segunda-feira, 2 de maio de 2011

Ressurreição e a Eucaristia, segundo Ratzinger - Introdução ao Cristianismo


Meus caros, 

mais cedo abordávamos como o Papa Bento XVI tratava a questão do anúncio alegre do Reino encontra seu eco mais profundo apenas e unicamente no Mistério Pascal. Agora, gostaria de  tomar um texto mais antigo dele, ainda de quando era padre, de 1970, publicado em português pela Editora Herder, agora já reeditado por outras. É a "Introdução ao Cristianismo". Lá, o nosso estimadíssimo autor faz uma leitura profunda dos artigos do Credo. E nessa obra, ele comenta a Eucaristia dentro da perspectiva da Ressurreição. Observando as duas obras, temos um suplemento incrível. Convido-o a degustarmos esta outra obra tão bendita. Partamos do princípio que Aquele que é reconhecido permanece de certa forma desconhecido, um desconhecido que revela o que lhe apraz. O papa segue normal, eu, em itálico, como de costume nesses casos.




"Examinemos mais de perto, sob este aspecto, o episódio dos discípulos de Emaús, com que já nos deparamos de passagem. À primeira vista tem-se a impressão de estarmos diante de uma descrição totalmente terrena, maciça, como se nada restasse do mistério indescritível que encontramos nos relatos paulinos. Parece predominar totalmente a tendência de enfeitar, de lançar mão de um concreto lendário, apoiada numa apologética que busca dados palpáveis, recolocando completamente o Senhor ressuscitado dentro da história terrena. Contudo opõe-se a isto o seu misterioso aparecimento e o não menos misterioso desaparecimento. Mais ainda se opõe a circunstância de ele se conservar irreconhecível ao olhar comum. Não é possível identificá-lo como durante a sua vida terrena. Ele se descobre exclusivamente na esfera da fé; mediante a explicação da Escritura incendeia o coração dos dois viandantes, e à fracção do pão abre-lhes os olhos. Temos aí a indicação dos dois elementos fundamentais da antiga liturgia cristã a qual é integrada de liturgia da palavra (leitura e interpretação da Escritura) e liturgia da fracção do pão eucarístico. Assim o evangelista faz ver que o encontro com o Ressuscitado se situa em um plano totalmente novo; tenta descrever o indescritível, mediante o código dos acontecimentos litúrgicos. Com isto oferece, simultaneamente, uma teologia da Ressurreição e da liturgia: o Ressuscitado é encontrado na palavra e no sacramento; o serviço divino é a maneira pela qual ele se nos torna tangível e reconhecível como vivo. Vice-versa, liturgia baseia-se no mistério pascal; há de ser compreendida como a aproximação do Senhor a nós, a tornar-se companheiro nosso de viagem, incendiando o coração embotado, abrindo os olhos fechados. Cristo continua indo conosco, volta sempre a encontrar-nos desanimados e queixosos, continua dispondo da força para fazer-nos ver."



"Naturalmente isto tudo diz apenas a metade. O testemunho do Novo Testamento estaria falseado, se quiséssemos ficar apenas nisto. A experiência do Ressuscitado é algo diverso do encontro com um homem da nossa história; muito menos ainda pode ela ser reduzida a conversas à mesa e a recordações que se tivessem afinal condensado na idéia de que ele vive e de que a sua obra prossegue. Uma explicação assim aplaina o evento na direção oposta, nivelando-o à esfera humana, privando-o do que lhe é peculiar. Os relatos da ressurreição são algo diferente e algo mais que meras cenas litúrgicas camufladas: eles permitem ver o acontecimento fundamental sobre o qual se ergue toda a liturgia cristã. Testemunham um acontecimento que não brotou dos corações dos discípulos, mas que lhes sobreveio de fora, dominando-os, de encontro à sua dúvida, e infundindo-lhes a certeza de que "o Senhor ressuscitou verdadeiramente". (Observação minha: muitos teólogos, ditos modernos ou liberais, que já não acreditam mais no Mistério de Deus - diga-se a verdade - continuam aí, na Igreja Católica, nem a abandonando nem se convertendo, mas pelo contrário pervertendo o coração de fiéis e até mesmo de membros do clero. Pronto: terreno fértil para todo tipo de abuso litúrgico. E não estamos falando de ritualismo; estamos falando daquilo que é o 'centro e o ápice de nossa fé', conforme nos lembra o próprio Concílio Vaticano II. Com isso, minam a fé dos fiéis por dentro, deixando que eles esqueçam que aquele rito, aquele gesto, aquelas palavras nos falam mais do que elas mesmas dizem, apontam para o inefável, fazem arder o coração, desembota nossa visão. O homem, a comunidade, o padre, o animador musical, o coral, as tais e ingratas equipes de liturgia não podem, não conseguem não têm o poder de suscitar um acontecimento tão grande; se não se reconhece que a ação nos precede, nos envolve e vai aidante de nós, o nosso olhar sobre os Sagrados Mistérios está destinado à cegueira. De fato, a Eucaristia é um dom do alto). O que jazera no sepulcro não está mais lá, mas vive – é realmente ele mesmo quem vive. O que fora arrebatado para o outro mundo de Deus, mostrou-se entretanto ser tão poderoso que tornava palpável ser ele mesmo quem estava diante deles; mostrou ter-se comprovado nele mais forte o poder do amor do que o poder da morte.


        Somente tomando isto tudo tão a sério como o que fora dito anteriormente é que se conservará a fidelidade ao testemunho do Novo Testamento; só assim se salvará a sua seriedade cosmo-histórica. A tentativa mais que cômoda de, por um lado, dispensar a fé no mistério da potente atuação de Deus neste mundo, e no entanto simultaneamente querer ter a satisfação de conservar-se no terreno da mensagem bíblica esta tentativa conduz ao vácuo: não satisfaz nem à honestidade da razão nem às razões da fé. Não é possível conservar juntas a fé cristã e a "religião nos limites da razão pura"; a opção é inevitável. Naturalmente, o crente verá com clareza crescente quão repleta de razão está a adesão àquele amor que venceu a morte.



E lembro ainda, caro irmão, tomemos cuidado para que, com isso, não venha a morrer a nossa fé e nossa esperança diante do imorredouro. A cruz sem a ressurreição seria masoquismo; a ressurreição sem a cruz seria um devaneio etéreo; a Eucaristia sem ambas (radicadas em cada gesto, palavra, seguindo o ritual da Santa Igreja e num espírito de profundo entrosamento com o Mistério Pascal, em oração) correria de um lado a outro: do ritualismo preciosista ao espetáculo circense, passando mesmo pelo indiferentismo ritual. E isso não é o sagrado, não permite irromper o Cristo na história, e muito menos elevar o nosso espírito à eternidade. Sobra apenas a chatice dos mesmos apelos infra-históricos, como aqueles que desanimavam os discípulos de Emaús.

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