo Catecismo da Igreja Católica e o Diretório geral para a catequese são guias imprescindíveis nesta nova pastoral ou renovada da iniciação cristã tão fundamental para o futuro da Igreja, a mãe que, com o auxílio da graça do espírito, engendra e amadurece seus filhos pelos sacramentos da iniciação, pela catequese, e por toda ação pastoral que acompanha. Assim, pois, não fechemos hoje nossos ouvidos às palavras de Jesus: “deixai que as crianças venham a mim, não as impeçam”. Ele quer estar nelas e com elas, porque “das crianças e dos que são como elas é o reino de Deus”.

Continuando a aproximar Jesus e as crianças - I

Pe. José Clécio é padre diocesano de Campos dos Goytacazes, RJ. Acompanho muito suas posições, seus esclarecimentos, e, exatamente num tempo em que faço muitos questionamentos sobre a Primeira Comunhão de meu filho (dado que "idade da razão" é um termo muito em aberto a abre diversos precedentes para que a consideremos cada vez mais precoce), este Rev. Pe. nos brinda com uma belíssima reflexão da qual compartilho em gênero, número e grau, e que, já estando em curso em nosso lar, deverá ser aplicada em breve, se Deus quiser.

Assim, seria interessante que lessem, refletissem e até compartilhassem comigo algo da experiência de vocês, antes e depois dessa leitura. Ela foi importada do blog do Rev. Pe., http://oblatvs.blogspot.com . Também em nosso blog, pouco mais abaixo, há algumas reflexões recentes que postei sobre paternidade e transmissão do Espírito, bastante coerentes ao contexto. 

Bem, sem mais delongas, segue o texto. Em continuação a ele, há um texto dos sacramentos ministrados pelos orientais e está no blog (http://oblatvs.blogspot.com/2010/08/uma-reflexao-pessoal-e-um-artigo-sobre.html). Boa leitura!
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Uma reflexão pessoal e um artigo sobre os sacramentos da iniciação

A prática atual tende a retardar sempre mais a primeira comunhão. Se prevalece a prática de administrá-la às crianças por volta dos dez anos, já encontrei quem o faça somente aos doze! Não falta boa intenção aos que pretendem incutir uma sólida formação cristã aos que vão receber o Sacramento, mas a prática ignora, a meu ver, aspectos importantes da questão.
A legislação em vigor estabelece que é dever dos pais ou responsáveis e do pároco que as crianças que atingiram o uso da razão sejam preparadas e, o quanto antesquam primum, admitidas à comunhão (cân. 914).
O cân. 913 esclarece que a preparação das crianças deve levar em consideração sua capacidade própria. Devem ser cuidadosamente preparadas de modo a adquirir um conhecimento suficiente do mistério de Cristo e a receber seu Corpo com fé e devoção (§ 1), embora in periculo mortis exija tão somente que possam discernir o Corpo de Cristo do alimento comum e recebam-no com reverência (§ 2).
Nossa contribuição, na condição de iniciadores, é dar o suficiente, o necessário e o próprio à idade daqueles que estão apenas começando a vida em Cristo. Não queiramos alçá-los à condição de Mestres em Israel. Tempo haverá, se fizermos bem nosso trabalho, para dar-lhes alimento mais sólido na medida em que crescem. Paradoxalmente, quanto mais tempo se exige de catequese menos coisas sólidas se ensinam às crianças. Certas aulas se afiguram exageradamente “infantis” mesmo às próprias crianças e, também por isto, muitas delas desistem de percorrer um tão longo caminho por tão pouco.
A excessiva ênfase na catequese prévia, que leva a postergar sempre mais a primeira comunhão das crianças, não deixa de exalar o mau odor protestante, este terrível espírito que tem contaminado o ambiente católico. Se retirarmos todas as conclusões de suas premissas chegaremos à prática herética dos protestantes e negaremos também o Batismo às crianças.
Parece haver, quando muito se insiste em tudo ensinar previamente, uma confissão de nossa incapacidade pastoral de oferecer às crianças, aos jovens e aos adultos uma catequese permanente, posterior aos sacramentos recebidos. Estamos como a dizer que se não vêm a nós a fim de progredir no conhecimento dos mistérios da fé, chantageamo-los com os sacramentos. Esta tem sido uma constante também no que diz respeito aos demais sacramentos: é curso para tudo e não demora exigiremos dos moribundos um curso prévio à recepção da Extrema Unção!
Outro fator desconsiderado é a capacidade das crianças de conhecer através de uma linguagem que não seja a verbal. Não raro demonstram uma intuição bem mais profunda dos mistérios de Deus que a de muitos adultos, ainda que não saibam exprimi-los em formas conceituais. O próprio Deus lhes fala à alma direta e compreensivelmente numa linguagem desconhecida aos que somos carnais. Curiosamente, nossas crianças demonstram hoje menos conhecimento suficiente e menos devoção que as de antigamente - e não culpemos os tempos. Lembro-me de muito pouco do dia de minha primeira comunhão, mas não me esqueço da posição das mãos, da comunhão de joelhos e na boca, do jejum eucarístico e da proibição de mastigar - estas prescrições simples incutiram em mim a consciência de que recebia algo sagrado e completamente distinto de um alimento comum.
Retardar a administração da Sagrada Comunhão às crianças, além do estabelecido pela Igreja, é privá-las de uma graça no momento em que o mal já se insinua com toda a sua força. Muitas crianças, pré-adolescentes como os chamamos, já se afastaram de Cristo e de sua Igreja naquela idade que alguns consideram ideal para a comunhão.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Ainda sobre paternidade e maternidade - o testemunho dos santos - II

Agora, seguem os últimos momentos de Santa Mônica, celebrada hoje, narrados pelo seu filho, Santo Agostinho, no Livro IX de suas Confissões. Destaco (em grifos meus) o grande desejo dessa mãe, que, ora, poderia dizer com São Simeão, "deixai agora vossa serva ir em paz (...), pois meus olhos viram vossa salvação".

Ao aproximar se o dia em que ela ia partir desta vida – dia que Vós conhecíeis, mas nós ignorávamos – sucedeu, segundo creio, por disposição de vossos secretos desígnios, que nos encontramos sozinhos, eu e ela, encostados a uma janela, cuja vista dava para o jardim interior da casa que nos hospedava, em Óstia, onde, afastados das multidões, depois da fadiga de uma longa viagem, retemperávamos as forças, antes de embarcarmos. Conversávamos a sós muito suavemente e, esquecendo o passado e voltando-nos para o futuro, nos interrogávamos mutuamente, à luz da Verdade presente, que sois Vós, qual seria a vida eterna dos Santos, que nem os olhos viram nem os ouvidos escutaram nem jamais passou pelo pensamento do homem. Mas os nossos corações suspiravam pela corrente celeste, que brota da vossa fonte, a fonte de vida, que está em Vós.

(Interrompo aqui: veja qual o escopo da conversa entre essa mãe e esse filho. Como nos questiona!!! De quantas bugigangas nos ocupamos com nossos filhos, e nos esquecemos de prepará-los para o essencial... Que nossas coisas pequenas, nossos momentos com nossos filhos apontem para o essencial invisível aos olhos!!!)

Assim falava eu, embora não por este modo e por estas palavras; contudo bem sabeis, Senhor, quanto o mundo e os seus prazeres nos pareciam vis naquele dia em que assim conversávamos. Minha mãe acrescentou ainda: «Filho, quanto a mim, já nada me dá gosto nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, porque já nada espero deste mundo. Havia só uma razão pela qual eu desejava prolongar um pouco mais esta vida: ver-te cristão católico, antes de eu morrer. Deus concedeu-me esta graça de modo superabundante, pois vejo que já desprezas a felicidade terrena para servires o Senhor. Que faço eu ainda aqui?».

Não me lembro bem do que lhe respondi a respeito destas palavras. Entretanto, passados cinco dias ou pouco mais, ela caiu de cama com febre. Num daqueles dias da sua doença, perdeu os sentidos e durante um curto espaço de tempo não dava acordo dos presentes. Acorremos logo e depressa recuperou os sentidos. Vendo-nos de pé, junto de si, a mim e ao meu irmão, disse-nos como quem procura alguma coisa: «Onde estava eu?».

Depois, vendo-nos atônitos de tristeza, disse: «Sepultareis aqui a vossa mãe». Eu estava calado e tentava conter as lágrimas. Meu irmão, porém, proferiu algumas palavras, mostrando a preferência de que ela não morresse em país estranho, mas na sua pátria.

Ouvindo isto, fixou nele um olhar cheio de angústia, censurando-o por pensar assim e, olhando depois para mim, disse: «Repara no que ele diz». E em seguida disse para ambos: «Sepultai este corpo em qualquer parte e não vos preocupeis com ele. Só vos peço que vos lembreis de mim diante do altar do Senhor, onde quer que estejais». (Mais uma interrupção minha: de fato, a Pátria dela era outra. Era para isso que ela tinha preparado seus filhos!) Tendo feito esta recomendação com as palavras que pôde, calou-se. Entretanto agravava-se a enfermidade e o sofrimento prolongava-se.

Finalmente, no nono dia da sua doença, aos cinqüenta e seis anos de idade e no trigésimo terceiro da minha vida, aquela alma piedosa e santa libertou-se do corpo.

Ainda sobre paternidade e maternidade - o testemunho dos santos - I

Há poucos dias, conforme se pode ler logo abaixo, dizíamos algo sobre o papel da paternidade perante Deus. Gostaria de sublinhar o tetstemunhos de dois importantes santos celebrados esta semana. Aqui, o testemunho de São Luís, Rei da França, de como quis dirigir o olhar de seu filho para a dignidade do reinado do único Rei, Cristo. Ah! Se assim, fossem educados nossos filhos... Quantos outros tipos de políticos não haveríamos de ter. Sim, porque a transmissão do Espírito Santo pela via familiar, a via íntima, é algo que deixa marcas indelévis no coração do homem. Portanto, vamos ao testemunho de São Luís, em seu Testamento Espiritual (Acta Sanctorum, Agosto 5 [1868], 546) (Sec. XIII):

Filho caríssimo, eu te exorto, em primeiro lugar, a que ames o Senhor teu Deus com todo o teu coração e com todas as tuas forças; sem isto não há salvação.

Filho, deves evitar tudo o que sabes ser ofensa a Deus, isto é, todo o pecado mortal, de tal modo que prefiras sofrer todos os tormentos do martírio a cometer um só pecado mortal.

Além disso, se o Senhor permitir que te sobrevenha alguma tribulação, deves suportá-la com generosidade e ação de graças, pensando que é para teu bem e que talvez a tenhas merecido. E se o Senhor te conceder alguma prosperidade, deves agradecer-Lhe humildemente, procurando que não te seja causa de ruína moral, ou por vanglória ou por qualquer outro motivo, porque seria iníquo valer-se dos dons de Deus para O combater ou ofender.

Assiste de boa vontade e com devoção ao culto divino; enquanto estiveres na igreja, evita a distração do teu olhar ou as palavras inúteis e reza devotamente ao Senhor com oração vocal ou mental.

Sê misericordioso para com os pobres, os infelizes e os aflitos e, segundo as tuas posses, ajuda-os e reconforta-os. Dá graças a Deus por todos os seus benefícios, a fim de seres digno de receber outros maiores. Sê justo para com os teus súditos, sem nunca te desviares da linha reta da justiça, nem para a direita nem para a esquerda; coloca-te sempre mais do lado do pobre que do rico, até averiguares com certeza de que lado está a verdade. Sê diligente em procurar que todos os teus súditos vivam em paz e justiça, sobretudo tratando-se de pessoas eclesiásticas e religiosas.

Sê dedicado e obediente para com a nossa mãe, a Igreja Romana, e para com o Sumo Pontífice, nosso pai espiritual. Esforça-te por erradicar do teu território toda a espécie de pecado, principalmente as blasfêmias e as heresias.

Filho caríssimo, para terminar, eu te dou toda a bênção que um pai piedoso pode dar a seu filho. A Santíssima Trindade e todos os Santos te guardem de todo o mal. O Senhor te conceda a graça de cumprires sempre a sua vontade, servindo-O e honrando-O de tal modo que depois desta vida todos nós possamos vê-l’O, amá-l’O e louvá-l’O sem fim. Amém.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Deixai vir a mim as criancinhas porque o Reino de Deus é dos que são como elas

O capítulo 10 do Livro de São Marcos é marcado por diversos matizes, principalmente acerca do Matrimônio, sacramento da fé, trazido à tona pelos valores perenes do Evangelho, onde Jesus remete ao Princípio, fonte da unidade e da indissolubilidade da família (sempre heterossexual, diga-se de passagem) nos planos de Deus. Sobre isso, muitos já falaram, e há diversos comentários em livros, revistas e na Internet. Cabe pormos em prática o amor esponsal entre Cristo e a Igreja nas nossas vidas conjugais, tais quais consagrações ao Senhor.

O que me chama a atenção no momento são as últimas palavras proferidas dentro desse contexto. Após o confronto de Jesus com os fariseus e a explicação de suas palavras aos discípulos, trouxeram-lhes algumas crianças para que Jesus, impondo-lhes as mãos, as abençoasse. Os discípulos as afastavam, mas Jesus lhes responde com a primeira frase deste texto, que se encontra nesse contexto do Evangelho de Marcos. Elas parecem tão simples, tão pouco evocadora, mas nos diz tanto!!!

Primeiro, porque a mesma palavra que se traduz por criança em aramaico (“talyia”) também se traduz como servo e cordeiro. Vejamos a intencionalidade do autor sagrado em trazer essas figuras à tona, lembrando do Servo Sofredor, imagem do crucificado no Livro do Profeta Isaías, e do Cordeiro de Deus, apontado por João Batista como aquele que tira o pecado do mundo, plenitude do cordeiro pascal expiatório da Páscoa judaica, como Páscoa para o mundo inteiro, em sua Paixão, Morte e Ressurreição. A criança, o servo e o cordeiro são os menos significativos da sociedade judaica de então, carregando em si o fardo das gerações. Mas Jesus os evoca como caminhos necessários para alcançar o Reino de Deus.

Desta feita, vamos ao segundo ponto: a criança é símbolo do caminho para o Reino de Deus. Visto sob o prisma do Sacramento do Matrimônio, a cujo contexto esse versículo pertence, podemos pensar nos filhos de um casal cristão. Eles são a expressão visível de que “já não são dois, mas uma só carne”. Pensando que todo ser humano surge a partir de uma união sexual de um homem com uma mulher, é como se a fragmentação da humanidade se desfizesse (ao menos, à maneira de primícias, um símbolo eficaz) na unificação de tal forma entre homem e mulher que ali dois pedaços se juntassem para não mais serem pedaços, mas um vaso, ou, ao menos, uma parte maior dele, e a expressão disso está no filho, pessoa única, indivisa, expressão do amor entre o pai e a mãe. Pensar num Matrimônio sem filhos e em filhos sem Matrimônio é alheio ao Evangelho de Cristo e a tudo que se possa dizer cristão.

Um comentário a esse respeito, eu gostaria de fazer lembrando de uma figura mitológica da tradição mística judaica. Após a criação, com o pecado original, o universo, todo uno, como seu Criador, quebrou-se, e o trabalho de toda a existência humana, e de Deus é o de juntar os cacos do vaso quebrado que se tornou o universo. A esse processo, os cabalistas chamam “tikkun”. Nós sabemos quem realiza a “tikkun”: Cristo morto e ressuscitado. No amor, no seu amor, aquele que se entrega pelo outro até a morte, aquele que pára no caminho, qual bom samaritano, para curar as feridas do moribundo e pagar todas as suas despesas de hospedagem enquanto se recupera. O Amor de Cristo é que se deixa ferir com todos os cacos pontiagudos para fazê-lo um só vaso. Esse Amor aponta para o Reino dos Céus.

Lembrado este aspecto, sigamos ao terceiro ponto: já que “não são dois, mas uma só carne”, e o que Deus uniu o homem não tem como separar, pressupõe-se que o amor humano, tão vacilante, tão cheio de hesitações, seria insuficiente para manter esses cacos grudados. O amor humano vai pensar apenas em justaposições. Elas serão importantes, mas só podem cumprir seu papel se as junções forem espaço de troca, de união, de renúncia à penetração invasiva do espaço do Outro, e ao mesmo tempo de permissão para que o Outro entre em nossa vida. Ora, muitas vezes, isso causa feridas, mas se se trata de feridas pelas quais optamos por amor, já não são mais feridas simplesmente, são marcas de amor, do Amor pascal de Cristo e da Igreja.

O quarto aspecto diz respeito às conseqüências desse diálogo ontológico: o vaso novo, que surge desse amor, a criança, não será somente um produto de uma relação sexual, puntual no tempo e no espaço. Será sempre a conseqüência de um processo de geração, onde o elemento gerador não são mais o pai ou a mãe, mas o Amor. O Amor de Cristo é quem nos gera a todos, especialmente quando esse amor é transmitido a nós desde a mais tenra infância. Quantas expressões existem para manifestar esse amor! A maior delas é a criança enxergar no coração de seus pais a existência de um Outro, O que transcende, O que marca as suas vidas com os sinais da Eternidade, sejam os sacramentos, seja o amor em família, o amor à Igreja, o serviço aos pobres, o carinho e a dedicação para com a criança, os ensinamentos, as correções..., enfim, o acolhimento em pessoa, que só o Cristo pode manifestar em nossas vidas. Assim, não negamos o Reino de Deus às crianças, mas apresentamo-las a Jesus e mostramos a elas o quanto é fascinante viver com Ele. Esse gesto possibilita que Jesus, que sempre respeita nossa liberdade, abrace nossos filhos, e eles já não sejam tão somente nossos filhos, mas filhos de Deus. É isso que os pais cristãos querem celebrar quando batizam suas crianças, quando lhes possibilitam a Primeira Comunhão (e todas as demais, a comunhão de vida inteira). “Deixai vir a mim as criancinhas”. É por elas, é sendo uma delas, é vivendo o carinho de Deus sendo uma delas, que alcançamos a felicidade, não obstante todas as vozes contrárias do mundo. Em certo sentido, a criança salva o mundo, pois o Cordeiro de Deus tira o pecado do mundo, e o Verbo, quando se fez carne, nasceu como criança, o Menino Jesus. Possibilitar o encontro da criança com Cristo, é possibilitar o encontro de nosso mundo com Cristo, em cada singularidade pueril, que representa um futuro pela frente. É, numa palavra, possibilitar o nosso encontro com Cristo. Nelas, nossa vida é, em certo sentido, reciclada, renovada, ressuscitada.

O quinto ponto, que se segue a este, é a visão do oposto. Vêem em que inferno nosso mundo se encontra? Uns dizem que é por falta de políticas públicas, outros dizem ser por faltas graves na educação, outros ainda falam ser por falta de emprego. Daí, a criança e o jovem entram na prostituição, no crime organizado, na droga e em toda sorte de maldições de nossa atualidade. Pudera! Não conheceram uma família de verdade (tendo os pais morado juntos ou não), não conheceram o amor, não conheceram o valor do corpo perante Deus e perante as responsabilidades da vida, não conheceram um valor significativo para a existência, não experimentaram a correção, o perdão, o carinho, o abraço, a harmonia, a oração, a pequenez de ser humano (e criança!), não sentiram, numa palavra, o que é viver. Queremos uma sociedade de homens e mulheres de verdade? Sejamos os primeiros a sê-lo com nossas crianças, ante a esperança e a perspectiva do Reino de Deus. Elas estão aqui para conhecê-lo e para nos fazê-lo conhecer, se que ainda não o conhecemos. Não é para outro fim, seja ele dinheiro, fama, prestígio ou boa-vida. Pode ser que algumas dessas coisas sejam meios importantes, mas elas estão aqui para ser.

O sexto ponto toca a questão delicada do aborto. Não preciso mais falar tanto sobre esse aspecto, já que o significado da criança já nos disse tanto e ainda dirá. Mas é importante dizer que, quem aborta perde a chance de ver florescer o Reino de Deus, perde a oportunidade de ver frutificar a esperança, mesmo contra toda esperança deste mundo. Quem aborta impede radicalmente o encontro com Cristo Jesus, Sentido e Razão de nosso viver. E quem vota em candidatos que defendem o aborto faz o mesmo.

Gostaria de encerrar esse breve ensaio, que vocês tiveram a paciência de ler, com o sétimo ponto: o papel da paternidade e da maternidade. São uma via ascética, um modo de buscar a conversão de nosso coração para o Amor, ante a responsabilidade assumida na presença de Deus, ante a presença do filho que exigirá um contínuo desdobramento de nossa vida, uma perene dilatação de nosso coração para o Amor de Cristo. Se, por um lado, é um caminho contemplativo, onde muitas vezes o silêncio será manifesto dentro de nós enquanto sendo uma contínua atenção à vontade de Deus e às exigências da geração (ver acima) do filho, sendo um contínuo esforço para que nossa família continue coesa no Amor de Cristo, que vence nossas hesitações e limitações, é por outro lado, o caminho para a “theósis”, a deificação, segundo a Tradição grega, ou seja, nele, situamo-nos no papel mais sublime que o homem pode ter: a participação na paternidade de Deus, único Pai, em essência. Ser pai é participar da paternidade do Pai. Lembram-se de Jesus quando disse: “não chameis a ninguém de pai, porque um só é o vosso Pai que está nos céus”? Pois bem, esse é o grande dom. Para o cristão, um filho só o chama de pai porque reconhece nele uma imagem do verdadeiro Pai, aquele que distribui os dons, de modo particular o Dom, o Espírito Santo, manifesto no Amor de Cristo. Assim, nossa paternidade é oração e contínua presença do Senhor em nossas vidas.

Dedico esse texto de modo particular aos nossos filhos, Gabriel José, tão saudoso e amado, que do seio do Pai intercede por nós, guarda-nos e guia-nos para que sejamos, eu e minha esposa, pai e mãe de verdade, Davi e Thalita, nossos filhos amados, a quem procuramos dedicar essa paternidade, como caminho de deificação para nós e para eles, para o futuro que se desdobra no Reino de Deus. Eles me inspiraram bastante acerca das palavras acima.