segunda-feira, 17 de maio de 2010

"Pai, pelos meus te peço..."

Estamos para encerrar o Tempo Pascal e não poderia deixar de escrever agora, para que o final desses 50 dias não passasse em branco. A todos nós, é muito recomendável, nestes dias, ler o discurso que Jesus realiza na última Ceia, especialmente o capítulo 17 inteiro do Evangelho de João. Será leitura do Evangelho diariamente na semana que vem. Também o Santo Padre se debruçou com maestria sobre esse texto na Missa da Última Quinta-feira Santa, in Coena Domini, lembrando do grande benefício da Páscoa: o de que todos conheçam a Deus. Está em:  http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/homilies/2010/documents/hf_ben-xvi_hom_20100401_coena-domini_po.html , cuja leitura recomendo vivamente.

Nesse capítulo, o evangelista enxerga Jesus no contexto de sua despedida, depois de ter falado de seu desaparecimento, agora, orando ao Pai em favor dos que ficam. Nesse texto, a comunidade dos discípulos (Igreja, semente de um mundo renovado) é sentida ser o sonho profundo de Deus, no seu diálogo eterno, diálogo em que os dialogantes estão profundamente interpenetrados. É aí que a Igreja (nós) deve encontrar o seu Princípio, sua característica, sua identidade. Aliás, nessa ocasião, Jesus, ao “elevar o olhar para os céus” (cf. v.1), está realizando o mesmo movimento que o evangelista, no Prólogo (cap. 1), associa ao Verbo de Deus: “No Princípio, era o Verbo; e o Verbo estava voltado para Deus”. Esse movimento é o de Jesus, o Verbo na carne. Várias vezes, no Evangelho, Jesus se encontra nessa perspectiva: a de olhar, em tudo, para o Pai.



Entretanto, o olhar para o Pai não é, na pessoa do Filho, fonte de um certo essenismo, esquecido das realidades presentes. Pelo contrário, aí está justamente a razão de olhar com profunda compaixão (ou seja, fazendo em si a memória dos sofrimentos do outro) para todos os dramas humanos. “Rogo-vos pelos que me deste” ou “Eles são teus” são expressões que nos lembram de que, nesse contexto da Páscoa de Jesus, fomos declarados filhos de Deus. Esta é a verdade sobre nós (“consagra-os na verdade”, lembram?). De fato, se não fosse para nos envolver pela gratuidade de nosso Deus, gratuidade esquecida, esquecimento que é causa de nosso drama, de nada nos adiantaria todo esse “investimento” de Deus, em nossa carne, onde um de nós, o mais inocente, o mais verdadeiro, o mais pleno, é julgado injustamente e assassinado de maneira cruenta.


Porém, as estruturas do mundo, ministras do desespero, polarizam nossa atenção para a condição oposta. Só para ilustrar: estou acompanhando um caso de uma família que se degladia por causa de bens. Muitos de nós passamos por isso, e sabemos como é doloroso. A lógica de mercado e de consumo que impregna nossos poros assim o faz. E talvez não seja muito honesto de nossa parte dizer que jamais nos envolveríamos com isso. Há uma sede de possuir muito grande... E não só de possuir bens, mas pessoas, sentimentos, situações...


Por que será? Onde está nossa esperança? Certa feita, há uns seis anos, passava numa livraria e lia algumas páginas dos livros de Lya Luft, escritora que fez muito sucesso na Bienal do Livro de 2003. Em um deles, “Perdas e Ganhos”, a autora lembrava que a morte não nos persegue, mas nos espera. E é justamente a perspectiva da morte que oferece a possibilidade de se valorizar a vida, de amar sem perder tempo, de ser honesto sem perder tempo, de valorizar o outro e ser feliz com ele, hoje, sem perder tempo. Já diziam os antigos monges: “põe teus olhos no dia de tua morte”. Não é um mandamento, mas um exercício, para que possam, já em nossa passagem aqui na terra, ser transfiguradas todas as realidades perante nossos olhos. Dá-se, pois, em podermos perceber a riqueza e o valor eternos que encontram perante o olhar despojado de todo desejo de posse.

Vemos, pois, em Jo 17, Jesus, na perspectiva de sua morte, olhando para o Pai. Diz Santa Teresa de Jesus que a razão de toda a nossa infelicidade é não mantermos os olhos fixos em Deus. Martin Buber, grande filósofo judeu do século XX, lembra que a nossa melancolia se origina na dificuldade em se dizer “TU”, onde o outro é um outro de verdade, e não uma extensão de mim mesmo, um objeto sobre o qual só consigo dizer “ISSO”. Jesus, ao olhar para o alto, põe-nos na perspectiva deste mesmo movimento: olhar para os dons mais altos, para o dom por excelência – Deus é Pai. E estamos insertos no influxo de sua gratuidade, de seu amor e de seu plano eterno. Se pudermos dar um nome a esse ambiente, esse nome é Espírito Santo, o ambiente dialógico entre o Pai e o Filho, entre o Pai e seus filhos. Nesse ambiente, os filhos de Deus são concebidos; dele se alimentam; nele crescem e encontram a alegria para viver, mesmo com todas as provas que a vida trouxer, porque a esperança é outra...


Eis a Páscoa – sublime diálogo:

– “Tu és meu Filho – eu hoje te gerei!” (Sl 2,7)

– “Senhor, tu és meu Pai!” (Sl 88, 27)


Até mais.

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