sábado, 12 de junho de 2010

Ela muito amou

A guerra que se trava aqui, agora e em todos os dias é contra a verdade. O problema é quando o homem se torna a verdade de si mesmo. Quando suas paixões, seus delírios, suas ilusões, seus encantos tomam a posição de referência absoluta na sua vida, o preço que essas condições trazem é muito alto, e sem dúvida alguma, machuca desde o nosso coração até os confins da terra. Os confins da terra foram machucados por nossas ilusões, pelos demônios de nossa fiel estimação.

O homem e suas verdades... Está aí: o Evangelho (Lc 7,36-50) da Eucaristia deste XI Domingo do Tempo Comum nos fala de um banquete. No banquete, há uma partilha, um envolvimento de corações, acontece a celebração da amizade, da família, do encontro. Quem deu o banquete? Um fariseu chamado Simão. Havia um ritual para receber o visitante: lavar-lhe os pés, em sinal de estar à disposição; dar-lhe o ósculo de saudação, como sinal de amizade e paz; ungi-lo com óleo, conforme lembra o Sl 132, sobre a suavidade de como é bom ver os irmãos juntos bem unidos. Nada disso Simão o fez. Falta de decoro, de ética, de estética?

Talvez Jesus tivesse motivos até para não entrar. Será que era realmente bem-vindo? Não esqueçamos o que o Evangelho diz instantes antes: “esses homens são como crianças, que não se põem a favor da alegria nem do pesar”. Esses homens tinham um real ressentimento com Jesus. Mas o convidaram para um banquete. Que banquete será esse? Eles não cumprem sequer os preceitos cultuais de receber o visitante...

Sim, a pergunta é exatamente esta: “será que Ele é realmente bem-vindo?” Até que ponto Deus é bem-vindo? Até que ponto a Verdade nos pode falar, estar conosco? Será que suportamos seu convívio? Entretanto, se a porta se abre, Ele entra.

Vejamos bem onde Jesus chega: na casa de um fariseu, na casa da Lei. Ali, supõe-se, está encerrada a Lei, o cumprimento da verdadeira piedade pós-exílica, no desejo de que Deus manifeste seu Messias mediante o cumprimento estrito da Lei. Naquela casa, as pessoas trazem essa carga de memórias. “Deus havia se manifestado muito desfavorável no tempo do descumprimento da Lei. Agora, vem um que é conhecido como Messias, fazer refeição com publicanos e pecadores? Como é isso? Refeições com aqueles que podem ser justamente a causa de nossa desgraça? Com aqueles que contaminam nossa terra e o nosso culto afastando o olhar de Deus? Bem, Ele venha ter conosco, mas a saudação da paz, isso Ele não o terá! Deus não falou mais; nós falamos, e falamos as palavras de Deus, as palavras da Torah. Não podemos estar errados...”

Mas quando Jesus se senta com eles, vem uma mulher de má fama, famosa por causa de seus pecados, sabe Deus quais. Um gesto impressionante, entretanto, ela fez. Não disse nada, sequer uma palavra. De fato, não tinha nada, só pecado, só uma fama desgraçada. E ai dela se dissesse algo na casa de um fariseu... Um gesto impressionante: aos pés de Jesus, derramava lágrimas, enxugava-os e os ungia com perfume. Tudo o que o dono da casa não o fez, ela o fez, sempre aos pés.

Jesus, entretanto, não se volta para ela, mas para Simão, pedindo permissão para contar uma parábola. Já que o clima entre Ele e Simão estava frio, fazia-se importante pedir permissão. É aquela parábola conhecida do que devia muito e do que devia pouco e ambos foram igualmente perdoados. Ao lançar a decisão para Simão sobre quem mais amou, ele diz achar que era o que devia mais, e foi aprovado pela resposta.

Bem, o contraponto já estava feito! A mulher realmente fez por um impulso interior o que Simão poderia ter feito ao menos por cumprimento da Lei. A mulher foi uma feliz pecadora; Simão falhou no cumprimento da Lei. Seja como for, parece que era de se esperar que a mulher fizesse assim, porque experimentou amor muito grande; Simão precisava de seguranças, de garantias, e o espaço que até então havia reservado para o amor era minúsculo.

Cabe dizer ainda que aquela guerra que Israel travava com Deus acontecia exatamente aí, no coração de Simão. Simão sofria, mas seu sofrimento estava reprimido porque alguma coisa havia tomado o lugar da verdade. Seu medo, medo de Deus, medo do outro, medo da vida, medo de assumir sua fragilidade, medo de ser frágil, medo de amar e de ser amado. Simão estava ferido, mas ninguém podia perceber isso, porque isso de nada adiantaria. Pior, alguém ferido é alguém indigno de entrar no Templo ou na sinagoga. E a guerra continuava em seu coração. Preferiu manter-se em guarda. E veja quem era, curiosamente, seu inimigo: a Verdade!

A mulher, pobre mulher, não resistiu. Também sentiu os efeitos da guerra. Pecava e pecava obstinada e publicamente. Era alguém assim, com suas tendências, seus vícios, suas fraquezas. Estava em guerra também, mas não agüentava mais. Não agüentava mais que esses condicionamentos continuassem a lhe subjugar, a subjugar a Realidade, a Única capaz de lhe dar verdadeira liberdade e verdadeiro sentido. Sofria, chorava seu sofrimento, sua indignidade, sua impossibilidade de estar junto ao povo de Deus, de sentir a companhia de Deus. Ah! Que mulher! Na sua indignidade, descobriu o verdadeiro valor da vida. Esparramada sobre as lágrimas que caíam pôde debruçar-se sobre o húmus da verdade, a realidade humilhada do seu ser humano, do seu ser simplesmente mulher.

De fato, ela descobriu o húmus da Verdade, pois a Verdade se manifestou como húmus e estava ali diante dela. Como perder uma oportunidade como essa? Ah! O salmista... Diz ele: “a verdade e o amor se encontrarão” (Sl 84,11). Eles se encontraram. O ascendente, mas tão vacilante amor humano encontrou a medida de seu desejo: a Verdade, manifestada como amor descendente, como misericórdia, o Amor descendente do próprio Deus. Tudo aquilo que Deus esperara de Israel, e que o próprio Sl 77 narra, dizendo o quanto lhe favoreceu, aconteceu ali, naquela cena, na casa do fariseu Simão. Bendito seja Simão, cuja casa serviu de espaço para que a verdade e o amor se encontrassem!

Nesse dia, iniciou-se na vida dessa mulher um novo tempo. Sua alma era sua alma, mas não era a mesma alma. Seu corpo era aquele seu corpo, outrora objeto do pecado, mas não era o mesmo corpo. São Paulo, em 1Cor 15, fala de um corpo carnal, um corpo psíquico e um corpo pneumático (algumas traduções usam o termo espiritual, mas é ambíguo). Pois bem, o homem psíquico é o homem fechado em sua racionalidade, o bem pensante. É Simão, o fariseu! Temos muitos desses hoje em dia... O homem carnal é o homem perdido até de sua racionalidade: que dizer da pecadora? O homem pneumático é o pneumatóforo, portador do Espírito. O pneumático é aquele que carrega a misericórdia de Deus aonde quer que vá, como consolação para si e para os outros. Sua vida é um gesto contínuo de adoração. É um sacramento vivo, onde quer que esteja. Poderá até ser odiado, pois a verdade que carrega queima como fogo os raciocínios dos psíquicos e a animalidade dos carnais, ele mesmo tendo sido queimado nesse fogo. Esse homem é, em primeira análise, Cristo Jesus. Depois, todos aqueles que assim o são, todos aqueles que foram queimados por esse fogo de sua Verdade, de seu Espírito. É por isso que os mártires se deixam queimar ou derramar sangue em nome de Cristo: sua vida é fogo do Espírito e Sangue de Cristo! Quem puder entender, entenda!

O corpo pneumático é o corpo ressuscitado. No momento em que o amor e a verdade se encontraram, que aconteceu? “Jesus disse à mulher: ‘teus pecados estão perdoados’ (...) Tua fé te salvou! Vai em paz!’”  Sua vida não poderia exalar mais do que o odor desse momento, sua voz não poderia falar de outra coisa que não dessa ocasião-chave de seu novo nascimento, seus olhos não podiam brilhar mais do que agora, sua alegria indizível poderia ultrapassar todas as guerras que os homens ou os demônios pudessem travar contra ela, porque não é contra ela que o fazem, mas contra a Verdade, contra Deus, e Este habita em todas as células de seu corpo, fala nelas e as rege na vontade consciente e decidida em amá-lo.

E mais uma palavrinha que considero importante. Quem é Simão e quem é a mulher? Num certo sentido, Simão é Israel. É lá que Cristo entra, é lá que Cristo vai dialogar com os escribas em sua juventude (Lc 2,46-47). De fato, vai-lhes encher de estupefação, mas também de revolta. É sobre Israel que recaem as palavras do Salmo 2: “por que os povos agitados se revoltam? Porque tramam as nações projetos vãos?” Simão é aquele Israel, cujo próprio nome diz, luta com Deus, como assim o fez Jacó no vau do Jaboc (Gn 32,23-33), recebendo o nome de Israel.

A mulher é a Igreja, aquela que, de Israel e das nações, vem aos pés da Verdade e se põe humildemente com lágrimas, confessando seus fracassos, suas misérias, a saudade que sente de seu Deus, da Verdade, o desejo de seu Cristo, de seu Amado, em meio à condição humilhada, condição essa em que Ele mesmo se pôs para que pudesse ser encontrado, pois caso contrário jamais o seria, a guerra continuaria, ..., e seria excessivamente desleal. Justiça foi feita!

“A verdade e o amor se encontrarão,
A justiça e a paz se abraçarão.
Da terra brotará a fidelidade,
E a justiça olhará dos altos dos céus”.

Tudo isso aconteceu hoje!

Em Cristo Jesus, Nosso Senhor, a quem sejam dadas a glória, a honra e o louvor, pelos séculos dos séculos. Amém!

2 comentários:

orvalho do ceu disse...

Olá, também passo para deixar pra vc o meu mais nobre sentimento: o AMOR
Tudo de bom hoje e sempre.
É muito bom participar deste dia com vc.
Abraços fraternais

Gabriel Ferreira disse...

Caro Emerson.

Muito bom ver mais blogs católicos de qualidade surgindo.

Em Cristo.
G.