quarta-feira, 18 de maio de 2011

Aprofundando o Mistério Pascal

“Estêvão, cheio do Espírito Santo, olhou para a céu e viu a glória de Deus e Jesus, de pé, à direita de Deus. E disse: ‘Estou vendo o céu aberto, e o Filho do Homem, de pé, à direita de Deus’ ” (At 7,55-56).



Essas misteriosas palavras são citadas em continuidade com o testemunho do Mistério Pascal que continuamos a celebrar por cinqüenta dias, até a grandiosa Solenidade de Pentecostes. Elas nos fazem lembrar as palavras do Salmo 2: “Por que os povos agitados se revoltam? Por que tramam as nações projetos vãos? Por que os reis de toda a terra se reúnem contra o Deus Onipotente e o seu ungido?”

Porque não conheceram a Deus.

Mas quem o conheceu? São Paulo o pergunta na Carta aos Romanos. Conheceu-o quem chorou, quem sentiu suas misérias, sua pequenez, sua esperança desfalecer, quem encontrou no húmus da terra sua verdadeira raiz perecível e recebeu a graça de contemplar aquele Cristo que, tendo vivido essas mesmas coisas, até a morte ignominiosa, ressuscitou pela mais livre ação do Pai, incondicionada às leis do tempo e do espaço, e, mostrando que, as leis do tempo e do espaço são, essas sim, condicionadas a uma outra Lei. Sendo assim, aquele que o viu, que o escutou, que o tocou, que experimentou do Verbo da vida, percebeu que sua vida já não é mais tão somente uma sucessão de fatos justapostos, uma colcha de retalhos, mas um espaço eminentemente vazio, para que possa ser preenchido pela glória, pela consistência, pela densidade da vida divina. Essa vida tem um nome e é uma Pessoa: é o Espírito Santo.

Caros irmãos, sejamos honestos diante de Nosso Senhor: fomos nós que o matamos, fomos nós que lhe renegamos, fomos nós que lhe vendemos por trinta moedas de prata ou por ainda menos, fomos nós que o abandonamos. Nossa vida fala dessas coisas o tempo inteiro.

Pois bem, dessas coisas não escapam sequer os apóstolos. Foram homens do tempo, de um tempo. Eles esperavam glória, honra, reino, poder, vitória sobre o Império. Esperavam um messias à sua maneira, um rei que lhes justificasse os caprichos, um Deus que se dobrasse a seus impulsos mais profundos. E, no entanto, aquele que lhes veio quebrou todas as suas expectativas. Caros irmãos, sejamos honestos: Cristo nos desconcerta. Ele quebra nossos esquemas, rompe nossos planos, abre nossa realidade a uma Realidade que ainda não esperávamos. Em certo sentido, junto com sua morte, vai nossas humanas esperanças, nossas expectativas, nossos loucos e megalômanos ímpetos.

É típico de nosso tempo falar em uma racionalidade fechada em si mesma. É nessa racionalidade que estão situadas nossas políticas, nossas universidades, nossos centros de pesquisa, nossa avaliação da história, nosso julgamento dos fatos hodiernos. E se isso vale para os pagãos, os ateus práticos, os agnósticos, os sem esperança, aqueles que em verdade constituem a esmagadora maioria de pessoas em nosso tempo, mesmo freqüentando igrejas e outros templos, vale de maneira surpreendentemente maior para nós, cristãos. E por um motivo muito simples: não sabemos mais que fé nós professamos. Verdade seja dita, não sabemos mais por que somos cristãos, não temos mais aquela certeza, ao mesmo tempo, inocente de uma pomba e esperta de uma serpente, aquela certeza originária da Igreja, dos primeiros apóstolos, de que Cristo ressuscitou verdadeiramente. Tenho uma série de reservas (incluindo-me) ao fato de nossas paróquias terem muita gente que faça coisas da Igreja, se envolvam com movimentos, festas, corais, grupos de oração e tantas outras legítimas circunstâncias, metam-se a fazer as coisas de Cristo, mas esqueçam-se ... do Cristo. A vergonha de nossa cristandade ocidental hodierna é pensar que testemunho é isso: meter-se a fazer coisas, para atrair a populaça pagã, fazendo-a pensar que assim se converte; lotar igrejas em missas de Domingo, sem se dar conta que o Evangelho começa a ser perjurado ali mesmo, porque o mundo pensa igualzinho aos apóstolos ou os discípulos de Emaús antes da Páscoa: “nós pensávamos que fosse salvar Israel, mas...”

A vergonha de meu tempo, a minha vergonha como cristão, em tempos de crise na Igreja, quando a Barca de Pedro é sacudida de alto a baixo pelos ventos, tempestades e ondas monstruosas do mar da existência, é saber que tudo isso existe e não tomamos sequer o pé da situação. Pior: é ver uma cristandade levianamente levada a pensar que está cumprindo a vontade de Deus. Eu, sinceramente, tenho muitas dúvidas de se estou cumprindo a vontade de Deus. E minha dúvida se estende mesmo às comunidades onde de alguma forma estou inserido. Gostaria mesmo de estar e peço insistentemente a Deus que “seja feita a sua vontade”, mas, como diria Jeremias Profeta, “em tudo é enganador o coração, e isto é incurável, quem poderá conhecê-lo?”

Hoje, parece que caminhamos numa linha tênue entre o pecado e a graça. Certamente, essa linha sempre foi tênue, assim como testemunham os Santos Padres do Deserto. Mas esses homens de virtude heróica puderam assimilar de maneira muito original o ensinamento dos apóstolos. O que eles faziam? Somente uma coisa, dizia um deles: “caía e levantava”. Deus do céu! Que palavras simples! O termo usado para um modo de viver tão simples é o que se refere exatamente ao Mistério Pascal: cair e levantar. Esse modo de viver atraiu milhares de pessoas ao deserto em seu tempo para que fossem simplesmente “cair e levantar”, dia após dia, instante após instante. E somente porque o instante é a circunstância onde a esterilidade de nossos atos pode ser fecundada com a graça de Cristo, ou seja, o instante pode ser eterno, que cair e levantar pode desde já ser a realização do Mistério Pascal em nossa vida.

Cabe, no entanto, reconhecermos algo: há uma aliança a ser feita. Da mesma forma que Deus age livremente realizando o Mistério de Cristo, sua encarnação virginal no seio virginal de Maria, sua vida, sua morte vergonhosa, sua sepultura escandalosamente silenciosa, como o próprio silêncio contemplativo de nosso Deus, e sua inaudita e inefável Ressurreição dentre os mortos, é necessária uma atitude livre de nossa parte, livre de condicionamentos quaisquer que sejam. Essa atitude de aliança, de pacto, de cumplicidade, de estreito vínculo com Deus se dá pela fé neste Mistério, fé esta que age em nosso “cair e levantar”, cada dia, cada instante. Cumpre lembrar-se de que ao cairmos é Cristo que é semeado na terra, na nossa terra, que somos nós mesmos, para que o Pai o ressuscite dos mortos, ressuscitando nossa esperança nEle.

Voltemos à comunidade apostólica: lembremos do olhar de Pedro, após negar Jesus três vezes; lembremos do olhar que Jesus Ressuscitado lhe dirige quando lhe pergunta três vezes pelo seu amor. Pedro chora copiosamente, Pedro reconhece sua humanidade humilhada, e ... simplesmente põe sua vida no olhar de Jesus. Diante de Pedro, aquele Pedro impetuoso, está aquele cujo olhar jamais lhe sairá de seu olhar, por mais que sua presença física não aconteça mais de maneira desvelada até o fim dos tempos. Para ele, esse olhar será como os céus escancarados em sua vida, para sempre. O testemunho da Igreja é o testemunho da abertura Pedro mesmo, ao se dirigir aos diversos povos e aos judeus em Pentecostes vai lembrar das palavras de Davi, cantadas no Salmo 15: “tenho sempre o Senhor ante meus olhos, pois se o tenho a meu lado não vacilo”.

Agora, voltemos ao primeiro parágrafo. Estêvão vê os céus abertos. Essa passagem muitas vezes não é notada. Por muitos, pode-se passar como uma visão subjetiva, um momento psíquico alterado diante da iminência de sua morte por lapidação. Os céus abertos que Estêvão vê é o próprio Mistério Pascal acontecendo na sua vida, quando se une aos sofrimentos de seu Senhor. É na miséria em que se encontra, entregue nas mãos dos ímpios, que Estêvão viverá com profundidade e radicalidade o Mistério da Páscoa de Cristo.

Juntamente com ele, vários outros assim o testemunharam. Por exemplo, conforme o Martirológio Romano, há poucos dias, comemorava-se Santa Teodora, virgem e mártir. O mesmo descreve assim seus últimos momentos: “Recusando-se a sacrificar aos ídolos, respondeu ao prefeito: ‘Acima de tudo devo adorar só Jesus Cristo, que me concedeu a verdadeira liberdade e a verdadeira nobreza’. O prefeito mandou então que ela fosse levada a um lugar de prostituição. Mas, por admirável favor de Deus, um dos cristãos, chamado Dídimo, a tirou de lá imediatamente. Mais tarde, porém, na perseguição de Diocleciano, sob o prefeito Eustrácio, ele foi morto com a mesma virgem, e assim receberam juntos a nobilíssima coroa do martírio.” Desde tempos imemoriais os cristãos professam a fé, especialmente no Batismo e na sua renovação de promessas cada Domingo. Mas sabem em que circunstâncias era professada a fé nesses tempos? Leiam um trecho da Ata do Martírio de São Justino (do Ofício Divino, de 1º de junho, já publicado neste blog): aqui.

Era assim que nossos antepassados professavam a fé. Dá o que pensar no modo como a professamos, na Liturgia e na vida...

Lembra-nos Olivier Clément, grande teólogo ortodoxo do século XX, que o martírio é como que uma segunda natureza na vida de um homem. De tal modo, aquele ser se deparou continuamente com Cristo em sua história que, na hora da mais radical impotência, na hora em que todas as suas forças humanas lhe deveriam negar a morte (e com isso negar a Cristo), uma força que não nasceu com eles, mas nasceu, foi regada continuamente e cresceu neles pôde falar mais alto. Se todas as criaturas, conforme nos lembra São Gregório de Nazianzo, carregam em si uma expressão do Criador, o mártir carrega em si a expressão do Salvador.

Nessa hora, em que nos parece ser o cristianismo algo muito mais sério do que aquilo que assumimos quando resolvemos ser cristãos de algum modo, a ponto de desfalecerem nossos sentido, vem em nosso socorro a palavra que São Paulo dirige a Timóteo: “lembra-te de Jesus Cristo, da descendência de Davi, ressuscitado dentre os mortos.”. Lembrar-se de Cristo é mais do que ter uma lembrança de uma imagem ou de um gesto simpático dele; lembrar-se de Cristo é lembrar-se de sua Páscoa. É algo tão grandioso que somente nos resta dizer: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”.

Lembrar-se de Cristo é acima de tudo continuar em nossa vida a ação eucarística. Em cada Missa, esse Mistério revela sua presença e atualidade: “nós matamos o autor da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos”, lembrava-nos Pedro no último Domingo, dirigindo essas palavras aqueles que deveriam se converter. E dizia mais: “e disso somos testemunhas”. De fato, em cada Eucaristia cantamos: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa Ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!”

Pois bem! É esse anúncio e esse desejo que precisa ser manifesto em nossa vida inteira. Lembro do texto último que enviara aos senhores daquela razão fundamental que esses 50 dias de Páscoa nos querem fazer lembrar: o papel e a ação dos sacramentos em nossa vida, e o significado de sermos cristãos. Se, de fato, (ainda) não há uma perseguição declarada em nosso ambiente, somente seremos firmes num combate, ou seja, fiéis de verdade, como os mártires, se soubermos combater tudo aquilo que é inimizade com Deus hoje, a partir de dentro de nós. Trata-se, de fato, de perscrutar a vontade, a inteligência e o coração. Dentro de nós, para os que não vivemos de maneira superficial, à moda do mundo, trava-se um combate por vezes exaustivo entre nossas paixões e a vontade de Deus, nossa ilusão mascarada e a Realidade, aquilo que para nós é bem e o Verdadeiro e Sumo Bem. Lembram-se do supracitado testemunho de Santa Teodora? Ele “me concedeu a verdadeira liberdade”. O que é a verdadeira liberdade senão esse mistério que acontece na mais íntima realidade de nosso ser, o mistério de cair e levantar, sempre, diante de Deus, até que, de fato, possamos estar de pé no Dia da vinda do Filho do Homem. Esse Dia, a Páscoa última e eterna, é tudo aquilo que um cristão pode ansiar por detrás de todos os anseios humanos. É por isso que repetimos: “Maranathá”, vinde, Senhor Jesus! Em Santo Estêvão, esse Dia se antecipou em seu olhar, quando antes da morte pôde ter a bem-aventurada visão dos céus abertos.

A verdadeira liberdade está no exercício que a Páscoa de Cristo nos propõe cada dia, para que cada instante seja impregnado do Eterno Instante, do sabor do Dia Último e Primeiro de nossas vidas. Santo Inácio de Antioquia, ao se dirigir ao seu martírio, que se daria em Roma, no século II, disse aos romanos que queriam livrar-lhe do patíbulo: “quando eu chegar lá, serei homem!” Sim, meus caros, Inácio caridosamente nos lembra: ainda não somos homens de verdade.

Caros irmãos, se nossas promessas, votos e profissões às vezes saem de nossa boca com certa leviandade de coração, não desanimemos. “Temos junto do Pai um Defensor, Jesus Cristo, o justo”. Ele já realizou a grande promessa que Deus tinha feito antes pela Lei e pelos Profetas. Aliás, é isso que Jesus realiza no cenáculo, quando visita os Apóstolos em sua sepultura forjada, onde esperariam a morte seja por inanição seja pelo ataque dos judeus, e em cada Eucaristia: abrir a nossa inteligência, tão fechada, tão tacanha, tão mesquinha...

Junto com todos vocês, gostaria de começar e recomeçar, nesta Páscoa, a ser cristão de verdade. Esse anúncio, esse testemunho, esse Mistério não se reduz a uma doutrina, a um código moral, a um ritual ou a mais uma das vãs filosofias deste mundo. Ao mesmo tempo, é o Princípio de toda ação religiosa, doutrinal e ritual, e a única e verdadeira Filosofia (amor ao Logos, à Razão de Ser, que não se manteve etérea, mas habita entre nós). Esse Mistério é a raiz essencial da verdadeira vida, diria, quando chegarmos lá, a nossa única e Eterna Vida.

Ao Cristo morto e Ressuscitado, Alfa e Ômega, Princípio e Fim, a Ele a glória, a honra e o poder agora e em eternidade. Amém!

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