terça-feira, 24 de agosto de 2010

Deixai vir a mim as criancinhas porque o Reino de Deus é dos que são como elas

O capítulo 10 do Livro de São Marcos é marcado por diversos matizes, principalmente acerca do Matrimônio, sacramento da fé, trazido à tona pelos valores perenes do Evangelho, onde Jesus remete ao Princípio, fonte da unidade e da indissolubilidade da família (sempre heterossexual, diga-se de passagem) nos planos de Deus. Sobre isso, muitos já falaram, e há diversos comentários em livros, revistas e na Internet. Cabe pormos em prática o amor esponsal entre Cristo e a Igreja nas nossas vidas conjugais, tais quais consagrações ao Senhor.

O que me chama a atenção no momento são as últimas palavras proferidas dentro desse contexto. Após o confronto de Jesus com os fariseus e a explicação de suas palavras aos discípulos, trouxeram-lhes algumas crianças para que Jesus, impondo-lhes as mãos, as abençoasse. Os discípulos as afastavam, mas Jesus lhes responde com a primeira frase deste texto, que se encontra nesse contexto do Evangelho de Marcos. Elas parecem tão simples, tão pouco evocadora, mas nos diz tanto!!!

Primeiro, porque a mesma palavra que se traduz por criança em aramaico (“talyia”) também se traduz como servo e cordeiro. Vejamos a intencionalidade do autor sagrado em trazer essas figuras à tona, lembrando do Servo Sofredor, imagem do crucificado no Livro do Profeta Isaías, e do Cordeiro de Deus, apontado por João Batista como aquele que tira o pecado do mundo, plenitude do cordeiro pascal expiatório da Páscoa judaica, como Páscoa para o mundo inteiro, em sua Paixão, Morte e Ressurreição. A criança, o servo e o cordeiro são os menos significativos da sociedade judaica de então, carregando em si o fardo das gerações. Mas Jesus os evoca como caminhos necessários para alcançar o Reino de Deus.

Desta feita, vamos ao segundo ponto: a criança é símbolo do caminho para o Reino de Deus. Visto sob o prisma do Sacramento do Matrimônio, a cujo contexto esse versículo pertence, podemos pensar nos filhos de um casal cristão. Eles são a expressão visível de que “já não são dois, mas uma só carne”. Pensando que todo ser humano surge a partir de uma união sexual de um homem com uma mulher, é como se a fragmentação da humanidade se desfizesse (ao menos, à maneira de primícias, um símbolo eficaz) na unificação de tal forma entre homem e mulher que ali dois pedaços se juntassem para não mais serem pedaços, mas um vaso, ou, ao menos, uma parte maior dele, e a expressão disso está no filho, pessoa única, indivisa, expressão do amor entre o pai e a mãe. Pensar num Matrimônio sem filhos e em filhos sem Matrimônio é alheio ao Evangelho de Cristo e a tudo que se possa dizer cristão.

Um comentário a esse respeito, eu gostaria de fazer lembrando de uma figura mitológica da tradição mística judaica. Após a criação, com o pecado original, o universo, todo uno, como seu Criador, quebrou-se, e o trabalho de toda a existência humana, e de Deus é o de juntar os cacos do vaso quebrado que se tornou o universo. A esse processo, os cabalistas chamam “tikkun”. Nós sabemos quem realiza a “tikkun”: Cristo morto e ressuscitado. No amor, no seu amor, aquele que se entrega pelo outro até a morte, aquele que pára no caminho, qual bom samaritano, para curar as feridas do moribundo e pagar todas as suas despesas de hospedagem enquanto se recupera. O Amor de Cristo é que se deixa ferir com todos os cacos pontiagudos para fazê-lo um só vaso. Esse Amor aponta para o Reino dos Céus.

Lembrado este aspecto, sigamos ao terceiro ponto: já que “não são dois, mas uma só carne”, e o que Deus uniu o homem não tem como separar, pressupõe-se que o amor humano, tão vacilante, tão cheio de hesitações, seria insuficiente para manter esses cacos grudados. O amor humano vai pensar apenas em justaposições. Elas serão importantes, mas só podem cumprir seu papel se as junções forem espaço de troca, de união, de renúncia à penetração invasiva do espaço do Outro, e ao mesmo tempo de permissão para que o Outro entre em nossa vida. Ora, muitas vezes, isso causa feridas, mas se se trata de feridas pelas quais optamos por amor, já não são mais feridas simplesmente, são marcas de amor, do Amor pascal de Cristo e da Igreja.

O quarto aspecto diz respeito às conseqüências desse diálogo ontológico: o vaso novo, que surge desse amor, a criança, não será somente um produto de uma relação sexual, puntual no tempo e no espaço. Será sempre a conseqüência de um processo de geração, onde o elemento gerador não são mais o pai ou a mãe, mas o Amor. O Amor de Cristo é quem nos gera a todos, especialmente quando esse amor é transmitido a nós desde a mais tenra infância. Quantas expressões existem para manifestar esse amor! A maior delas é a criança enxergar no coração de seus pais a existência de um Outro, O que transcende, O que marca as suas vidas com os sinais da Eternidade, sejam os sacramentos, seja o amor em família, o amor à Igreja, o serviço aos pobres, o carinho e a dedicação para com a criança, os ensinamentos, as correções..., enfim, o acolhimento em pessoa, que só o Cristo pode manifestar em nossas vidas. Assim, não negamos o Reino de Deus às crianças, mas apresentamo-las a Jesus e mostramos a elas o quanto é fascinante viver com Ele. Esse gesto possibilita que Jesus, que sempre respeita nossa liberdade, abrace nossos filhos, e eles já não sejam tão somente nossos filhos, mas filhos de Deus. É isso que os pais cristãos querem celebrar quando batizam suas crianças, quando lhes possibilitam a Primeira Comunhão (e todas as demais, a comunhão de vida inteira). “Deixai vir a mim as criancinhas”. É por elas, é sendo uma delas, é vivendo o carinho de Deus sendo uma delas, que alcançamos a felicidade, não obstante todas as vozes contrárias do mundo. Em certo sentido, a criança salva o mundo, pois o Cordeiro de Deus tira o pecado do mundo, e o Verbo, quando se fez carne, nasceu como criança, o Menino Jesus. Possibilitar o encontro da criança com Cristo, é possibilitar o encontro de nosso mundo com Cristo, em cada singularidade pueril, que representa um futuro pela frente. É, numa palavra, possibilitar o nosso encontro com Cristo. Nelas, nossa vida é, em certo sentido, reciclada, renovada, ressuscitada.

O quinto ponto, que se segue a este, é a visão do oposto. Vêem em que inferno nosso mundo se encontra? Uns dizem que é por falta de políticas públicas, outros dizem ser por faltas graves na educação, outros ainda falam ser por falta de emprego. Daí, a criança e o jovem entram na prostituição, no crime organizado, na droga e em toda sorte de maldições de nossa atualidade. Pudera! Não conheceram uma família de verdade (tendo os pais morado juntos ou não), não conheceram o amor, não conheceram o valor do corpo perante Deus e perante as responsabilidades da vida, não conheceram um valor significativo para a existência, não experimentaram a correção, o perdão, o carinho, o abraço, a harmonia, a oração, a pequenez de ser humano (e criança!), não sentiram, numa palavra, o que é viver. Queremos uma sociedade de homens e mulheres de verdade? Sejamos os primeiros a sê-lo com nossas crianças, ante a esperança e a perspectiva do Reino de Deus. Elas estão aqui para conhecê-lo e para nos fazê-lo conhecer, se que ainda não o conhecemos. Não é para outro fim, seja ele dinheiro, fama, prestígio ou boa-vida. Pode ser que algumas dessas coisas sejam meios importantes, mas elas estão aqui para ser.

O sexto ponto toca a questão delicada do aborto. Não preciso mais falar tanto sobre esse aspecto, já que o significado da criança já nos disse tanto e ainda dirá. Mas é importante dizer que, quem aborta perde a chance de ver florescer o Reino de Deus, perde a oportunidade de ver frutificar a esperança, mesmo contra toda esperança deste mundo. Quem aborta impede radicalmente o encontro com Cristo Jesus, Sentido e Razão de nosso viver. E quem vota em candidatos que defendem o aborto faz o mesmo.

Gostaria de encerrar esse breve ensaio, que vocês tiveram a paciência de ler, com o sétimo ponto: o papel da paternidade e da maternidade. São uma via ascética, um modo de buscar a conversão de nosso coração para o Amor, ante a responsabilidade assumida na presença de Deus, ante a presença do filho que exigirá um contínuo desdobramento de nossa vida, uma perene dilatação de nosso coração para o Amor de Cristo. Se, por um lado, é um caminho contemplativo, onde muitas vezes o silêncio será manifesto dentro de nós enquanto sendo uma contínua atenção à vontade de Deus e às exigências da geração (ver acima) do filho, sendo um contínuo esforço para que nossa família continue coesa no Amor de Cristo, que vence nossas hesitações e limitações, é por outro lado, o caminho para a “theósis”, a deificação, segundo a Tradição grega, ou seja, nele, situamo-nos no papel mais sublime que o homem pode ter: a participação na paternidade de Deus, único Pai, em essência. Ser pai é participar da paternidade do Pai. Lembram-se de Jesus quando disse: “não chameis a ninguém de pai, porque um só é o vosso Pai que está nos céus”? Pois bem, esse é o grande dom. Para o cristão, um filho só o chama de pai porque reconhece nele uma imagem do verdadeiro Pai, aquele que distribui os dons, de modo particular o Dom, o Espírito Santo, manifesto no Amor de Cristo. Assim, nossa paternidade é oração e contínua presença do Senhor em nossas vidas.

Dedico esse texto de modo particular aos nossos filhos, Gabriel José, tão saudoso e amado, que do seio do Pai intercede por nós, guarda-nos e guia-nos para que sejamos, eu e minha esposa, pai e mãe de verdade, Davi e Thalita, nossos filhos amados, a quem procuramos dedicar essa paternidade, como caminho de deificação para nós e para eles, para o futuro que se desdobra no Reino de Deus. Eles me inspiraram bastante acerca das palavras acima.

Um comentário:

orvalho do ceu disse...

Olá, Emerson
Paz!
Constatar que hoje em dia filho não é mais expressão de amor é durto mas é real...
A crinça de hoje não tem mais possibilidade quase de enxergar nos seus pais a existência de um Outro... é também lastimável!
Mas o AMOR insiste em nos Amar... e, atentos n'Ele... podemos gerar uma metanóia nessa sociedade... Eu creio na força do Bem...
Abraços fraternos e votos de serenidade.