terça-feira, 11 de maio de 2010

“Não vos alegreis pelos milagres que fazeis, mas por vossos nomes estarem escritos no céu.”

De fato, nosso Deus não prometeu riquezas, nem sucesso, nem poder, nem um mundo a nossos pés. E, ao olharmos para Jesus, vemos um homem “pobre, humilde e crucificado”, como dizia São Francisco. De fato, “os pássaros têm os seus ninhos, e as raposas têm as suas tocas, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. O Filho do Homem é continuamente provado e marcado pela perseguição, entretanto em profunda paz, porque “vem do Pai e volta para ele”. Quanto às dificuldades e perseguições, inevitáveis para quem desperta, dom para aumentar a confiança, não são fáceis de agüentar, nem para mim que escrevo nem para vocês que lêem. Depois que o Gabriel morreu, encarar um Deus que não nos livra de dificuldades tem trazido um certo sentido a tudo. Não é fácil, repito, mas, aos poucos, vai nos libertando de certas ilusões.


O fato de sermos contingentes tem um papel fundamental na nossa vida: fazer anamnese de nossa humanidade. Primeiro, permitam-me lembrar da etimologia de humanidade. Há, no latim, um termo comum, humus, que lembra terra. Paulo, na Carta aos Filipenses, ao dizer que Cristo se humilhou, quer lembrar de muito mais do que uma depreciação moral; quer-nos lembrar de sua visita às profundezas de nossa terra. Húmus, que nos lembra terra, também nos lembra homo, o homo sapiens et demens, nossa espécie. Lembra-nos a humildade e a humilhação. Além disso, em hebraico, o nome dado ao homem foi Adão, ou Adhamar, o terroso, aquele que se fragiliza ao se expor às diversas intempéries, que se descaracteriza ao entrarem em tensão suas forças internas repulsivas, mas que pode ser moldado ao receber a água e o sopro.

A água nos lembra tempestades, maremotos, afogamentos. A água nos lembra a chuva, a bebida que mata nossa sede, o líquido de limpeza. A água é um dos quatro elementos alquímicos utilizados nas antigas tradições, de modo particular em rituais de iniciação. É assim que a água foi usada no nosso Batismo. Os discípulos tiveram medo das águas, quando, no Mar da Galiléia, estiveram sob a tempestade, sentindo-se ameaçados. Não era à toa. As antigas tradições mitológicas hebraicas associavam à água a presença de Leviatã, um monstro marinho. A tempestade do Mar da Galiléia quis ser uma interpelação à fé dos discípulos, a qual foi observada por Jesus naquela ocasião. Mas as águas também foram entendidas como símbolo das profundezas interiores, tenebrosas e assustadoras. Mergulhar nas águas, como na simbologia batismal nos lembra entrar nessas profundezas, harmonizando as polaridades e as dicotomias interiores. Dizia, ainda, um Padre do Deserto, que, “de nada vale o Batismo nas águas quando não se realiza o batismo das lágrimas”. As lágrimas são uma solução fisiológica, portanto predominantemente composta de água, e simbolizam a entrada em nossa interioridade, rumo a libertação da mesma. O Batismo na água aconteceu, no começo. E não somente na água, mas também no Espírito (pneuma = sopro). O Batismo das lágrimas se encerram no dia de nossa morte.

Diz o salmista: “levantaram as torrentes sua voz, levantaram as torrentes seu fragor; muito mais que o fragor das grandes águas, poderoso é o Senhor nos altos céus” (Sl 93). Maremotos que invadem nossa vida querem fazer despertar o nosso húmus, a nossa proveniência da terra, ou seja, nossa fragilidade, mas será o ponto de partida da descoberta e do encontro com O que habita o mais profundo de nós mesmos: mais poderoso do que as águas. Nesse momento, o homem começa a ser moldado e pode se encontrar com a sua identidade verdadeira.

Esse foi o caminho daquele que se reconheceu Filho do Homem. Mesmo sabendo que não havia para um filho de homem uma vida fácil e segura, amou ser homem como nós, amou ser terroso. A Quaresma quis ser para os cristãos, nesses quarenta dias que se encerram na tarde da próxima Quinta-feira Santa, (como o Ramadã para os muçulmanos, ou o Yom Kippur, para os judeus, bem como os períodos de penitência e sobriedade de outras tradições), um tempo de amar o terroso que somos, amar o terroso que o outro é, amar o terroso onde a Realidade Suprema quis habitar; um tempo de nos deixar atrair por esta Realidade, justamente de onde ela se encontra, no Filho do Homem, passando (Pesach = Páscoa) do homem de mentira para o homem de verdade, da máscara para o rosto, da dispersão para a unidade, do pecado para a graça, do egoísmo para a gratuidade, do mundo para Deus. As águas, como a cruz, já não mais serão uma grave ameaça, mas o caminho aberto para a realização de um interior frustrado com contínuas ilusões, para o encontro como os traumas da humanidade ferida, que tanto necessita de amor e realização, num mundo onde a tecnologia, a pressa, as aparências, o dinheiro e o poder falam tão alto, mas um coração, um centro de vida foi esquecido, dando margens ao surgimento de uma letargia, uma normose, o reino da mediocridade.

Um coração foi esquecido. Mas está aí nas águas, escondido no subsolo marinho de nosso Adão. Vamos ao encontro dele?

Um comentário:

orvalho do ceu disse...

Em mim? A paz!
Ao redor? Dificuldades!
Nada é fácil para mim também...
Sinto, muitas vezes, FRAGILIDADE ao expor-me às intempéries...
A minha luta?
-Da dispersão para a UNIDADE!
Me enquadro no que escreve, meu irmão. Reflito... Recebo pistas... obrigado!
Abraços fraternos