“Nós vos louvamos, bendizemos e glorificamos pelo mistério da Virgem Maria, Mãe de Deus.” (Prefácio do Advento, II A)
Caros irmãos,
É chegada a tão esperada Semana Santa do Natal. Da mesma forma que na Páscoa, os sete dias que antecedem a Noite Santa são especialmente preparados, com liturgia própria (e prioritária), numa assim chamada Semana Santa. Em todos os dias, escutamos textos do Evangelho que relatam as aparições do anjo Gabriel a José, Zacarias e Maria, bem como a visitação a Isabel e o nascimento de João Batista. É um período riquíssimo de nossa Sagrada Liturgia, assim como acontece na Semana Santa da Páscoa. Especialmente os comentários patrísticos do Ofício das Leituras, tão consagrados pela Tradição da Igreja, têm uma especial predileção por dirigir as atenções à Virgem Maria, aquela grávida mulher, que sem o toque de homem algum, concebeu o Filho de Deus em seu ventre. Também os prefácios da Missa e as orações dos dias apontam para o mistério da Virgem, Mãe de Deus.
E assim como alegremente nos prepara com essa Semana Santa, o Natal apenas se inicia no dia 25 de dezembro, mas se estende com uma oitava (uma semana inteira como se fosse o único dia e Natal) e mais 4 festas: a da Sagrada Família, a de Santa Maria Mãe de Deus, a da Epifania do Senhor e a do Batismo do Senhor, completando o ciclo em cerca de 2 semanas e meia. É um mistério muito grande para ser celebrado numa só noite ou num só dia. A própria solenidade do Natal prevê 4 missas diferentes, no decorrer de suas 30 horas (6 da véspera e 24 do dia): a Vigília, apenas festiva, mas não solene, no fim da tarde do dia 24; a Missa da Noite, também conhecida como Missa do Galo, esta sim, solene (à meia-noite, preferencialmente, ou em torno dela); a Missa da Aurora, também solene (iniciando antes do raiar do sol do dia 25); e, enfim, solenemente, a principal, a Missa do Dia, celebrada bem após o nascer do sol do dia 25, em qualquer das outras horas.
Mas o que me cativa hoje e me faz escrever esta singela mensagem é olhar para a Virgem Maria, sob o título que, pessoalmente, mais aprecio: Mãe de Deus. No ícone do Santo Natal, ela aparece contemplativa, mas seu olhar convida a contemplar a grandiosidade desse Mistério. Sua mão, como sempre, aponta para o Cristo. Mas é pelo título de Mãe de Deus que Maria me atrai a ela.
Certa vez, após a passagem de nosso filho Gabriel José, estive pela primeira vez na Igreja Abacial do Mosteiro São João, em Campos do Jordão, em fevereiro de 2004. Lá, derramei-me em lágrimas ao ver o ícone da Eleoúsa, em grego, a Mãe da Ternura, ou, como lá está escrito em latim, Mater misericordiae. Não consegui ficar de pé, ajoelhei-me, tive uma experiência fortíssima sob o olhar da Mãe da Ternura, uma das mais fortes de minha vida. Também ela viu seu filho morrer. Mas seu olhar vai mais adiante...
Seu olhar penetrante e misterioso lança primeiramente a sua ternura no olhar de quem a contempla e lembra a nossos tempos corridos a necessidade de contemplar o semblante de quem nos olha. Seu olhar poderia ser um reflexo do olhar de Deus sobre o mundo, soberano, mas humilde; sereno, mas ligeiramente preocupado e cheio de cuidados sobre Aquele que carrega nos braços. Mas o intrigante é que o olhar não se dirige diretamente a Cristo, mas à humanidade que contempla o ícone.
Carregando a Cristo nos braços, Maria carrega a humanidade inteira. Em seus braços está o Futuro, o Fim, o Centro de tudo. É aquele Menino, que é Deus, e carrega um rolo, aquele rolo do Apocalipse, que somente Ele é digno de abrir. Em outras palavras, somente Cristo é chave de leitura para as Escrituras, e não somente para elas, mas para o próprio livro de nossas vidas. Aquele Menino traz nos braços tudo isso. Seu nascimento traz para a humanidade um sentido, porque se o Sentido de tudo é Este que se encontra nos braços de Maria, tudo, absolutamente tudo, inclusive a morte e tudo aquilo que parece ser sem sentido no nosso dia-a-dia é habitado pelo sentido. Ele, em sua encarnação, superior a todas as montanhas, físicas, morais e espirituais, desceu até os mais profundos abismos, físicos, morais e espirituais. Não há lugar nem tempo nesta nossa vida em que não esteja Cristo Senhor, aquele mesmo que nasceu em Belém e já muito antes, bem antes, sem ela saber, havia encantado o coração da Virgem.
E somente porque trouxe de maneira absoluta o Verbo de Deus em seu coração, nas mais profundas dimensões de seu ser, é que pôde se tornar grávida de Deus. Em sua ternura, Deus dirige uma palavra a ela, através do grande mensageiro, o Arcanjo Gabriel, como se a pedisse em casamento: “Kaire, kecharitómene!”, ou seja “Enche-te de imensa, estupenda, inefável, incomensurável alegria, ó tu, que já estás completamente preenchida do favor, da graça e sobretudo da presença de Deus!” Todas as poesias do pós-exílio de Babilônia que os santos profetas anunciaram apontavam para este Mistério. Muito inequivocamente o Profeta Isaías, no capítulo 62, dirige uma palavra à Filha de Sião (a Jerusalém pós-exílica, livre do jugo de Babilônia) que inequivocamente os cristãos a vêem dirigida a Maria, como modelo de plenitude da alma cristã: “Nunca mais te chamarão ‘Desamparada’, nem se dirá de tua terra ‘Abandonada’; mas haverão de te chamar ‘Minha querida’, e se dirá de tua terra ‘Desposada’, porque o Senhor se agradou muito de ti, e tua terra há de ter o seu esposo. Como um jovem que desposa a bem amada, assim também, teu Construtor vai desposar-te; como a esposa é a alegria do esposo, serás, assim, a alegria do teu Deus” (Is 62,4-5).
Quando tão glorioso anjo vai a Maria, Deus diz a ela tudo o que quis dizer à humanidade, a mim, a você, não apenas com palavras, mas com um gesto, o único eficaz, capaz de abrir nossa vida a algo que o mundo não pode por si mesmo oferecer. Quando o mensageiro da graça lhe vem, Deus lhe pede em casamento, mostrando que a natureza divina não existe de maneira fechada, mas apenas numa contínua e eterna abertura ao que é humano, terrivelmente humano. E nessa ocasião o anjo diz algo grandioso, aliás o próprio significado do nome do anjo: “para Deus, nada é impossível!”
Se, por um lado, Maria reflete humildemente sobre sua indignidade e sobre a incapacidade de gerar sem o toque de um homem, por outro, no Mistério da Anunciação do Senhor, ela encontra a possibilidade de se abrir completamente, de tal modo a tomar o impossível como possível. Porque possibilidade não é apenas o que pode ser racionalizado pela ciência, viabilizado pela tecnologia ou mesmo delineado pelas artes, mas sempre um algo mais que se abre e recebe o nome de esperança.
Assim, a fé de Maria, seu ser impregnado de uma vontade maior que a sua e que a contém se mostra em esperança, mas mesmo sem saber, já era amor. Quando o anjo lhe diz tudo o que tem de dizer, Maria prontamente diz: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim, segundo a tua palavra!” E o evangelista Lucas narra: “E o anjo retirou-se!”
Sim, meus irmãos, o anjo se retira para que agora se concretizem as núpcias entre Deus e ela, entre o céu e a terra. O anjo se retira em discrição porque ali há de se dar um encontro conjugal misterioso. Esses encontros sempre são misteriosos e reservados!!! Porque assim como a vinda de qualquer um de nós à terra é um fato grandioso, um acontecimento estremecedor, a vinda do Filho de Deus como Filho do homem, no ventre de Maria, é algo infinitamente mais grandioso, estremecedor, terrificante. São Leão Magno se enche de admiração e estupor ao dizer: “Ó admirável intercâmbio: o Filho de Deus se faz Filho do homem para que os filhos dos homens se tornem filhos de Deus!”
Desse momento em diante, um sinal indelével está presente na humanidade. Deus está nela, como sempre sonhou. O profeta Jeremias dizia que a aliança que seria firmada não a seria mais em tábuas de pedra, mas no coração, no íntimo do ser humano. Em Maria, dá-se o encontro íntimo entre Deus e a humanidade.
Volto-me agora para a lembrança do olhar da Virgem Mãe. Que quer dizer esse olhar? Por que tanta ternura? Porque ela mesma foi o espaço para se concretizar a ternura de Deus. Há um hino antiqüíssimo, cantado nas memórias dos santos, que diz: “Jesus Cristo, ternura de Deus, por quem somos votados ao Pai”. Se Maria é a Mãe da Ternura, a Ternura é Cristo. Sim, a ternura muitas vezes manifestada num casal é simbolizada num anel, numa aliança. Aqui, a Aliança é Cristo, prova do amor de Deus para conosco, “rosto divino do homem, rosto humano de Deus”, como dizia o Servo de Deus Paulo VI, Papa. Eis a Ternura, eis a fonte do coração de Maria, eis o que transborda do olhar de Maria.
E, afinal de contas, poderia ser diferente? Marcada tão intensamente pelo Santo Deus, e confirmada em sua vocação no dia da concepção de Cristo, onde lhe foi dado conhecer mais daquilo que ela mesma trazia em si, o olhar de Maria é o olhar da Ternura de Deus. Foi esse olhar que Cristo criança aprendeu a olhar. É tão impressionante! Aquele que é a “Sabedoria, saída da boca do Altíssimo” (como cantamos na tarde do dia 17) se torna um aprendiz do olhar. É esse olhar que ele lança sobre a humanidade, é esse semblante que paira sobre nós. E, se de alguma forma falamos em ira de Deus, como naquele olhar irado de um dos olhos do ícone de Cristo do Mosteiro de Santa Katarina de Alexandria do Monte Sinai, poderíamos vê-la muito bem expressa quando ele olha para Jerusalém e chora sobre ela (conforme um texto que enviei há cerca de um mês). A ira de Deus está presente no olhar preocupado de Maria, assim como no de Cristo, que chora as desventuras humanas. Tudo o que quer é apenas que sejamos plenos!
Voltemos mais uma vez ao olhar de Maria. Foram esses olhos, como que olhos do coração, que contemplaram o anúncio do anjo, a alegria de Isabel, o acolhimento de José, o nascimento do Santo Profeta João Batista e, na noite Santa, seu parto, cantado pelos anjos, admirado pelos pastores, adorado pelos Magos, luminoso como a estrela, glorioso, como o próprio Deus.
Caros irmãos, nesta Semana Santa do Natal, em que visitamos mais freqüentemente a imagem da Virgem Mãe de Deus, seja nas pinturas ou esculturas, seja na prece, especialmente as novenas de Natal e o Santo Rosário, seja ainda nos textos da Sagrada Escritura, da Tradição e da Liturgia, quero desejar a todos vocês, que fazem, parte de minha vida, e são tão amados por esse Deus de desígnios tão cheios de graça, ternura e misericórdia, um Feliz e Santo Natal, pelas mãos da Virgem, Mãe de Deus!
Que a Noite Santa seja um marco na vida de todos, lembrando que Ele nos amou por demais. Ou, como diz uma versão do “Adéste, fidéles!”, em português: “tanto amou-nos; quem não há de amá-lo?”
A Ele, a glória, no céu e na terra, no tempo e na eternidade, hoje e pelos séculos dos séculos. Amém!
Emerson Sarmento Gonçalves, a 19 de dezembro de 2008, Semana Santa do Natal.
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