sábado, 5 de junho de 2010

Um grande profeta surgiu entre nós, e Deus visitou o seu povo

Escutaram o Evangelho deste Domingo (X Comum)? Não? Então, segue abaixo:


Naquele tempo, Jesus dirigiu-se a uma cidade chamada Naim. Com ele iam seus discípulos e uma grande multidão. Quando chegou à porta da cidade, eis que levavam um defunto, filho único; e sua mãe era viúva. Grande multidão da cidade a acompanhava. Ao vê-la, o Senhor sentiu compaixão para com ela e lhe disse: “Não chores!” Aproximou-se, tocou o caixão, e os que o carregavam pararam. Então, Jesus disse: “Jovem, eu te ordeno, levanta-te!” O que estava morto sentou-se e começou a falar. E Jesus o entregou à sua mãe. Todos ficaram com muito medo e glorificavam a Deus, dizendo: “Um grande profeta apareceu entre nós e Deus veio visitar o seu povo”.
E a notícia do fato espalhou-se pela Judeia inteira, e por toda a redondeza.

Agora, comento:


Pode ser que nos sintamos alijados da Realidade fundante do Amor. Talvez pareçamos mortos, mas a fala do Senhor, seja na carícia, seja na dureza (Deus em si vai muito mais além de carícias e durezas, e usa de ambas para nos conquistar), vem querer abrir os nossos olhos para o Sol que nasce. Não nos enganemos! O Deus eterno, ao nos pôr aqui, levou tanto em consideração a sua obra que, destinando-a a Cristo, fez aparecer tudo o que lhe daria possibilidade de aparecer. Orientados pelo Oriente, ressuscitado dos mortos, acabamos por compreender que todos os entes da criação carregam em si uma memória de Deus. Eles não sabem disso. Só nós o podemos saber. Só nós lhes poderemos dar nomes, segundo a ordem concebida em nosso coração, iluminada pelo Sol que vem do Alto. Aí, nossa vida se torna culto, torna-se verdade, torna-se louvor, em continuidade com a ordem dada no processo contínuo da Criação.

Cabe dizer que estávamos mortos. Num momento seguinte, de volta à sinaxe, celebramos a Eucaristia. Só o homo celebrans, se ele não desconecta a palavra do coração, pode verdadeiramente enxergar. Caso contrário, os demônios lhe darão visões espetaculares. Na Eucaristia, tudo aquilo que a criação já vinha fazendo, celebrar, agora estamos a ver a plenitude de tudo aquilo, até onde vai esse Mistério.

O processo de alienação e desenraizamento de nosso tempo fez o homem perder o senso do Mistério. Tudo é tão trivial, tudo é tão racionalizável, destrinchável, sistematizável... Em nossas paróquias, corre-se o risco (se é que já não se mergulhou nisso) de o culto se transformar em um acontecimento trivial, que não traz mais nada de novo.

Pois bem, o homem morto, que está ressuscitando, e vos dirige a palavra veio se revigorar na Liturgia Sagrada. Ela é um Mistério, sempre tem algo grandioso a nos dizer (“Ele não se cala” nunca, não obstante seu aparente silêncio), e, embora compreendamos algo, sempre estará a dizer sempre mais. Na Eucaristia de hoje, Lucas narra a ressurreição que Jesus realizou no filho de uma viúva, de uma cidade chamada Naim (Lc 7,11-17). Havia uma multidão em cortejo fúnebre. O defunto era um filho de viúva. Prestemos atenção à situação dessa mulher, no contexto do tempo e do lugar em que Jesus estava. Quando o marido morre, a mulher jamais pode se dizer independente. Ela passa a ser responsabilidade do filho mais velho, e daí por diante. Se a mulher ficar só, ela não tem mais nenhum direito. Tem de pedir esmolas para sobreviver, viver de migalhas, coberta de molambos. Ela é ninguém, como os leprosos! Conseguiu o azar de ser jogada no mundo sem ninguém. E azar o dela! Essa mulher perdeu o marido, ...  e o filho responsável por ela. Não era só o seu filho, o seu querido, aquele que ela carregou por nove meses, viu crescer, brincar, aprender a Torah, trabalhar; era ela também que estava com sentença de morte, uma morte em vida. Uma mãe perder um filho já é um gládio que atinge o fundo de suas entranhas. Como se não bastasse, agora ela se tornara nada! Quem seria agora seu arrimo? Jesus, ao se deparar com a cena, sentiu compaixão dela.

Como é duro sentir-se só, abandonado! Não é à toa que Jesus sente compaixão dessa mulher. O que lhe daria a vida novamente? Não é à toa que a criação esconde possibilidades que só Deus, em sua pericorese, em seu movimento de Amor Trinitário, pode despertar. De fato, aí, Jesus, o Filho, realiza um milagre: reanima (devolve alma) ao jovem, ordenando-lhe levantar-se. O morto sentou-se e começou a falar. E Ele o entregou à mãe. A multidão teve medo e glorificou a Deus, dizendo: “Um grande profeta surgiu entre nós, e Deus visitou o seu povo”.

A pergunta é: o que Lucas quis dizer com isso? Será que só quis narrar um milagre? Será que só quis demonstrar o poder de Jesus sobre a morte? E por que não o experimentamos em nossos dias? Que quis dizer com isso?

Quem é a mulher? É Israel, abandonada à sua própria sorte. Seus filhos jamais lhe podem sustê-la. Eles morreram, suas crianças choram de fome, seus profetas e sacerdotes foram para o exílio, exílio de Deus. Lembram das Lamentações de Jeremias Profeta? “Olhai e vede se há dor semelhante à minha dor! ” A mulher é a humanidade, sem ninguém que advogue por ela, tratada como um trapo, ricos e pobres, homens e mulheres, jovens e velhos, solteiros e casados, estranhos, todos a si mesmos, num ensaio do que seja o inferno já aqui na terra.

Quando o filho lhe é devolvido, Israel e a humanidade se tornam reconciliada. Uma nova oportunidade, uma nova esperança se abre. Israel e a humanidade, judeus e gentios vão agora se congregar numa realidade chamada Igreja. A devolução do filho lembra a esperança ressurgida de Santa Maria Madalena, conforme cantamos na seqüência pascal, durante a Oitava de Páscoa. É essa a esperança ressurgida que sempre celebramos na Eucaristia.

E digo mais! A compaixão de Jesus não é a de quem se põe metaforicamente no lugar de outrem. Não é o simples sentir-se no lugar da mulher. Jesus vai para o lugar. Mas será o da mulher ou do rapaz? Jesus vai para o lugar do rapaz. O texto de Lucas, com paralelos sinóticos, fala, antes de mais nada, de Jesus, o Cristo, o Filho, aquele cuja ausência é desespero, e cuja devolução, da parte de Deus, onde a ciência não pode penetrar, mas está imerso na natureza por ele criada, é o renascer de nossa esperança. Se não fosse assim, a admiração da multidão seria apenas um susto pelo caricato fato de um morto interromper uma procissão fúnebre e começar a falar. Não! Seria muito pouco. A multidão professa a fé: “um grande profeta surgiu entre nós, e Deus visitou o seu povo!” O profeta fala de Deus, revela sua verdade. Lembram de Ezequiel, Profeta? Ele fala de um Deus que não fica indiferente à condição humana, por mais que se diga, como seus contemporâneos: “O Senhor abandonou o país, o Senhor não está vendo!” (Ez 9,9), como nossos contemporâneos. A fala de Jesus compreende algumas palavras (“levanta-te e anda”) e um grandioso gesto (“entregou-o à sua mãe”). De fato, Ele não precisa de muitas palavras, pois Ele é a Palavra, no dizer de Henri de Lubac, o Verbo abreviado, manifesto numa figura humana (mas foi uma figura assim, resplendente e fulgurante, que chamou Ezequiel à visão!).

Mas há aqui, ainda, ao menos no meu ver, uma última questão: houve uma mulher, bem real, bem concreta, bem histórica, de quem o Filho foi levado. Essa mulher é Maria, a mãe de Jesus. Será que Maria não lembrou dessa passagem evangélica que hoje escutamos? "Por que meu Filho, aquele que reanimou o filho da viúva de Naim e lhe deu consolação, não pode descer dessa cruz de escárnio?" Eis a noite de Maria! Naquela hora (cf. Jo 19,26-27), é assim que o evangelista João gosta de falar, Jesus dirigiu o olhar para Maria e disse: “eis o teu filho!”, e a ele, João, o discípulo amado: “eis a tua mãe!”, e diz ainda, “e daquela hora em diante o discípulo a levou para a sua casa”. Maria já tinha um filho. Ele lhe foi dado pelo próprio Jesus. Mas será a consolação de Maria completa? Bem, não será desprotegida socialmente, mas carregará consigo as marcas da Paixão de seu Filho.

Somente quando Cristo ressuscita dos mortos é que Maria pode ser consolada. Ela já não o terá como antes; tê-lo-á mais do que antes porque o Filho constituiu aí a humanidade reconciliada, da qual ela, João e mais uma inumerável descendência, de uma abundante filiação. São os filhos de Deus. Eles nasceram aí (“de Sião se diz: ‘nasceu nela todo homem!’”). Maria tem agora uma multidão de filhos, que já não são apenas seus, são de Deus. Deus assumiu seu destino e revigorou a esperança, de tal modo enchendo de óleo sua vasilha que jamais pudesse faltar. É assim que o Senhor nos cumula com o Espírito Santo, e nos enche dessa vida divina que nos faz perceber a grandiosidade de seu Amor.

A manhã deste Domingo seja ensolarada e os pássaros cantem a Deus alegremente! O Senhor continue sendo o nosso Sol e ilumine até as nossas sombras. Se as nuvens vierem, será refrigério. De um modo ou de outro, não nos deixará. Que jamais nos alijemos dELe. Amém!

Um comentário:

Philippe Gebara disse...

Muito belo comentário, Emerson! Faltam-nos homilias assim!!!

Parabéns pelo Epectase, muitos anos!

Blog Sinaxe - Oriente cristão:
http://sinaxe.wordpress.com