segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Reaprender a respirar a vida, a mastigá-la, degustá-la...

Hoje em dia faz-se por vezes necessário, pois se está muito sujeito a esquecer de que somos humanos, esquecer de que nossos anseios mais profundos estão aí e não nos deixam em paz enquanto não nos pusermos a escutá-los.

Hoje o homem sofre com um profundo desenraizamento e muitas vezes foge de um encontro que lhe devolva sua verdadeira identidade. É, de fato, um absurdo, mas isso só acontece quando um ser é estranho a si mesmo. É o dilema de um animal, como um gato que minha irmã teve que, ao ser posto diante de um espelho, se zangou da imagem que viu. Não obstante, isso seria ainda desejável ao homem. Na verdade, se o homem pudesse ao menos despertar algum sentimento, alguma reação diante de sua verdade, poderia ser um ponto de encontro com o Ser, mas, na realidade, ele o evita, num indiferentismo sem precedentes.

E pensar que trazemos uma riqueza grandiosa em nós... Em nosso corpo, em nossa vida trazemos uma potencialidade enorme. Todos as nossas células, tecidos, órgãos, funções vitais falam profundamente. Inicialmente, elas nos falam de nossas necessidades mais elementares, como é comum acontecer com uma criança. Depois, elas começam a se relacionar com desejos mais sofisticados, e a riqueza dos sentidos, mediante a função plástica de proteínas e vitaminas, o aumento da precisão da ação orgânica e a multiplicação das sinapses nervosas acaba por dar a aprender cada vez mais como satisfazer necessidades de maneira a que alcancemos aquilo que desejamos, mesmo quando essas coisas ainda não existem. Foi assim que se desenvolveu a ciência, a economia, a tecnologia, a cultura e as artes. É por ser um ser de desejo que o homem consegue construir a história.

A questão é: o que significa tudo isso? Podemos alçar vôos altíssimos, mergulhar as profundezas do mar e escavar as da terra, trabalhar em nanoescala, controlando as propriedades da natureza a nível de átomo, tanto quanto em exoescala, buscando informações acerca dos confins do universo, um universo que não se resume a longínquas distâncias sobre a superfície da terra, mas muito além de ambientes que são os mais diversos possíveis desta nossa casa comum.

Continua a pergunta: que significa isso? O homem nasce, cresce, estuda, casa-se, tem filhos... Ou pior do que isso, torna-se bandido, prostitui seu corpo, aborta crianças, corrompe a política e a economia. Em nosso tempo, descobriu-se uma linha tênue entre a vida ordenada e desordenada, e elas parecem mais irmãs gêmeas do que poderiam parecer ser.

Ajuda-nos, Senhor! “Que é o homem, para dele assim te lembrares e o tratares com tanto carinho?” Pois bem, o homem é esse curioso ser que faz a ponte entre o finito e o infinito, tão pequeno, tão suscetível, e tão igualmente capaz de ideais grandiosos... À tão inquietante pergunta acima, algumas pistas nos são dadas pelas Sagradas Escrituras: “imagem e semelhança de Deus”.

Mas o que isso quer dizer hoje, para uma geração que parece incapaz de Deus? Pode-se ainda dizer: “de que Deus?” Segue que grandiosos sinais nos são dados em coisas tão pequeninas, coisas que os cristãos contemplaram desde o começo: a água que bebemos, o alimento do corpo, as vestes que usamos, o trabalho realizado por nós, as pessoas com as quais convivemos, seja em família, seja entre amigos, seja em Igreja, seja em sociedade. Todos eles querem falar de algo mais. E sabem por quê?

Porque o Senhor, “aquele que vimos, com quem comemos e bebemos, aquele a quem ouvimos” tocou todas essas coisas, e, da maneira como as tratou, desvelou-lhes o verdadeiro valor. Sim, “aquele que nossas mãos apalparam”, como poderia dizer o Apóstolo São João, revelou-lhes o Reino, que estava ali, não de maneira distante ou externa, mas ali, neles.

Controversa é a passagem de Lucas evangelista em que Jesus diz o Reino estar em nós (Lc 17,21). Alguns dizem que está no meio de nós, entre nós, em nossa história, um Reino a se desvelar de tal maneira que a purificação de nossos diversos contextos possibilitaria sua visão. Mas, por exemplo, São Gregório de Nissa vai mais longe, a partir de seu contexto místico, capadócio: “ ‘o Reino de Deus está dentro de vós’. Disso aprendemos que por um coração feito puro (...) vemos em nossa própria beleza a imagem da deidade (...). Tu tens em ti a capacidade de ver Deus. Ele, que te formou, põe em teu ser um imenso poder. Quando Deus te criou, plantou em ti a imagem de sua perfeição, como a marca de um selo. Mas teu vagar obscureceu essa imagem. Tu és como uma moeda de metal: sobre o rosto a ferrugem desaparece. A moeda estava suja, mas agora reflete o brilho do sol e todo o brilho em sua volta. Como a moeda, a parte interna da personalidade, chamada ‘coração’ pelo nosso Mestre, uma vez livre da sujeira que escondia sua beleza, redescobrirá a primeira semelhança e será real... Assim, quando as pessoas olham para si, elas vêem nelas o Um que elas estão buscando. E esse é o júbilo que preencherá seus corações purificados”.

Pois bem, seja na história, seja em nossa vida, muito mais ainda em nosso interior, onde as interpelações externas diversas podem se tornar realidade e história para nós, a verdade é que tudo o que nos cerca e acontece é obra do Deus Eterno na história. É uma teofania, como se fosse a continuidade do mistério através do qual se encarnou, morreu e ressuscitou dentre os mortos. Quando a vida manifesta a sua face, essas coisas acontecem aí, e somente nosso alijamento, bem (ou mal) conhecido como pecado, torna-nos incapazes de percebe-lo.

Esse mistério acontece aqui! Sim, nas minhas lutas, vitórias, desavenças, desventuras, desencontros, proezas, objetivos alcançados. Eles falam de algo tão grande, que, em última análise, só podem remeter-se ao amor de Deus manifestado no mistério pascal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por assim dizer, sem percebermos, Cristo celebra a Páscoa em nossa vida.

“Eles recordam vosso amor tão grandioso e exaltam, ó Senhor, vossa justiça!” (Sl 145,7). Quem recorda? Nosso corpo, nossos gestos. Muitas vezes, nosso inconsciente está tomado desses gestos. E sabem por quê? Porque eles remetem à Origem, que muitas vezes está fora de nossa percepção consciente. Quanto a isso, é natural. Cuidemos, entretanto, para que nossa inconsciência do Bem, do Bem que habita aí, onde estamos, não sufoque completamente a ação do bem em nossa vida, tornando-a sem sentido, e, quem sabe, desordenada.

Descansemos nEle, e no silêncio, percebamo-lo.

Um comentário:

orvalho do ceu disse...

Prezado Irmão na Fé
Paz e Bem!!!
Incrível a co relação dos sentimentos experimentados por mim hoje e o que acabo de ler postado por você... tem tudo a ver... a INDIFERENÇA... em "alto estilo"... OS AFETOS DESORDENADOS... a busca do MAGIS... Ah! há que se ter GRANDE ÂNIMO E GENEROSIDADE já nos ensinava Inácio de Loyola...
Percebo em muitos blogs o desejo do ser humano em SABOREAR mais do que MUITO SABER... graças sejam dadas ao Pai do Céu por tamanha Sabedoria a nós dada, sem mérito algum nosso.. PURA GRAÇA!!!
Que N.Pai S.Bento nos ensine o silêncio interior para a MAIOR GLÓRIA DE DEUS!!!
Abraços fraternos e paz para a família