domingo, 13 de julho de 2008

Ao final do retiro em Campos do Jordão, na Memória da Virgem Maria

“Bendize, ó minh’alma, ao Senhor, e todo o meu ser seu santo nome! Bendize, ó minh’alma, ao Senhor! Não te esqueças de nenhum de seus favores. Pois Ele te perdoa toda a culpa, e cura toda a tua enfermidade, da sepultura salva tua vida e te cerca de carinho e compaixão; de bens Ele sacia tua vida e tornas sempre jovem como a águia” (Sl 102,1-6).


Este Salmo que já havia me tocado há vários anos, para que através dele pudesse contemplar a misericórdia de Deus me foi dado de presente hoje de madrugada no I Noturno do Ofício de Vigílias. Foi o 1º salmo depois do Invitatório (Sl 94).

No penúltimo dia de retiro, já para encerrar as experiências de deserto, pois à tarde minha família vem se unir a mim, para celebrarmos o Domingo juntos e podermos matar as saudades, eu, minha esposa e meu filho, Deus inicia o dia suscitando a ação de graças em meu interior: “Bendize, minha alma, ao Senhor!”

De fato, como nunca pude vislumbrar, este foi um retiro todo conduzido pelo Senhor. Nele, pude experimentar suas misericórdias, especialmente através da Liturgia Sagrada, mas também através do ambiente por onde ela se estendeu, a criação de Deus e todos os fatos que se desdobraram em meu interior, como também nos diálogos com as pessoas com as quais encontrei, tão diferentes entre si: monjas, clérigos, pessoas do povo, funcionários da Abadia, especialmente nas horas de refeição e após a Santa Missa Conventual.

Comoveram-me a experiência do filho da viúva de Naim, da pecadora que chorava aos pés de Jesus em casa de Simão, de Mateus, o publicano. Cristo Jesus entrou na sepultura de cada um deles. Também posso dizer que entrou na minha sepultura, como canta o salmista e me ergueu de lá, qual Palavra inefável que ergue o homem em seu mistério.

Aliás, hoje é sábado, e estamos celebrando a Memória de Maria Virgem no Sábado. Essa memória lembra a Mãe de Deus (o título que mais amo na Virgem), aquela que, após a morte de seu Filho, perseverou no seu sepulcro. Pude falar um pouco desse mistério na terça-feira.

Perseverar no sepulcro... É isso que, desde longa tradição, os cristãos fazem no Sábado Santo, unidos à Virgem Maria. O silêncio típico desse dia fá-los unir àquela, que, bendita por ter trazido em seu seio o Criador do mundo, como nos lembra uma antífona mariana, vê o seu Filho no seio da terra. É a Virgem que vê seu Filho num outro seio. Que há de acontecer. A semente caiu na terra.

Jesus fala tantas vezes na semente... Hoje o Evangelho da Missa foi a parábola do semeador (Lc 8,4-15). Maria certamente a conhecia. A semente poderia cair em tantos tipos de terra: expostas aos pássaros, pedregosas, espinhosas, e até, ... , em terra fértil. Poderia ser uma pergunta de Maria: em qual terra meu Filho veio cair?

Na terra exposta aos pássaros, diria eu. Ele diz: “olhai as aves do céu (...), pois vosso Pai que está nos céus os alimenta” (Mt 6,26). E se as aves do céu são gratas ao Senhor elevando-lhe constantemente seus cânticos, como posso ouvir agora nos jardins desta Abadia, as aves que a parábola do semeador contempla vivem numa outra dinâmica: a diabólica.
Felizmente ou infelizmente, sabe Deus, as aves carregam em si esse simbolismo ditado pelo Verbo. É verdade que os demônios que comem a semente do Verbo serão destruídos. Mas, se a terra está cheia dessas aves de rapina, como poderá brotar a alegra do Verbo sobre a face terrestre? E Deus não deixa de semear, e as aves vêm e roubam mais uma vez, até que estejam saciadas (“saciais com vossos bens os ventres deles, e seus filhos também hão de saciar-se”, Sl 16,14), e nesse dia, a semente possa brotar na terra. Maria teve de ver a sua Semente cair aí... “Olhai e vede: há dor maior que minha dor?”

Eis que a terra humana, tão sujeita a intempéries e variáveis mil, é o lugar onde a Palavra veio ser semeada. Maria, tão imersa no espírito dos pobres de Israel, devia conhecer a passagem profética que diz: “assim como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam mais, mas vêm irrigar e fecundar a terra, e fazê-la germinar e dar semente, para o plantio e para a alimentação, assim a palavra que sair de minha boca; não voltará para mim vazia; antes, realizará tudo o que for de minha vontade e produzirá os efeitos que pretendi ao envia-la” (Is 55,10-11).

Sim! A Palavra há de cair na terra, mas Deus continuará sendo fiel. Pode ser que caia em terrenos pedregosos ou espinhosos. De fato, as tribulações, representadas pelas pedras, ou as preocupações, simbolizadas pelos espinhos, podem sufocar a Palavra. Que dizer dos que gritavam: “crucufica-o!”, ou dos apóstolos que fugiram ante a chegada das hostes que prenderam Jesus? O próprio Jesus vai dizer: “Tomai cuidado para que os vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez ou as preocupações da vida, e esse dia não caia de repente sobre vós” (Lc 21,34).

Não obstante a infertilidade do deserto humano, Deus continua sendo fiel. De fato, “o Filho do Homem foi entregue nas mãos dos homens”, e, enquanto isso, os gritos e gestos de violência continuavam. O mistério é que aí Ele se entrega ao Pai, cumprindo a profecia de Is 55,10-11. Mas, o que vemos? O que Maria vê? Seu Filho morto, em seus braços, a ser, depois, depositado num sepulcro.

Abro um parêntese para lembrar da experiência que eu e minha esposa tivemos ao vermos nosso filho Gabriel José morto em nossos braços. Foi algo dilaceramos. Variávamos da revolta à auto-punição, do desespero à esperança em curtos espaços de tempo. Ali era semeada uma palavrinha, uma imagem e semelhança do Logos. E não menos doloroso foi o ter de pô-lo numa gaveta de cemitério. Como dói essa lembrança!

Maria viveu a plenitude dessa experiência: ver seu Filho num sepulcro. É a ordem natural invertida. De fato, toda e qualquer ordem natural já havia sido corrompida há muito tempo... E isso foi assumido por esse mistério da piedade.

A semente da Palavra foi semeada em todos os terrenos. Resta apenas um se manifestar: o terreno fértil. Qual será ele? Se ele existir, Maria pode se encher de esperança. Se ele existir, eu e minha esposa também podemos ter uma esperança enorme. Se ele existir, o homem pode se reerguer, pois verá a semeadura brotar e crescer grandemente.

“Se o grão de trigo é jogado na terra e não morre, fica só um grão de trigo; mas se morre, ele dá muito fruto!” Cristo Jesus desperta o homem para a fidelidade de Deus. A sepultura diante da qual Maria se encontra é o lugar onde Jesus irá desaparecer totalmente para aparecer no seio do Pai. É esse lugar necessário para que alguém muito especial aos olhos de Deus se beneficie. Sabem quem? Adão. A leitura patrística do Ofício do Sábado Santo apresenta, nesse dia de grande silêncio, Jesus convidando Adão a se erguer. Nesse dia, diz o ofício da liturgia bizantina, já é Páscoa para Adão. A semente frutificou na sepultura de Adão.

Nesse dia, estar junto à Mãe de Deus é estar junto àquela que vela pela ressurreição do Filho do Homem, do Homem Todo, Cristo como Cabeça, a humanidade, qual Igreja ressurgida pelo chamado do Filho do Homem a erguer-se, como fizera com o filho da viúva de Naim, com a pecadora, com o publicano Mateus, com Lázaro, com Madalena, Pedro e tantos outros, como fez comigo, como seu Corpo.

Ressurge Cristo, ressurge o homem. Maria vela por esse mistério, guardando-o em seu coração como sempre o fizera. A semente, semeada em tantos lugares, acabou caindo nessa terra fértil. Deus apostou no coração humano, como apostou em Maria, para que a semente de sua Palavra, aquela que deifica o mundo, brotasse em toda a terra.

A terra, de fato, pode ser árida, mas nossos restos mortais a fertilizaram, para que a semente caída pudesse brotar. Sim, nossos restos, onde não havia mais pássaros, pedras ou espinhos, mas só o húmus do nosso simples ser humano, para que o Espírito renovasse a inteira face da terra.

Isso aconteceu neste retiro, para que se fizesse assim em minha vida. Possa eu ser fiel à esperança que suscitou em meu coração. Mais tarde, ao pôr-do-sol, já será Domingo, e já poderemos dar as boas vindas da noite, que, como a noite pascal, ilumina toda a terra escura e faz a semente plantada crescer e dar muito fruto. Que a Virgem Maria nos ensine a esperar e a nos alegrar assim! Amém!

Obrigado, Senhor!

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