sábado, 31 de janeiro de 2009

Algumas ponderações sobre a essência da Santa Missa

Foram algumas colocações minhas num debate eletrônico. Penso que possa ser edificante para alguns e por isso envio abaixo algumas ponderações sobre o Santo Sacrifício da Missa. Caso eu incorra em algum erro doutrinal, por caridade, transmita-me e corrija-me. Apenas deixo aqui um pouco do que a Igreja sente e celebra ao longo dos séculos e um pouco do que experimento ao longo dos dias de minha vida.

Ao paciente amigo e leitor, uma boa leitura e bom fim de semana!
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O desejo de retornar às fontes não exime a própria Igreja de se remeter a toda a sua história. Gosto quando uso a palavra símbolo, mas ela é pessimamente compreendida no Brasil. Do grego syn + bolon, ao pé da letra seria: do mesmo lado da realidade. Ou seja, o símbolo é a realidade transmitida de forma velada, insere quem o contempla nela. É o contrário de dia + bolon, do lado oposto à realidade, termo próprio a Satanás, que, do hebraico (shatan) quer dizer obstáculo. Pronto, as espécies consagradas abrem o olhar do fiel para SÓ ver nela Cristo. Escatologicamente falando, esse é nosso FIM: Ele será tudo em todos. Aí certos teólogos não verão problema em falar de transubstanciação.

Repito, como já fiz antes, nem Trento rompeu com os Padres, nem o Vaticano II rompeu com Trento. É importante lembrar que toda a celebração Eucarística é adoração, mas há um ápice inegável no momento da consagração e especialmente no momento da comunhão. Os sagrados concílios ressaltam sempre que a Eucaristia é o memorial do sacrifício de Cristo, ou seja, este sacrifício acontece ali, no altar, de forma a que o fiel entre nessa realidade, na medida em que ele deixou que ela entrasse em si. Isso é a comunhão. Trento precisou dar respostas precisas a uma época em que a presença real de Cristo estava sendo generalizadamente questionada. Mas, pergunto-me: essa coisa de ruptura não está fazendo voltar essas ilusões? Será à toa que sabiamente pubicou o Motu Próprio Summorum Pontificum? Quem já foi à Divina Liturgia de São João Crisóstomo (rito oriental) já viu a riqueza simbólica com a qual o Mistério é cercado e ao mesmo tempo manifesto. E é um rito com cerca de 1500 anos, tendo sofrido pouquíssimas alterações.O interessante é que muitos irmãos, católicos ocidentais, acham maravilhoso ir a uma Missa em Rito Oriental (onde se usa grego e árabe) e têm pavor de ouvor falar em latim. As diversas semelhanças entre o rito de São João Crisóstomo e São Pio V não são mera coincidência.

Quem já foi a ambas já viu as semelhanças, bem como as diferenças. Uma coisa é certa: os Ritos de São Pio V e de São João Crisóstomo não dão espaço para invenções. O senso de Mistério é incondiconalmente preservado. No Novus Ordo, depende de quem celebra.Com isso, quero antes deixar muito claro que não sou contrário ao Novus Ordo, muito pelo contrário! Penso que deve ser celebrado com sua máxima dignidade e solenidade, mantida, porém, a incondicionabilidade do Mistério, independente de quem celebra. Porque se trata de uma questão muito simples: é rito.RITO é uma palavra de origem latina que significa "algo que se repete". É natural do rito ser repetitivo em sua estrutura. E por que o aspecto repetitivo? Porque estamos celebrando a mesma Realidade ... sempre. Se minhas subjetividades ou os elementos do inconsciente (ou consciente) coletivo começam a ocupar algum lugar no rito, ele já não é mais rito, ou, ao menos, não é AQUELE rito. Talvez seja um parêntese dentro do rito, mas quebra sua estrutura, seu modo de ser rito.Pois bem, a repetitividade, a rotina do rito tem um valor preciosíssimo: É simplesmente aquele Cristo que, qual Esposo, "desponta no céu e se levanta" todos os dias para a sua Esposa, a Igreja. É na rotina do dia após dia que uma família vai encontrando a sua identidade. É no amor que supera toda rotina diária e que a sustenta e até mesmo a enche de surpresa em pequenos sinais (no rito, poderiam ser as memórias e festas, por exemplo), que uma família vai aprendendo a ser escola de ser gente. Igualmente, o respeito ao rito vai sendo uma escola de cristãos.Um rito que vai sendo impregnado de invenções lembra aquelas famílias que já não vêem mais graça em si mesmas e ficam tendo que inventar passeios, festas, encontros (e até coisas de calão tão baixo que não são de bom tom reproduzir aqui) para ver se sustentam a união. É preciso reconhecer o Cristo na simplicidade do rito e na solenidade que ele traz em si (não em nós). Simples na rotina; solene na dignidade. É o Esposo, que sai para o trabalho cada dia (Sl 103), lembrando o sacrifício, e volta à tarde, como quando encontrou os discípúlos de Emaús, para a refeição. Mas veja, a refeição acontece em decorrência do sacrifício. Sem o sacrifício, não há refeição. E essa é lei natural antes de ser lei da graça. Afinal de contas, não é São Paulo que diz: "quem não quer trabalhar também não deve comer"?
Assim é o rito! Paciência! Caso contrário, é outro rito (que não o latino) ou até mesmo outra coisa.

Sobre a questão da Liturgia da Palavra e da Liturgia Sacramental, penso ser importante dizer algumas palavras. Houve uma vez que uma crismanda me disse que o padre que lhe atendeu disse que o valor da celebração da Palavra e da Missa era o mesmo (!!!). Bem, vamos lá!

Na Liturgia dos Catecúmenos ou da Palavra, o ápice é a PALAVRA (rema) de Cristo; na Liturgia dos Fiéis ou Eucarística, o ápice é a PESSOA (hypostasis) de Cristo, ou seja, Ele mesmo, como Palavra (o termo grego agora é diferente: Logos), que se fez CARNE (sarx, ou seja a totalidade da fragilidade humana) e habitou entre nós.Caro irmão, por caridade, lembre-se de Lc 24: quando Jesus ressuscitado explicou as Escrituras aos discípulos no caminho de Emaús, de fato, aconteceu algo na vida deles: seu coração aqueceu. Ou seja, a frieza que traziam por causa da morte de suas esperanças foi aquecida por Aquele que lhes falava, mas... eles não o reconheciam. Quando foi que o reconheceram? Ou melhorando a pergunta, quando foi que houve o encontro pessoal?Pois bem, agora, este encontro pessoal possibilita a compreensão do sacrifício de Cristo como redentor. Veja bem, este sacrifício é algo muito grande na vida daqueles discípulos: foi o momento de rever todas as suas esperanças. Deus realmente abandona o justo? Israel era ainda amado por Deus? E de nós, que fazemos parte dessas esperanças, que restará?Na Palavra, Jesus dá o tom desse sacrifício, relendo a Lei e os Profetas. Um sentido de uma esperança inaudita aquece os corações dos discípulos. Mas quando Jesus toma o pão, dá graças e o parte, o sacrifício, que tanto lhes havia marcado, recebe dentro de suas vidas um sentido: Ele vive, e não obstante a crueza e a realidade do sacrifício há uma Realidade que lhe dá suporte, porque o Sacrificado vive, Ressuscitado. Entende?Em outras palavras, a Eucaristização do momento é a Ressurreição do Verbo encarnado e morto como homem. Para essa percepção, é necessária a Eucaristia. E a Eucaristia como sacrifício sim, porque esse sacrifício se manifesta aí não como uma matança cruel, mas como manifestação do poder de Deus, desde ir até o mais profundo dos infernos, onde nem o diabo chega, até os céus mais altos que nem os anjos conhecem.

Por outro lado, a Missa é sacrifício do começo ao fim, e a própria Liturgia Catecumenal pode e deve ser compreendida como sacrifício. Há uma imolação ali. Percebe?Se não, começo por um fato filosófico. A quem os filósofos dão o nome de Deus? Ao incognoscível, ao inefável, ao sempre mais para além. E, de fato, o é. Grandes teólogos de nossa fé trabalharam na linha do apofatismo em função desses "atributos" de Deus: por exemplo, São Dionísio Areopagita, São Cirilo de Alexandria, São Gregório de Nissa, Johannes Tauler, Mestre Eckhart e São João da Cruz. A própria tradição judaica não admite que se pronuncie o nome de Deus (a nossa também não, a despeito de muitos liturgistas de plantão!). Mas o próprio Deus usa como quer de sua incognoscibilidade: Ele se dá a conhecer. E o primeiro modo de se dar a conhecer é através da criação: seus sinais, na natureza, são como ritos em sua homenagem. Dia após dia, o sol nasce, atige o zenit e se põe. A lua tem seus ciclos, quase como rituais, e a nossa vida na terra só é preservada pela repetitividade desses "rituais". As estações do ano, os ciclos marítimos, os relevos mais ou menos irregulares, como peças de canto gregoriano. Tudo isso nos fala desse Deus. De certo modo, aqui Ele renuncia em certa medida sua incognoscibilidade. O segundo modo foi testemunhado pelos filhos de Israel: a Lei dada a Moisés no Sinai. Nome hebraico: Torah. Era como que um conjunto de ensinamentos para que, alcançando a terra, o povo vivesse. Deus vai renunciando sua intocabilidade na medida que oferece meios de vida ao homem. Depois, esse mesmo povo terá os profetas. Agora, não são apenas códices, mas pessoas que experimentam de forma singular a viver com esse Deus para orientar caminhos do povo do qual fazem parte. A essa "contração" dos atributos tidos como divinos, a tradição mística judaica chama de tzimtzum.Agora, não houve movimento de contratura maior do que quando Deus se fez carne. E isso só o testemunham os cristãos. Para um judeu, isso é um escândalo.

Veja que até aqui, Deus se manifesta nas palavras: a Lei e os Profetas. Essa contratura, essa renúncia à total incognoscibilidade é um grande sacrifício, sacrifício em forma de Palavra. A Liturgia da Palavra realiza esse sacrifícioAgora, a contratura máxima de Deus acontece na sua hominzação. Sem deixar de ser Deus, sem deixar de ser ainda o incognoscível, o Santo, Aquele que É, agora toca e pode ser tocado, fala e pode ser ouvido, cura, perdoa, ressucita os mortos. Isso já seria um grande sacrifício de nosso Deus. Como se não bastasse, assume a identidade do pior entre os piores, e vai, Ele mesmo, onde jaz Adão, onde jaz cada homem, e junto a ele recebe o Espírito Santo. Agora, acontece algo inaudito, e isso sim é a incognoscibilidade da incognoscibilidade: o homem se torna filho de Deus. O homem se torna Deus por adoção, porque o Nome dAquele que lhe salvou lhe foi dado. A vitória dEle é a vitória do homem. Nisso, é que se tornam comensais. E somente mediante tamanho sacrifício da Divindade, por iniciativa própria é que se torna possível essa comensalidade, essa familiaridade. Em rito grego ou latino, copta ou caldeu, malabar ou malankar, siríaco ou moçárabe, galicano ou ambrosiano, essa é a consistência da Liturgia dos Fiéis ou Eucarística.A Eucaristia é a Ação de Graças sobre esse fenômeno inaudito: Deus se fez nada, como o homem, para que o homem, essa erva, essa vela fumegante, essa cana rachada, esse quase nada se tornasse Deus.Se os liturgistas deixassem seu plantão, poderiam ter mais espaço e tempo para rezarem sobre esse Mistério em cada passo de suas vidas. E deixariam a Sagrada Liturgia intocada, sagrada, santa, como ela é, deixando que Deus revele apenas tudo aquilo que deseja revelar, esse amor incompreensível, que, ao mesmo tempo que ansiamos, não somos capazes de realizar. Se não for a ação de cada uma das Santas Missas, a vida do homem se reduz ao cinza que vemos na sociedade hodierna, sem esperança, sem Deus, sem vida.

Eis a presença real de Cristo!!! Não há outra mais intensa antes da manifestação plena de sua glória. Que aconteça em nossa vida, em nosso coração.Curioso, não? Contratura de Deus... São Paulo usou o termo grego kénosis. Não é à toa que Zacarias disse quando do nascimento de São João Batista e nós ritualmente as repetimos no Ofício de Laudes, todas as manhãs: "graças ao entranhado amor de nosso Deus, o Sol nascente nos veio visitar!" O Sol nascente é Cristo!!! A contratura se deu nas entranhas da natureza divina, quando Cristo se manifestou da Encarnação à efusão do Espírito Santo. É o que acontece em cada Santa Missa!Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, por cada uma delas!!!

Emerson Sarmento Gonçalves, na III Semana Comum do AD de 2009.

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