sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

O Mistério da Virgem maria, Mãe de Deus

“Nós vos louvamos, bendizemos e glorificamos pelo mistério da Virgem Maria, Mãe de Deus.” (Prefácio do Advento, II A)

Caros irmãos,

É chegada a tão esperada Semana Santa do Natal. Da mesma forma que na Páscoa, os sete dias que antecedem a Noite Santa são especialmente preparados, com liturgia própria (e prioritária), numa assim chamada Semana Santa. Em todos os dias, escutamos textos do Evangelho que relatam as aparições do anjo Gabriel a José, Zacarias e Maria, bem como a visitação a Isabel e o nascimento de João Batista. É um período riquíssimo de nossa Sagrada Liturgia, assim como acontece na Semana Santa da Páscoa. Especialmente os comentários patrísticos do Ofício das Leituras, tão consagrados pela Tradição da Igreja, têm uma especial predileção por dirigir as atenções à Virgem Maria, aquela grávida mulher, que sem o toque de homem algum, concebeu o Filho de Deus em seu ventre. Também os prefácios da Missa e as orações dos dias apontam para o mistério da Virgem, Mãe de Deus.

E assim como alegremente nos prepara com essa Semana Santa, o Natal apenas se inicia no dia 25 de dezembro, mas se estende com uma oitava (uma semana inteira como se fosse o único dia e Natal) e mais 4 festas: a da Sagrada Família, a de Santa Maria Mãe de Deus, a da Epifania do Senhor e a do Batismo do Senhor, completando o ciclo em cerca de 2 semanas e meia. É um mistério muito grande para ser celebrado numa só noite ou num só dia. A própria solenidade do Natal prevê 4 missas diferentes, no decorrer de suas 30 horas (6 da véspera e 24 do dia): a Vigília, apenas festiva, mas não solene, no fim da tarde do dia 24; a Missa da Noite, também conhecida como Missa do Galo, esta sim, solene (à meia-noite, preferencialmente, ou em torno dela); a Missa da Aurora, também solene (iniciando antes do raiar do sol do dia 25); e, enfim, solenemente, a principal, a Missa do Dia, celebrada bem após o nascer do sol do dia 25, em qualquer das outras horas.

Mas o que me cativa hoje e me faz escrever esta singela mensagem é olhar para a Virgem Maria, sob o título que, pessoalmente, mais aprecio: Mãe de Deus. No ícone do Santo Natal, ela aparece contemplativa, mas seu olhar convida a contemplar a grandiosidade desse Mistério. Sua mão, como sempre, aponta para o Cristo. Mas é pelo título de Mãe de Deus que Maria me atrai a ela.

Certa vez, após a passagem de nosso filho Gabriel José, estive pela primeira vez na Igreja Abacial do Mosteiro São João, em Campos do Jordão, em fevereiro de 2004. Lá, derramei-me em lágrimas ao ver o ícone da Eleoúsa, em grego, a Mãe da Ternura, ou, como lá está escrito em latim, Mater misericordiae. Não consegui ficar de pé, ajoelhei-me, tive uma experiência fortíssima sob o olhar da Mãe da Ternura, uma das mais fortes de minha vida. Também ela viu seu filho morrer. Mas seu olhar vai mais adiante...

Seu olhar penetrante e misterioso lança primeiramente a sua ternura no olhar de quem a contempla e lembra a nossos tempos corridos a necessidade de contemplar o semblante de quem nos olha. Seu olhar poderia ser um reflexo do olhar de Deus sobre o mundo, soberano, mas humilde; sereno, mas ligeiramente preocupado e cheio de cuidados sobre Aquele que carrega nos braços. Mas o intrigante é que o olhar não se dirige diretamente a Cristo, mas à humanidade que contempla o ícone.

Carregando a Cristo nos braços, Maria carrega a humanidade inteira. Em seus braços está o Futuro, o Fim, o Centro de tudo. É aquele Menino, que é Deus, e carrega um rolo, aquele rolo do Apocalipse, que somente Ele é digno de abrir. Em outras palavras, somente Cristo é chave de leitura para as Escrituras, e não somente para elas, mas para o próprio livro de nossas vidas. Aquele Menino traz nos braços tudo isso. Seu nascimento traz para a humanidade um sentido, porque se o Sentido de tudo é Este que se encontra nos braços de Maria, tudo, absolutamente tudo, inclusive a morte e tudo aquilo que parece ser sem sentido no nosso dia-a-dia é habitado pelo sentido. Ele, em sua encarnação, superior a todas as montanhas, físicas, morais e espirituais, desceu até os mais profundos abismos, físicos, morais e espirituais. Não há lugar nem tempo nesta nossa vida em que não esteja Cristo Senhor, aquele mesmo que nasceu em Belém e já muito antes, bem antes, sem ela saber, havia encantado o coração da Virgem.

E somente porque trouxe de maneira absoluta o Verbo de Deus em seu coração, nas mais profundas dimensões de seu ser, é que pôde se tornar grávida de Deus. Em sua ternura, Deus dirige uma palavra a ela, através do grande mensageiro, o Arcanjo Gabriel, como se a pedisse em casamento: “Kaire, kecharitómene!”, ou seja “Enche-te de imensa, estupenda, inefável, incomensurável alegria, ó tu, que já estás completamente preenchida do favor, da graça e sobretudo da presença de Deus!” Todas as poesias do pós-exílio de Babilônia que os santos profetas anunciaram apontavam para este Mistério. Muito inequivocamente o Profeta Isaías, no capítulo 62, dirige uma palavra à Filha de Sião (a Jerusalém pós-exílica, livre do jugo de Babilônia) que inequivocamente os cristãos a vêem dirigida a Maria, como modelo de plenitude da alma cristã: “Nunca mais te chamarão ‘Desamparada’, nem se dirá de tua terra ‘Abandonada’; mas haverão de te chamar ‘Minha querida’, e se dirá de tua terra ‘Desposada’, porque o Senhor se agradou muito de ti, e tua terra há de ter o seu esposo. Como um jovem que desposa a bem amada, assim também, teu Construtor vai desposar-te; como a esposa é a alegria do esposo, serás, assim, a alegria do teu Deus” (Is 62,4-5).

Quando tão glorioso anjo vai a Maria, Deus diz a ela tudo o que quis dizer à humanidade, a mim, a você, não apenas com palavras, mas com um gesto, o único eficaz, capaz de abrir nossa vida a algo que o mundo não pode por si mesmo oferecer. Quando o mensageiro da graça lhe vem, Deus lhe pede em casamento, mostrando que a natureza divina não existe de maneira fechada, mas apenas numa contínua e eterna abertura ao que é humano, terrivelmente humano. E nessa ocasião o anjo diz algo grandioso, aliás o próprio significado do nome do anjo: “para Deus, nada é impossível!”

Se, por um lado, Maria reflete humildemente sobre sua indignidade e sobre a incapacidade de gerar sem o toque de um homem, por outro, no Mistério da Anunciação do Senhor, ela encontra a possibilidade de se abrir completamente, de tal modo a tomar o impossível como possível. Porque possibilidade não é apenas o que pode ser racionalizado pela ciência, viabilizado pela tecnologia ou mesmo delineado pelas artes, mas sempre um algo mais que se abre e recebe o nome de esperança.

Assim, a fé de Maria, seu ser impregnado de uma vontade maior que a sua e que a contém se mostra em esperança, mas mesmo sem saber, já era amor. Quando o anjo lhe diz tudo o que tem de dizer, Maria prontamente diz: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim, segundo a tua palavra!” E o evangelista Lucas narra: “E o anjo retirou-se!”

Sim, meus irmãos, o anjo se retira para que agora se concretizem as núpcias entre Deus e ela, entre o céu e a terra. O anjo se retira em discrição porque ali há de se dar um encontro conjugal misterioso. Esses encontros sempre são misteriosos e reservados!!! Porque assim como a vinda de qualquer um de nós à terra é um fato grandioso, um acontecimento estremecedor, a vinda do Filho de Deus como Filho do homem, no ventre de Maria, é algo infinitamente mais grandioso, estremecedor, terrificante. São Leão Magno se enche de admiração e estupor ao dizer: “Ó admirável intercâmbio: o Filho de Deus se faz Filho do homem para que os filhos dos homens se tornem filhos de Deus!”

Desse momento em diante, um sinal indelével está presente na humanidade. Deus está nela, como sempre sonhou. O profeta Jeremias dizia que a aliança que seria firmada não a seria mais em tábuas de pedra, mas no coração, no íntimo do ser humano. Em Maria, dá-se o encontro íntimo entre Deus e a humanidade.

Volto-me agora para a lembrança do olhar da Virgem Mãe. Que quer dizer esse olhar? Por que tanta ternura? Porque ela mesma foi o espaço para se concretizar a ternura de Deus. Há um hino antiqüíssimo, cantado nas memórias dos santos, que diz: “Jesus Cristo, ternura de Deus, por quem somos votados ao Pai”. Se Maria é a Mãe da Ternura, a Ternura é Cristo. Sim, a ternura muitas vezes manifestada num casal é simbolizada num anel, numa aliança. Aqui, a Aliança é Cristo, prova do amor de Deus para conosco, “rosto divino do homem, rosto humano de Deus”, como dizia o Servo de Deus Paulo VI, Papa. Eis a Ternura, eis a fonte do coração de Maria, eis o que transborda do olhar de Maria.

E, afinal de contas, poderia ser diferente? Marcada tão intensamente pelo Santo Deus, e confirmada em sua vocação no dia da concepção de Cristo, onde lhe foi dado conhecer mais daquilo que ela mesma trazia em si, o olhar de Maria é o olhar da Ternura de Deus. Foi esse olhar que Cristo criança aprendeu a olhar. É tão impressionante! Aquele que é a “Sabedoria, saída da boca do Altíssimo” (como cantamos na tarde do dia 17) se torna um aprendiz do olhar. É esse olhar que ele lança sobre a humanidade, é esse semblante que paira sobre nós. E, se de alguma forma falamos em ira de Deus, como naquele olhar irado de um dos olhos do ícone de Cristo do Mosteiro de Santa Katarina de Alexandria do Monte Sinai, poderíamos vê-la muito bem expressa quando ele olha para Jerusalém e chora sobre ela (conforme um texto que enviei há cerca de um mês). A ira de Deus está presente no olhar preocupado de Maria, assim como no de Cristo, que chora as desventuras humanas. Tudo o que quer é apenas que sejamos plenos!

Voltemos mais uma vez ao olhar de Maria. Foram esses olhos, como que olhos do coração, que contemplaram o anúncio do anjo, a alegria de Isabel, o acolhimento de José, o nascimento do Santo Profeta João Batista e, na noite Santa, seu parto, cantado pelos anjos, admirado pelos pastores, adorado pelos Magos, luminoso como a estrela, glorioso, como o próprio Deus.

Caros irmãos, nesta Semana Santa do Natal, em que visitamos mais freqüentemente a imagem da Virgem Mãe de Deus, seja nas pinturas ou esculturas, seja na prece, especialmente as novenas de Natal e o Santo Rosário, seja ainda nos textos da Sagrada Escritura, da Tradição e da Liturgia, quero desejar a todos vocês, que fazem, parte de minha vida, e são tão amados por esse Deus de desígnios tão cheios de graça, ternura e misericórdia, um Feliz e Santo Natal, pelas mãos da Virgem, Mãe de Deus!

Que a Noite Santa seja um marco na vida de todos, lembrando que Ele nos amou por demais. Ou, como diz uma versão do “Adéste, fidéles!”, em português: “tanto amou-nos; quem não há de amá-lo?”

A Ele, a glória, no céu e na terra, no tempo e na eternidade, hoje e pelos séculos dos séculos. Amém!

Emerson Sarmento Gonçalves, a 19 de dezembro de 2008, Semana Santa do Natal.

domingo, 30 de novembro de 2008

"Ah! Se rompesses os céus e descesses!"


"Ah! Se rompesses os céus e descesses! As montanhas se desmanchariam diante de ti. Desceste, pois, e as montanhas se derreteram. Nunca se ouviu dizer nem chegou aos ouvidos de ninguém, jamais olhos viram que um Deus, exceto tu, tenha feito tanto pelos que nele esperam." (Is 63,19b; 64, 2b-3)

Como são belos os sentimentos do santo autor!!! Com este texto, na Santa Missa de hoje, iniciamos o Santo Tempo do Advento, da preparação para a vinda do Senhor. Também com isso iniciamos o Ano do Senhor de 2009. Por isso, um santo ano novo a todos!

O texto é do século VI aC, depois do exílio de Babilônia. Faz parte dos escritos do chamado Trito-Isaías, um autor anônimo, que publicou seus textos sob a égide da Profeta Isaías, para que, tornando-se conhecidos, pudessem ser uma palavra de consolo e esperança a Israel. Aliás, é de esperança que esse tempo nos quer falar.

"Ah! Se os céus se abrissem!!!" Ah!, Senhor! Se eles se abrissem, poderíamos olhar para o alto e ver que nossa vida é tão mais do aquilo que podemos ver, apalpar, sentir, raciocinar, pesquisar, fazer... Ah! Senhor, se eles se abrissem, nosso horizonte se abriria, nosso coração se dilataria, nossa mente se tronaria humilde diante do grandioso mistério que se encontraria diante dela. Ah! Senhor, se os céus se abrissem!

Há tantos de nós e tanto dentro de nós que ainda desejam que os céus se abram, que uma esperança surja para eles, que seu pulmão respire um ar novo e fecundo de perenidade, que sua vida se preencha de realidades que não passam, porque tudo parece tão instável, tão confuso, tão injusto, tão mesquinho, dentro e fora de nós!!! Ah,se descesses! Que presente não seria. Já não mais precisaríamos enganar nossos filhos com a figura do Papai Noel, com a figura de um mundo que passa, que se estraga, que murcha, que se estraga! Já não precisaríamos pô-los na esteira da morte, que parece levar todos os homens nos seus hábitos que levam a defender o ego, os apegos, o lucro violentador, a injustiça, a violência, o abandono, a falta de paz!!! Tudo isso, Senhor, se eles se abrissem!

Há tantos de nós e tanto em nós que jamais se abre a esse céu!!! E isso é o que há de pior, Senhor, porque, nesse caso, não há perspectiva de esperança para nós, a não ser a própria destruição! Senhor, há tantos de nós e tanto em nós que só respira morte e apesar de, no mais profundo e íntimo do ser, surge, mesmo que abafado o grito: "Ah, Senhor! Se os céus se abrissem e descessem!"

Mas o Profeta hoje vem nos dar um alento, um sinal de esperança. Ele saiu de Babilônia e voltou a Jerusalém. Ela estava destruída, e isso o levava a gritar: "Ah, Senhor! Se os céus se abrissem e descessem!" Mas o Profeta não havia se prendido a isso. Ele, com seu povo, estava em Jerusalém. Canta o salmista: "quando o Senhor reconduziu nossos cativos, parecíamos sonhar. Encheu-se de sorriso nossa boca, nossos lábios de canções! Maravilhas fez conosco o Senhor! (Cf. Sl 125). Pois bem, o profeta também atrás: Sim, "desceste, pois, e as montanhas se derreteram diante de ti". Quem eram as montanhas? O poder de Babilônia. Ele se desmantelou, ele passou, ele foi destruído.

Em nós, as montanhas estão nos pecados mais enraizados no fundo do coração. São eles palavras interiores, comandos que nos põem na "rede que envolve todos os mortais". São eles que derramam para fora de nós o fel que anuvia a esperança e a paz. São eles que fazem adoecer a nossa vida, a nossa história, a nossa ciência, a nossa política, a nossa economia, a nossa paternidade, o nosso ensino, o nosso ser inteiro. São como nuvens tenebrosas que fecham o horizonte do nosso coração.

Ah! O profeta... ELe nem sabia do que estava falando. Era como uma parábola, uma metáfora para dar a conhecer o seu povo o teu poder. Mas desceste mesmo, desceste de verdade, desceste em carne e osso, e entraste em nossos infernos, em nossas montanhas escarpadas, que dificultam nosso caminhar. Viveste nossa história, tocaste em tudo, "encheste tudo de formosura" (Cf. São João da Cruz) e nosso olhar agora pode se abris, nosso coração se dilatar, nossa vida voltar a ter esperança, nosso horizonte poderá ser contemplado!!!

Sim, Senhor, desceste! Desce em nós, no mais profundo de nós e revira todas as lógicas que desgraçam o homem contra suas próprias contradições. Porque descestes em um inferno que ninguém talvez tenha descido e ressurgistes dos mortos, no seio do Pai. Diz Saõ Paulo, "Aquele que desceu é o mesmo que subiu!" Os céus se rasgaram, se escancararm, o próprio Pai celeste disse: "Tu és o meu Filho amado!" Ele disse isso mesmo a nós no dia de nosso Batismo. Por seu Verbo e Filho, continuamente vem dizer a nós: "tu és meu filho amado, eu te gerei, em ti ponho meu bem querer!" (Cf. Is 42,1; Sl 2,7).

Na expectativa de vossa vinda final, Senhor, te esperamos cada dia. Cada dia elevaremos o clamor do profeta: "Ah, Senhor! Se os céus se abrissem e descesses! Mas tu desceste, e as montanhas se derreteram diante de ti!" Pois cada dia tu mostras, revelas, que tu és tu mesmo que desces a nós: na Eucaristia, na vossa Palavra, nos irmãos, em nossa família, no meio de nossos colegas de trabalho, pelos amigos e inimigos, pelos irmãos carentes, no meio de nossa história pessoal e coletiva. Eis que vens vindo sempre, para que naquele Dia que só tu conheces, possamos ver-te face a face!

Hoje, Senhor, entregamos a ti, no início de um novo tempo, neste Advento, nossa esperança, para que o Natal seja para nós um momento de vigor tão grande que nossas esperanças tão menores possam ser transfiguradas em teu fogo de amor e tais como as montanhas que também passam, pois se tivermos fé, "poderemos dizer a uma montanha 'põe daqui para lá' e ela obedecerá". O problema é que nossa fé não chega ao tamanho de méson pi, e pede, suplica diante de ti que estejas sempre abrindo os céus para nós e sempre amplie nosso respirar, dilate nosso coração e revigore nossa esperança naquilo que pode e deve ser esperado, para além de todas as esperanças e desesperanças humanas, pelas quais passaremos até limpidamete enxergarmos vosso rosto.

Sim, Senhor, os céus se rasgaram e descesses! Quando vermos na manjedoura um Menino, ali estará o sinal de nossa esperança. Ele é tão frágil, tão pequeno, chora, sente frio, faz cocô, tem fome. Que sinal de contradição nossa esperança! Mas só nesse sinal nossas tão reais contradições podem encontrar um sentido e uma verdade que lhes diga respeito, que lhes dê uma lógica toda nova, ultrapassando todas as nossas lógicas iludidas, estultas e enlouquecidas!

Seja ele a nossa paz, que do que está dividido faz Um, porque Um é Ele com o Pai e o Espírito Santo! Que ao vê-lo no presépio possamos lembrar de que Ele vem, e Ele nos vê e contempla. Contemplemo-lo, com os olhos límpidos. Que se abram os céus de nosso coração para um Santo e Feliz Natal!!!

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

"Nenhum sinal lhe será dado, a não ser o sinal de Jonas!"

Por quantas vezes esperamos um sinal de Deus...

No Evangelho que a Liturgia nos propõe hoje, Jesus joga um banho de água fria sobre os que lhe seguiam esperando sinais. É verdade! Havia muitos grupos que esperavam um Messias, cada um à sua maneira, cada um tendo expectativas de sinais maravilhosos. Alguns esperavam que fosse destronar os governantes romanos de Jerusalém. Outros esperavam curas, sinais no céu, tais como relâmpagos, vozes, ou ainda erupção de vulcões, como se relata na Tanach (o Antigo testamento). João e Tiago chegam a perguntar a Jesus se Ele não desejaria que caísse um fogo do céu sobre os samaritanos que não os receberam... Jesus os repreende.

Diante da populaça eufórica, Jesus diz: "esta geração é uma geração má. Ela busca um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, a não ser o sinal de Jonas. Com efeito, assim como Jonas foi um sinal para os ninivitas, assim também será o Filho do Homem para esta geração". Palavras duras...

Nessa hora, Jesus, dizendo palavras que não agradam a ninguém, aponta para seu Mistério. O que diz a história (ketuvim) de Jonas? Ele fugia de Deus, que o havia enviado para Nínive, indo para Társis, num navio. Bela hora, ele teve de se jogar da embarcação para o mar, pois sua desobediência havia transtornado a viagem daqueles marujos com tempestades e mar revolto. Ao se jogar no mar, Jonas, de algum modo, se despe de seu orgulho e simplesmente joga-se no desconhecido de Deus e de si mesmo. Deus tem misericórdia dele e manda-lhe um peixe para o engolir e não ficar à deriva. Ele fica três dias e três noites ali. Ele reza, agradece a Deus: "Na minha angústia clamei por socorro, pedi vossa ajuda do mundo dos mortos e vós me atendestes" (Jn 2,3). Na escuridão, quando se deparava consigo mesmo, em seu nada radical, quando nada estava mais em suas mãos, Jonas louvou a Deus de verdade: "quando minhas forças em mim acabavam, lembrei-me do Senhor, chegando até vós minha oração" (Jn 2,8).

Jonas experimenta aquilo mesmo que o salmista canta: "seu descer ao fundo dos abismos, ali estás presente; se eu chegar a habitar o fim dos mares, mesmo lá me vai guiar a vossa mão e proteger-me a vossa destra" (Sl 138).

Jonas e o salmista são imagens de Cristo. Crucificado, desce à mansão dos mortos e ressuscita ao Terceiro Dia. Cristo se faz um Nada para nos tornar tudo o que precisamos nos tornar. Cristo visita o nosso Nada para que sejamos como Ele, nEle, Um com Ele. Quando diz que não outro sinal senão o de Jonas, lembra-nos de que o nosso Nada é o que há de mais precioso, aquilo que jamais deve ser abandonado, porque é justamente o lugar da manifestação de Deus. Não serão sinais fantásticos que deveraõ mover a vida dos iniciados na graça, mas o sinal de que o Verbo de Deus se fez um de nós, conosco e em nós. Em outra passagem mais adiante, vai dizer "Chegarão alguns dizendo 'ele está aqui, ele está ali'. Não devereis crer nessa gente. (...) O Reino não vem ostensivamente; Ele está dentro de vós!" E isso Jesus diz em referência a que o seu Reino é uma realidade que começa no interior do homem, qual semente jogada no interior da terra.

Se ainda procuro um sinal visível ainda estou preso ao meu exterior. Não consigo vislumbrar o Reino, nem mesmo o fato de que Ele habita meu Nada. É preciso chegar ao Nada para que seja Ele nosso Tudo, e Ele mesmo seja Tudo em nós.

Os santos ascetas lembraram muito bem dessa realidade. Santo Antão diz a seus filhos espirituais que por motivo algum deve sair de sua cela. A cela é o lugar do combate, da experiência do Nada. São Francisco de Assis vai lembrar que a verdadeira alegria é bater a uma porta em uma noite escura e fria e essa porta não ser aberta. São João da Cruz lembra que Deus, nesse mundo, é, nada mais, nada menos, do que uma Noite Escura. São Gregório de Nissa lembra ainda que nossa única perfeição está na imperfeição.

Caminhamos na esperança. São Gregório Magno lembra que o tempo da Igreja, esse tempo nosso, dos grandes combates espirituais, é o tempo da aurora. Ainda não vemos claramente, mas no horizonte o brilho do "Sol nascente de justiça" nos atrai e nos faz esperar com quietude vigilante o sol que há de brilhar sobre nossos corações e nossas almas.

Meus caros, feliz serei eu se compreender isso. "Felizes os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus" (Mt 5,3).

domingo, 13 de julho de 2008

Ao final do retiro em Campos do Jordão, na Memória da Virgem Maria

“Bendize, ó minh’alma, ao Senhor, e todo o meu ser seu santo nome! Bendize, ó minh’alma, ao Senhor! Não te esqueças de nenhum de seus favores. Pois Ele te perdoa toda a culpa, e cura toda a tua enfermidade, da sepultura salva tua vida e te cerca de carinho e compaixão; de bens Ele sacia tua vida e tornas sempre jovem como a águia” (Sl 102,1-6).


Este Salmo que já havia me tocado há vários anos, para que através dele pudesse contemplar a misericórdia de Deus me foi dado de presente hoje de madrugada no I Noturno do Ofício de Vigílias. Foi o 1º salmo depois do Invitatório (Sl 94).

No penúltimo dia de retiro, já para encerrar as experiências de deserto, pois à tarde minha família vem se unir a mim, para celebrarmos o Domingo juntos e podermos matar as saudades, eu, minha esposa e meu filho, Deus inicia o dia suscitando a ação de graças em meu interior: “Bendize, minha alma, ao Senhor!”

De fato, como nunca pude vislumbrar, este foi um retiro todo conduzido pelo Senhor. Nele, pude experimentar suas misericórdias, especialmente através da Liturgia Sagrada, mas também através do ambiente por onde ela se estendeu, a criação de Deus e todos os fatos que se desdobraram em meu interior, como também nos diálogos com as pessoas com as quais encontrei, tão diferentes entre si: monjas, clérigos, pessoas do povo, funcionários da Abadia, especialmente nas horas de refeição e após a Santa Missa Conventual.

Comoveram-me a experiência do filho da viúva de Naim, da pecadora que chorava aos pés de Jesus em casa de Simão, de Mateus, o publicano. Cristo Jesus entrou na sepultura de cada um deles. Também posso dizer que entrou na minha sepultura, como canta o salmista e me ergueu de lá, qual Palavra inefável que ergue o homem em seu mistério.

Aliás, hoje é sábado, e estamos celebrando a Memória de Maria Virgem no Sábado. Essa memória lembra a Mãe de Deus (o título que mais amo na Virgem), aquela que, após a morte de seu Filho, perseverou no seu sepulcro. Pude falar um pouco desse mistério na terça-feira.

Perseverar no sepulcro... É isso que, desde longa tradição, os cristãos fazem no Sábado Santo, unidos à Virgem Maria. O silêncio típico desse dia fá-los unir àquela, que, bendita por ter trazido em seu seio o Criador do mundo, como nos lembra uma antífona mariana, vê o seu Filho no seio da terra. É a Virgem que vê seu Filho num outro seio. Que há de acontecer. A semente caiu na terra.

Jesus fala tantas vezes na semente... Hoje o Evangelho da Missa foi a parábola do semeador (Lc 8,4-15). Maria certamente a conhecia. A semente poderia cair em tantos tipos de terra: expostas aos pássaros, pedregosas, espinhosas, e até, ... , em terra fértil. Poderia ser uma pergunta de Maria: em qual terra meu Filho veio cair?

Na terra exposta aos pássaros, diria eu. Ele diz: “olhai as aves do céu (...), pois vosso Pai que está nos céus os alimenta” (Mt 6,26). E se as aves do céu são gratas ao Senhor elevando-lhe constantemente seus cânticos, como posso ouvir agora nos jardins desta Abadia, as aves que a parábola do semeador contempla vivem numa outra dinâmica: a diabólica.
Felizmente ou infelizmente, sabe Deus, as aves carregam em si esse simbolismo ditado pelo Verbo. É verdade que os demônios que comem a semente do Verbo serão destruídos. Mas, se a terra está cheia dessas aves de rapina, como poderá brotar a alegra do Verbo sobre a face terrestre? E Deus não deixa de semear, e as aves vêm e roubam mais uma vez, até que estejam saciadas (“saciais com vossos bens os ventres deles, e seus filhos também hão de saciar-se”, Sl 16,14), e nesse dia, a semente possa brotar na terra. Maria teve de ver a sua Semente cair aí... “Olhai e vede: há dor maior que minha dor?”

Eis que a terra humana, tão sujeita a intempéries e variáveis mil, é o lugar onde a Palavra veio ser semeada. Maria, tão imersa no espírito dos pobres de Israel, devia conhecer a passagem profética que diz: “assim como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam mais, mas vêm irrigar e fecundar a terra, e fazê-la germinar e dar semente, para o plantio e para a alimentação, assim a palavra que sair de minha boca; não voltará para mim vazia; antes, realizará tudo o que for de minha vontade e produzirá os efeitos que pretendi ao envia-la” (Is 55,10-11).

Sim! A Palavra há de cair na terra, mas Deus continuará sendo fiel. Pode ser que caia em terrenos pedregosos ou espinhosos. De fato, as tribulações, representadas pelas pedras, ou as preocupações, simbolizadas pelos espinhos, podem sufocar a Palavra. Que dizer dos que gritavam: “crucufica-o!”, ou dos apóstolos que fugiram ante a chegada das hostes que prenderam Jesus? O próprio Jesus vai dizer: “Tomai cuidado para que os vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez ou as preocupações da vida, e esse dia não caia de repente sobre vós” (Lc 21,34).

Não obstante a infertilidade do deserto humano, Deus continua sendo fiel. De fato, “o Filho do Homem foi entregue nas mãos dos homens”, e, enquanto isso, os gritos e gestos de violência continuavam. O mistério é que aí Ele se entrega ao Pai, cumprindo a profecia de Is 55,10-11. Mas, o que vemos? O que Maria vê? Seu Filho morto, em seus braços, a ser, depois, depositado num sepulcro.

Abro um parêntese para lembrar da experiência que eu e minha esposa tivemos ao vermos nosso filho Gabriel José morto em nossos braços. Foi algo dilaceramos. Variávamos da revolta à auto-punição, do desespero à esperança em curtos espaços de tempo. Ali era semeada uma palavrinha, uma imagem e semelhança do Logos. E não menos doloroso foi o ter de pô-lo numa gaveta de cemitério. Como dói essa lembrança!

Maria viveu a plenitude dessa experiência: ver seu Filho num sepulcro. É a ordem natural invertida. De fato, toda e qualquer ordem natural já havia sido corrompida há muito tempo... E isso foi assumido por esse mistério da piedade.

A semente da Palavra foi semeada em todos os terrenos. Resta apenas um se manifestar: o terreno fértil. Qual será ele? Se ele existir, Maria pode se encher de esperança. Se ele existir, eu e minha esposa também podemos ter uma esperança enorme. Se ele existir, o homem pode se reerguer, pois verá a semeadura brotar e crescer grandemente.

“Se o grão de trigo é jogado na terra e não morre, fica só um grão de trigo; mas se morre, ele dá muito fruto!” Cristo Jesus desperta o homem para a fidelidade de Deus. A sepultura diante da qual Maria se encontra é o lugar onde Jesus irá desaparecer totalmente para aparecer no seio do Pai. É esse lugar necessário para que alguém muito especial aos olhos de Deus se beneficie. Sabem quem? Adão. A leitura patrística do Ofício do Sábado Santo apresenta, nesse dia de grande silêncio, Jesus convidando Adão a se erguer. Nesse dia, diz o ofício da liturgia bizantina, já é Páscoa para Adão. A semente frutificou na sepultura de Adão.

Nesse dia, estar junto à Mãe de Deus é estar junto àquela que vela pela ressurreição do Filho do Homem, do Homem Todo, Cristo como Cabeça, a humanidade, qual Igreja ressurgida pelo chamado do Filho do Homem a erguer-se, como fizera com o filho da viúva de Naim, com a pecadora, com o publicano Mateus, com Lázaro, com Madalena, Pedro e tantos outros, como fez comigo, como seu Corpo.

Ressurge Cristo, ressurge o homem. Maria vela por esse mistério, guardando-o em seu coração como sempre o fizera. A semente, semeada em tantos lugares, acabou caindo nessa terra fértil. Deus apostou no coração humano, como apostou em Maria, para que a semente de sua Palavra, aquela que deifica o mundo, brotasse em toda a terra.

A terra, de fato, pode ser árida, mas nossos restos mortais a fertilizaram, para que a semente caída pudesse brotar. Sim, nossos restos, onde não havia mais pássaros, pedras ou espinhos, mas só o húmus do nosso simples ser humano, para que o Espírito renovasse a inteira face da terra.

Isso aconteceu neste retiro, para que se fizesse assim em minha vida. Possa eu ser fiel à esperança que suscitou em meu coração. Mais tarde, ao pôr-do-sol, já será Domingo, e já poderemos dar as boas vindas da noite, que, como a noite pascal, ilumina toda a terra escura e faz a semente plantada crescer e dar muito fruto. Que a Virgem Maria nos ensine a esperar e a nos alegrar assim! Amém!

Obrigado, Senhor!

quarta-feira, 2 de julho de 2008

“De noite, mesmo de noite, iremos buscar a fonte. Só nossa sede nos guia. Só nossa sede nos guia.” (J. Berthier, de Taizé)

Meus caros, escrevi este texto há cerca de dois anos e achei oportuno pô-lo aqui hoje, junto com o texto logo abaixo, por causa de sua interpertinência. Espero que a leitura seja proveitosa.



Há alguns momentos na vida em que bate uma saudade danada de não sei o quê... Talvez já tenhamos todos passado por momentos assim. Uma sede que parece do tamanho do infinito nos invade e toma de assalto nossas almas de maneira a encher nossos corações de uma certa vacuidade.

E com essa saudade do infinito parece que várias outras saudades de coisas sensíveis, pessoas, situações vêm juntas. É quando parece acontecer de perceber o tamanho de nosso exílio e de nossa solidão. Mas esse abismo também pode fazer perceber várias e grandiosas dimensões de nossas almas ainda não percebidas, ao menos até aqui.

Nessa hora, nossas carências podem falar alto, deparamo-nos com nossas contradições interiores, com nossas relações quebradiças com o outro, conosco mesmos, com a vida, com o mundo, com Deus...

E no aparente vazio da existência, a tentação de fugir dele (ou daquilo que eventualmente o expõe) não é rara. E é muito comum se observar isso nas compensações tão comuns que trazemos nessas horas. Por exemplo, diversas compulsões como comer, beber, viajar, ter relações sexuais e comprar, que, em si, nada trazem de mal, muito pelo contrário, acabam sendo escapes de como tentar preencher esse vazio. Pode ser que essas coisas evitem de nos fazer chorar, de nos inquietar..., pelo menos por algum tempo.

Mas esse vazio é do tamanho do infinito. Os antigos hebreus perceberam isso muito bem quando chamaram o homem de “nefesh”. Essa palavra é traduzida como a alma humana pelos textos da Septuagenta, bíblia traduzida para o grego na diáspora dos judeus, mas surge de algo mais primitivo do que o conceito de alma: a garganta. A antiga visão hebraica percebia o homem como uma garganta escancarada para o alto, necessitada de alimento, de água, de saciedade. Uma garganta aberta para o infinito...



Diz o Salmo 62: “minha alma tem sede de ti, minha carne também te deseja, como terra sedenta e sem água”. E ainda, o 42: “assim como a corça suspira pelas águas correntes, suspira igualmente a minh’alma por ti, ó meu Deus!” É dessa sede que envolve o homem todo que estamos falando, uma sede que marca inclusive sua carne, ou seja, revela-lhe sua fragilidade, sua contingência. Que paradoxo: um desejo tão grande num ser tão frágil.

Nessa hora, lembro-me do canto de Taizé transcrito no início deste texto. “De noite, mesmo de noite...” Quem busca, fá-lo até quando escurece. Sim, porque é possível que não tenha sono, não sossegue, enquanto não encontrar o que busca. De noite... Lembram da esposa do Cântico dos Cânticos? É em meio à noite que ela sai em busca de seu amado. Levanta-se de seu leito e se dirige à cidade para o encontrar.

Parece-me importante olhar e contemplar com carinho esses momentos. Eles podem nos despertar de nossa letargia, tirar-nos daquela mediocridade que nos faz pensar que já chegamos ao cume da montanha. Entulhar essa garganta, esse recipiente seria uma tentativa de matar esse desejo, uma poluição da alma.

Nessa hora, o Senhor Jesus nos dirige uma palavra que nos orienta: “Vigiai!” A vigília é a atitude daquele que espera. Quando eu era mais jovem, minha mãe esperava até muito tarde quando não chegava logo em casa. Testemunho também que esperei nove meses pelo encontro dos corações meu e de minha esposa, antes de iniciar o namoro. Todas as mães esperam cerca de nove meses pelo filho que há de nascer. Só quem ama espera e deseja.

O conselho de que vigiemos vem, pois, como algo que quer despertar em nós o amor e, despertando-o, possa lançar alguma luz sobre o ponto de encontro desse amor. Se isso acontecer, é o próprio amor que dilata nossa alma e faz perceber algo mais daquele amor eterno que se manifesta desde toda a eternidade para dar sentido ao nosso sonho, nosso anelo.

Cristo também dirige uma palavra de relevante significado nesse contexto. “Se soubesses quem te diz ‘Dá-me de beber’, tu mesma pedirias de beber. (...) Em verdade, digo-te que, quem beber dessa água nunca mais terá sede”. Foi no encontro com a samaritana, próximo ao poço de Jacó. Mas o verdadeiro poço de Jacó é Cristo. Nele, encontramos a verdadeira água viva que jorra para a vida eterna.

“Nefesh” é uma palavra que também nos lembra “comer”. Quanto de nosso desejo não desperta ansiedade, vontade de devorar o mundo, uma impaciência danada... Às vezes, pode ser que nossas atitudes mais primitivas, mais animalescas surjam justamente aí. Pode ser que a morte de algum de nossos mais queridos proporcione o surgimento desses momentos. Pode ser que traumas de diversos matizes revelem essa dimensão desconhecida que parece contradizer nossos ideais, nossa formação moral, nossos conceitos e questione tudo o que somos ou que pensamos ser.

“Quem comer a minha carne e beber o meu sangue terá a vida eterna”. A catequese do evangelista João no discurso do Pão da Vida (capítulo 6 de seu evangelho) é claramente uma catequese eucarística. É necessário comer e beber do corpo e sangue de Cristo para encontrar a Vida..., mas não é suficiente. A atitude de quem deglute o Cristo para a Vida é a daquele que quer viver com Ele, por Ele e Nele. É a atitude eucarística, ou seja, da ação de graças. É a atitude de quem comeu e bebeu com Ele, “na NOITE em que ia ser entregue”, quando ele “tomou o pão em suas mãos, DEU GRAÇAS e o partiu, e o deu a seus discípulos dizendo: tomai todos e comei. Isto é o meu corpo que será entregue por vós”. A ação de graças suprema de Cristo Jesus se dá imediatamente antes de sua Paixão, na noite, na treva de sua vida, quando até o Pai parecia tê-lo abandonado e sua morte já se fazia inevitável.

Deu graças, não obstante o vazio. De fato, aí estão “as lições que melhor educam”. Na noite, dar graças, buscá-lo, mas na quietude de quem sabe que será encontrado antes de encontrar, mesmo que todas as instâncias deste mundo digam o contrário...
Sim, Senhor, porque buscar-te não é simplesmente humano, é sobre-humano, é divino, e sem te guardarmos no coração, sem carregarmos em nós as marcas com as quais nos marcaste, como te encontraremos? Viajaremos o universo inteiro e nosso vazio continuará. Por isso, Senhor, tu que tens o universo em tuas mãos, dá-nos a mansidão e a quietude de espírito para te buscarmos na serenidade de Cristo Jesus, sem O Qual nada podemos fazer. Sim, haverá uma inquietude que nos move, que nos arranca da mediocridade e da alienação do mistério da Vida, mas seja ela orientada pelo vento do Espírito Santo, que conduza nossas almas para o verdadeiro valor que preenche nossas vidas. Assim, nossa sede, de fato, nos guia a buscar a fonte, onde podemos beber e saber que estaremos vivos para todo o sempre. Amém!

"Na região dos gerasenos..."

Mais uma vez, hoje a Liturgia vem ser bálsamo para as nossas feridas, uma unção para nossos pensamentos, palavras e ações. Depois de atravessar o Mar da Galiléia e fazer cessar uma tempestade no meio do mar, Jesus chega a seu lado oposto: a região dos gerasenos ou gadarenos. Impressiona a imediatez com que dois homens lhe vêm ao encontro. Diz o texto de Mateus que eram muito violentos, possuídos pelo demônio.

Agora, abramos um parêntese, para observar o contexto desse início. O Evangelho de Mateus, tal como o conhecemos, foi escrito em grego, por volta do ano 80. Para esse ambiente, certa antropologia considerava que os deslizes do homem não eram provocados por ele, mas por entes invisíveis, mais potentes que o homem, chamados demônios. Ou seja, demônios, dentro desse contexto grego antigo, eram potestades capazes de orientar os atos humanos, muitas vezes à revelia de sua vontade. Tudo aquilo sobre o quê o homem era incapaz de governar em si e se manifestava de alguma forma era obra de demônios. Por exemplo, se um homem ficava nervoso e perdia o controle derramando sua fúria sobre alguém, não era ele quem estava agindo, mas um demônio, através dele. Essa condição era aquela na qual o homem estava sendo governado por um demônio.

Não se tratava de um ente bom ou mau, não havia até então uma identificação com Satanás ou, como tratam os catecismos de diversas épocas, com os seus séquitos. Eram potestades. Podia ser útil que uma potestade se pusesse em ação, por exemplo, na hora de prender um criminoso ou defender uma cidade. O fato é que eram entes invisíveis, mas não menos reais, e verdadeiros agentes pessoais, já que provocavam reações as mais diversas no homem.

É vivendo nesse contexto que os cristãos vão enxergar aí um espaço aberto para o senhorio de Cristo. Mateus, que, como outros apóstolos, se move pelo mundo grego, absorve essa forma de conhecimento antropológico. Na verdade, esse texto tem sua forma mais primitiva em Marcos, que segue sempre Pedro e escreve para os cristãos de Roma. Mateus, escrevendo para cristãos convertidos do judaísmo, assume esses elementos, já que os judeus estão espalhados por todo o mundo de influência da cultura helênica.

Mais tarde, a Tradição vai sistematizar o conhecimento acerca dos demônios. É só no século III que irá surgir uma orientação sistemática sobre eles. O responsável por ela é um monge, chamado Evágrio, da região do Ponto, Ásia Menor (por isso chamado Evágrio Pôntico). Este monge, nas suas lutas pessoais, num processo de grande observação interior (Evágrio passou por diversos processos de desordem interior em sua vida), pôde distinguir os demônios fundamentalmente em número de oito. São eles: gastrimargia (mais tarde chamada de gula), ira, luxúria, inveja, avareza, tristeza, acídia e vanglória. Para Evágrio, o homem natural era movido por essas potestades. Mais tarde, haurindo das fontes da tradição monástica, São Gregório Magno elaboraria um catecismo onde essas potestades são distribuídas em número de sete e passam a se chamar pecados capitais. A diferença é que tristeza e acídia são postas num mesmo contexto e passam a ser chamadas genericamente de preguiça. E assim, tornam-se difundidas por todo o mundo cristão.

Mas por que São Gregório passa a chamar de pecados aquilo que parecia tão conatural ao homem? Meus caros, tenham bem em mente que pecado não é uma ação, não é simplesmente uma puntual direção das capacidades humanas para o mal. Essas ações, esses direcionamentos são proporcionados por algo maior do que eles. Pois é! Se os demônios são grandes, há algo ainda maior do que eles! Na verdade, neste ponto, estamos falando precisamente do drama de toda a história da salvação: o homem é sedento, pura sede de plenitude, perenidade, deseja, busca sempre algo que lhe transcenda, que torne pleno de todo valor todo o seu corpo, sua alma, seus anseios, sua vida.O homem tem sede de Deus. Ser homem é ser sedento de Deus e de desejar estar com Ele, e de ser com Ele, ser nEle, ser UM com Ele. Numa palavra, o homem foi destinado para ser filho dEle. Vejam só: no Gênesis, a tentação que a serpente lhe incute sobre sua indecisão é: “sereis como deuses”. A serpente jogou muito sujo com o homem. Mexeu no seu ponto fraco...

Essa drama está justamente aí: foi buscando ser como Deus que o homem agiu assim. O que o homem não podia compreender é que não era sua pura e simples busca que assim o faria. E assim corria o risco de chamar de Deus aquilo que não era Deus, e declarar que toda a sua sede de plenitude poderia ser saciada por aquilo que não lhe podia saciar. Em suma, o homem viu uma imagem do alvo, um reflexo de sua centralidade, um ponto. Tomou o seu arco, pôs sua flecha e atirou, ..., e errou o alvo. Pois bem, aqui está o problema do pecado. A palavra grega é hamartya, que significa “errar o alvo”. O pecado está aí. O pecado nasce de uma sede de Deus, marcada pela opacidade de não poder enxergar o alvo de sua vida.

Agora, fica mais fácil entender o nexo que há entre os demônios, Satanás e o pecado. Vejam: a busca de Deus no homem natural aparece como presa de Satanás, ou, conforme os termos da Tradição, a antiga serpente, capaz de enganar, iludir. A serpente era símbolo do culto a Baal, deus-mito dos cananeus. Assim, o inimigo de Deus teve eleito como seu representante o representante do deus do povo inimigo do povo de Deus. A serpente falava aos demônios, os demônios falavam ao homem, e o homem cedia. Daí, o pecado originava pecados. Nesse contexto, os demônios passam a ser vistos como séqüitos da serpente, e os pecados como resultados da existência dos demônios em nós. Mais adiante, a teologia espiritual viu por bem, para fugir das armadilhas contidas nos significados das palavras, chamar os demônios de doenças espirituais. Assim caracterizaria a condição do homem natural: marcado pela incompletude ferida. É como um orgulho ferido, que precisa ser correspondido. Sobre elas e sua terapia, recomendo escutar todas as conferências sobre doenças espirituais, realizadas pelo Pe. Paulo Ricardo, da Arquidiocese de Cuiabá, no site: http://www.padrepauloricardo.org/ . Estão em mp3 e podem ser livremente baixadas e escutadas.

Visto isto, é importante dizer que, conforme a penetração do Evangelho nessa antropologia grega clássica, o homem natural é joguete dos demônios. Eles falam e ele atende. Eles mandam, ele obedece. Conforme a mesma antropologia, que também marcou a escrita dos catecismos ao longo dos séculos, e inclusive o Compêndio de Teologia Mística e Ascética, de Tanquerey, o que distingue um homem de um outro animal são três características: inteligência, vontade e coração (aqui significando subjetividade). No homem natural, as três estão sujeitas aos demônios. Em seu crescimento, o homem aprende, conforme essas faculdades, a falar aos demônios e eles ficarem em seus devidos lugares. Ao exercitar a vontade, a inteligência e os sentimentos, o homem se torna capaz de mandar nos demônios, e estes se tornam seus servos. O problema aqui é: pode ser que uma, apenas uma dessas faculdades seja cativada ou mesmo seqüestrada pela fala de um demônio, por seu discurso persuasivo, por suas ameaças. Nesse caso, essa faculdade, que tem o mesmo poder que as demais, irá entrar em conflito (Cf. Tg 4,1) com as demais e até mesmo sujeita-las. É a esse respeito que Jesus diz em outra passagem do Evangelho: “um demônio vem, encontra a casa em ordem, e traz mais sete demônios piores do que ele”, e ainda “não pequeis para que não te aconteça algo pior”.

O homem marcado pelo Espírito Santo, entretanto, carrega ainda em si uma outra faculdade. Esta não é dele, mas de Deus, dom de Cristo Ressuscitado aos seus discípulos. Uma palavra é dita, e desfaz a desordem das palavras, dos pensamentos instalados por dentro das faculdades humanas. Vejam bem: um demônio age por uma única palavra. Ela gera pensamentos, coações, seduções. Anuvia as capacidades de vontade, inteligência e sentimento. Pois bem, meus caros, é preciso que essa palavra seja respondida onde ela nasce, lá, diante do demônio. Não tenhamos medo dele! Não tenhamos medo de nós. Se cremos no Espírito Santo, Ele é capaz de responder com a devida medida aos nossos demônios. É preciso, entretanto, que vigiemos!

“Vigiai e orai a todo momento!, diz-nos Jesus. Esse processo da vigilância, do estar em perene dialogar com Deus em tudo o que fazemos, pensamos ou dizemos é o que possibilita que seu Espírito penetre nessas profundas cavernas de nosso ser e encontre as armadilhas e ameaças aí preparadas. Lembram do Evangelho de hoje, que citamos no começo do texto (Mt 8,28-34)? Jesus disse: “Ide!”, e os demônios se atiraram numa manda de porcos, ou seja, saíram do homem e foram agir em outro lugar. Jesus deixa a paz reinar nesse homem. Em outra passagem, um oficial romano vai dizer: “não sou digno de que entres em minha casa, mas diz uma palavra e serei salvo”! Vêem? Que palavra é essa?

São João da Cruz diz que Deus em toda a sua vida “pronunciou uma única palavra, e essa palavra é seu Verbo, gerado no silêncio, e apenas no silêncio haveria de ser escutada”. Vejam bem, meus caros: a Palavra é concebida no silêncio, lá onde somos nós mesmos, lá onde o presente delineia o futuro, lá onde o horizonte se abre e nos enche de esperança para que a vida aconteça valendo à pena. É preciso que encontremos a Palavra ali, no interior de nossa vida, nas suas reclamações, no interior de nós mesmos, no meio dos demônios, que se alimentam do nosso nada. Lá, ele diz: “Que tens a ver conosco, Filho de Deus?” Da mesma forma, que a pronúncia da Palavra de Deus cria o universo do nada, essa mesma pronúncia nos recria sempre a partir de nosso nada! É essa pronúncia que nos torna filhos de Deus.

Na Santa Regra, Nosso Pai São Bento, parafraseando um Salmo 108 diz a seus filhos: “quando o maligno diabo tenta persuadi- lo de alguma coisa, repelindo-o das vistas do seu coração, a ele e suas sugestões, redu-lo a nada, agarra os seus pensamentos ainda ao nascer e quebra-os de encontro ao Cristo” (Prólogo, 28). Esse movimento de atirar os pensamentos na cruz sugere plasticamente mas com bastante precisão o papel do Espírito Santo na vida do cristão. É onde a Palavra de Deus é pronunciada e o demônio se cala. É ali onde nasce um homem novo.

Para tanto, meus caros, é preciso que Jesus, homem sem pecado (seria absurdo porque gerado dentro da própria natureza divina; Ele é, pois, o alvo!) entre em nossa vida, visite-a, como visitou aquela região inóspita. Afinal, que tem Ele a ver conosco? Que tem Ele a ver com nossas sepulturas, por meio das quais continuamos a andar, em lugares onde ninguém pode chegar perto, sob pena de haver uma violência? Que tem ele a ver com nossos demônios e nosso inferno? Diz São João Crisóstomo: “Jesus Cristo entrou no abismo conquistando os infernos. Naquele dia, ‘Ele despedaçou as portas de bronze, quebrou os ferrolhos de ferro’, como disse Isaías (Is 45,2)”. Esse é um trecho de sua homilia sobre a palavra “cemitério” e sobre a cruz. São João Crisóstomo se refere à descida à Mansão dos Mortos. Essa descida se deu hoje, no coração do endemoninhado de Gerasa, em meu coração, e em teu coração. Hoje, ele quebrou trancas de ferro, arrombou portas de bronze. Somos livres. E nossa liberdade consiste nisto: em escutá-lo, em transfigurarmo-nos conforme a moção do seu Espírito (Sopro, Voz) em nosso interior. Escutemo-lo, para não sermos mais joguetes dos demônios.

E rezemos com o salmista (Salmo 106):

– 10 Alguns jaziam em meio a trevas pavorosas, *
prisioneiros da miséria e das correntes,
– 11 por se terem revoltado contra Deus *
e desprezado os conselhos do Altíssimo.
– 12 Ele quebrou seus corações com o sofrimento; *
eles tombaram e ninguém veio ajudá-los!

– 13 Mas gritaram ao Senhor na aflição *
e Ele os libertou daquela angústia.
– 14 E os retirou daquelas trevas pavorosas, *
despedaçou suas correntes, seus grilhões.

– 15 Agradeçam ao Senhor por seu amor *
e por suas maravilhas entre os homens!
– 16 Porque ele arrombou portas de bronze *
e quebrou trancas de ferro das prisões!

– 17 Uns deliravam no caminho do pecado, *
sofrendo a conseqüência de seus crimes;
– 18 todo alimento era por eles rejeitado *
e da morte junto às portas, se encontravam.

– 19 Mas gritaram ao Senhor na aflição *
e Ele os libertou daquela angústia.
– 20 Enviou sua palavra e os curou *
e arrancou as suas vidas do sepulcro.

– 21 Agradeçam ao Senhor por seu amor *
e por suas maravilhas entre os homens!
– 22 Ofereçam sacrifícios de louvor *
e proclamem na alegria suas obras!

– Glória ao Pai, e ao Filho, e ao Espírito Santo,*
Como era no princípio, agora e sempre. Amém!

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Música sacra de monges austríacos consegue mais sucesso que Madonna e Amy Winehouse

Mark Landler
Em Heiligenkreuz, na Áustria

À medida que o meio-dia se aproxima, os monges entram na igreja, com os seus capuzes brancos ondulando sobre as costas. Eles fazem fila em silêncio, ficando de frente uns para os outros no longo palanque do coral. Santos de madeira colocados na austera cúpula romanesca olham para baixo.

Os sinos tocam e o cântico tem início - a princípio baixo, mas depois crescendo, à medida que outros monges juntam-se ao coro. As vozes suaves passam por sobre as pedras antigas, substituindo a atmosfera de claustro vazio por algo semelhante ao som da eternidade.

Exceto, é bom que se diga, pelos cliques de uma câmera digital empunhada por um fotógrafo que espreita por detrás de uma coluna de pedra.

Este tipo de fato se repete desde a primavera passada, quando correu a notícia de que os monges cistercianos de Stift Heiligenkreuz, mosteiro situado nas profundezas das florestas de Viena, haviam assinado um contrato para a gravação de um álbum de cantos gregorianos.

Quando o álbum, "Chant: Music for Paradise" ("Canto: Música para oParaíso") foi lançado na Europa em maio - tendo ficado em sétimo lugar na lista britânica de sucessos musicais populares, e em determinado momento tendo vendido mais do que Amy Winehouse e Madonna - a pequena atenção da imprensa transformou-se em uma torrente (o CD será lançado nos Estados Unidos em 1º de julho).

Agora este mosteiro, onde os rituais diários de oração e trabalho orientam a vida dos seus habitantes há 875 anos, vê-se em meio a um turbilhão de mídia ao mesmo tempo animador e incômodo para os seus 77 monges.

"Somos monges", diz Johannes Paul Chavanne, 25, que ingressou no mosteiro após estudar direito em Viena, e que se prepara para ser padre. "Não somos e nem queremos ser astros de música popular".

Tarde demais: o álbum transformou os monges de Heiligenkreuz em um sucesso de vendas, no mais recente exemplo de como o canto gregoriano de mil anos de idade, que no passado era uma parte negligenciada da liturgia católica, pode ser reassimilado por uma sociedade secular que gosta da sua cadência calmante e etérea.

Heiligenkreuz - o nome significa Santa Cruz - encarregou Karl Wallner, um dos seus monges mais ligados ao mundo exterior, de cuidar das relações públicas. Quando não está rezando, ele passa os seus dias atendendo a telefonemas de repórteres que ligam de locais tão remotos como a Nova Zelândia. O seu telefone celular, cujo toque é um canto gregoriano, chama constantemente.

"Sou uma espécie de escudo em torno da minha comunidade", afirma Wallner, que é monge há 26 anos. "No início houve muito temor de que isso destruísse a serenidade do mosteiro".

Alguns monges também temem que transformar os cantos, que são, afinal, orações, em um produto comercial equivale a um tipo de profanação. "É como usar Leonardo da Vinci como papel de parede", compara um dos religiosos. Mas para a maioria deles os riscos são superados por aquilo que acreditam ser o grande potencial da música: provocar sentimentos de fé em uma sociedade que se afastou bastante da religião.

Mesmo assim, a criação desses mais recentes astros monásticos evidencia mais como o mundo secular é capaz de penetrar até nos claustros mais fechados, graças ao poder da Internet.

Em 1994, os beneditinos de Santo Domingo de Silos, na Espanha, promoveram a última grande ressurreição do canto gregoriano com um álbum que se tornou um fenômeno. Mais recentemente, o uso de um canto no popular videogame "Halo" gerou um enorme interesse.

Ansiosa por capitalizar esta onda, a gravadora clássica Universal, de Londres, colocou um anúncio em publicações católicas, convidando grupos de canto a submeterem os seus trabalhos. Os executivos da gravadora achavam que seria muito difícil encontrar um outro grupo como os beneditinos espanhóis.

"Nem todos os monges desejam manter uma relação comercial porque não é isso o que eles passam o dia fazendo", explica Tom Lewis, o gerente de desenvolvimento artístico da Universal Classics and Jazz.

Mas o anúncio foi visto pelo neto de um monge daqui. Ele avisou Wallner, que, além das suas tarefas de relações públicas, administra a academia teológica e o Website do mosteiro.

"Um monge austríaco jamais saberia o que é a Universal Music", diz Wallner. "Nós fomos escolhidos pela divina providência para mostrar que hoje em dia é possível levar uma vida religiosa saudável".

Mas a habilidade do monge, e não divina providência, pode ser a maior responsável por isso tudo. Wallner enviou um e-mail curto a Lewis com um link para um vídeo dos cantos que os monges colocaram no YouTube depois que o Papa Bento 16 visitou o mosteiro em setembro do ano passado.

Embora os monges de vários mosteiros entoem cânticos, Heiligenkreuz tem um orgulho especial da sua música, que foi aperfeiçoada durante anos por um dos monges, que foi regente de corais na Alemanha.

Lewis ficou fascinado, e conta que o vídeo eclipsou os mais de cem outros trabalhos apresentados. "Havia nas vozes uma suavidade que a gente associa a pessoas mais jovens", diz ele.

A Universal negociou um contrato com os monges, que mostraram não ser nem um pouco ingênuos quando se trata de negócios. O fato de o abade Gregor Henckel Donnersmark ter mestrado em administração de empresas e ter administrado o escritório na Espanha de uma companhia de navegação alemã antes de ingressar no mosteiro, em 1977, ajudou bastante.

As cláusulas exigidas por ele determinavam que a Universal não poderia usar os cantos em videogames ou música popular. Os monges jamais se apresentariam em shows. E Heiligenkreuz receberia royalties com base nas vendas do álbum, o que, segundo o abade, equivale a cerca de um euro por CD vendido.

Henckel Donnersmark calcula de forma otimista que o quinhão do mosteiro poderá chegar a algo entre US$ 1,5 milhão e US$ 3,1 milhões, um dinheiro que será usado para ajudar a financiar os estudos teológicos de jovens em países em desenvolvimento. Até o momento a Universal vendeu quase 200 mil cópias.

"O dinheiro não é uma fonte de realização", afirma o abade, embora observe que a quantia recebida aliviará as despesas do mosteiro, que são altas, em parte devido seu sucesso em atrair noviços.

Antes mesmo do lançamento do álbum, esses monges já haviam se encontrado com o mundo do show business. O sobrinho do abade, Florian Henckel von Donnersmark, escreveu o roteiro de "Das Leben der Anderen" ("A Vida dos Outros", Alemanha, 2006), filme premiado pela Academia sobre a Alemanha Oriental, enquanto estava enclausurado em Heiligenkreuz. Ele levou o Oscar ao mosteiro, onde os monges fizeram fila para segurar a estatueta.

"Um lugar como aquele recalibra a bússola moral do indivíduo", disse Henckel von Donnersmark, de Los Angeles, por telefone. "A única coisa na qual essas pessoas pensam é em como amar e servir a Deus".

Por ora, os monges parecem ter certeza de que são capazes de manter o equilíbrio entre essa profunda vocação e o brilho da fama.

"Se os problemas tornarem-se muito grandes, eu pegarei um avião para Santo Domingo de Silos e pedirei conselhos ao abade de lá", diz o abade de Heiligenkreuz.

"Seguir-te-emos aonde quer que vás"

A Sagrada Liturgia é sempre uma fonte de inspiração para os movimentos daquele que se sente impulsionado por esse magnetismo grandioso que nosso Deus exerce em nós. Os rituais das tradições sempre moveram os homens das diversas culturas. Que o Ocidente não esqueça de suas raízes cristãs. Foi aí, afinal, que o cristianismo o ergueu de seus escombros, séculos atrás.

Mas, dentro de nosso contexto 'epectático', surgiu dentro da Sagrada Liturgia, hoje celebrada, uma frase que poderia ser nossa. Depois de Jesus reinterpretar a Lei, no Sermão da Montanha, e de curar a muitos, um escriba se anima e diz: "Nós te seguiremos aonde quer vás!" Interessante é que essa frase vai ser igualmente repetida por Pedro, pouco antes da Paixão, e Jesus irá responder: "negar-me-ás três vezes antes que o galo cante". E, no fim, Jesus permanece sozinho. O escriba está muito animado. É ainda o começo da vida pública de Jesus. É o início do contato com Ele. Precisa ser provado.

Não é à toa que Jesus responde: "as aves têm seus ninhos, e as raposas têm suas tocas, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça". Lembremos: no fim, Ele permanece na mais profunda solidão humana: "meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" No fim, nem no Pai Ele poderá reclinar a cabeça. No fim, só a cruz será o espaço para reclinar a cabeça. Depois, sua sepultura.

Jesus revela ao escriba sua singularidade radical, típica do homem. O homem é só. Sim! Não se espante! Você é só! Mas não há nada de anormal nisso: você, meu caro leitor, é gente. Há quem pense que foi feito para os pais, para os filhos, para o esposo, para a esposa, para o trabalho, para o futebol de fim de semana, para a paróquia, para a curtição de sábado à noite... No fundo, se isso lhe falta, perde-se o chão, o sentido, o oriente da vida. Essas perdas nos revelam: o homem é só. O estar com o outro é apenas um meio de aprender a ser só. O estar com o outro proporciona a ele que possa sentir-se mais à vontade com sua solidão, sentir seu interior, conhecer-se. Igualmente, a relação proporciona, através da escuta, uma experiência de transcendência, de sair de si, de ir para muito além de si, uma terra estrangeira, onde posso descobrir meu papel. Essa terra estrangeira se chama: o Outro. Essa terra é aquela à qual Abraão foi chamado a buscar. Foi lá que Moisés teve de tirar as sandálias, em sinal de profundo respeito. Foi lá, onde Jesus ressuscitou da morte...

Pai Alônio, no deserto Scetia, região do Alto Nilo, disse uma vez: "se o homem não disser em seu coração: 'somente existimos eu e Deus', não conseguirá tranqüilidade de espírito". Esse apoftegma de alguém profundamente provado no deserto da vida reflete com bastante precisão o que representa a solidão na vida humana. É sua condição radical. É ali que encontra a paz. Sua felicidade não depende de outros, bem como sua infelicidade. Cuidado, aqui! Não significa isolamento. Significa saber-se só em si mesmo, saber-se um em si mesmo. Só assim poderá ir ao encontro dos outros livremente, nada esperando deles em troca.

A esse respeito, também escreve São Gregório Magno, ao narrar o início da biografia de Nosso Pai São Bento, que fugiu para Subiaco para estar consigo mesmo. Eis o desafio de um ser humano por toda a vida: estar consigo mesmo. Não significa que cada um de nós deva se retirar para uma gruta, uma selva, um ermo ou um deserto para tal. Isso é vocação apenas para alguns. Em outros casos, pode ser uma patologia. É importante, entretanto, lembrar do que isso significa: na vida, encontraremos sempre o deserto, por mais que tentemos nos afastar dele. O outro será nosso deserto. Ele sempre desmascarará nossas ambições, nossos caprichos, nossa vontade doente. Grandes lutas se travarão aí. O problema é que se essa luta não se der dentro de si, dar-se-á fora. E assim surgem os problemas, as guerras interpessoais, que, conforme lembra São Tiago Apóstolo, são provocadas pelas paixões em conflito dentro de nós.

Não nos iludamos: também nós não temos onde reclinar a cabeça. Procuramos um colo, um travesseiro, um apoio. Não nos apeguemos a eles. Pode ser que amanhã já não o sejam. E nós? Deixaremos de ser por isso?

quinta-feira, 26 de junho de 2008

A Epectase

Meus amigos,

depois de algum tempo de surgimento dos web logs, cedi à resistência e resolvi criar um deles. É simples, hospedado no blogspot, mas quer ser uma espaço para reflexão. Reflexão sobre a vida, talvez sobre seus problemas, certamente sobre seu respirar, comer e beber, mas não menos sobre nossos dramas mais abrangentes. Mas verdade seja dita, a gente não sabe mais respirar, comer ou beber. Que dirá acerca do que sabemos sobre alguma ciência de forma real?

Talvez seja um espaço onde poderemos rir um pouco, o ainda chorar. O importante é que riamos ou choremos juntos, para que tenhamos aquela solidão povoada que tanto inspirava São João da Cruz. Caso contrário, como nos conduz a nossa tão bem-aventurada ciência, a tão iluminada política e tão equilibrada economia de nossos tempos, teremos apenas uma solidão irremediável, que nos fecha em nossos próprios vazios. Mas se chorarmos ou sorrirmos juntos, poderemos fazer a experiência do Novo, da Beleza tão antiga e tão nova, que inquietava o coração de Santo Agostinho e todos nós. É porque quando estamos assim, quando choramos com os que choram e rimos com os que riem, carregamos os fardos uns dos outros e cumprimos a verdadeira Lei.

E sem querer usar meias palavras, ser politicamente correto não será um compromisso. Assim, entenda-se a que Lei me refiro. Essa Lei é capaz de crucificar o que consideramos correto e subverter nossos mais intrincados conceitos com relação a tudo. A própria palavra Deus será um vocábulo, que por vezes parecerá um balbucio, que, mesmo sendo Verdade e certeza, manifesta na carne humana, será sempre um Mistério por se alcançar, um Mistério ora brilhante como uma estrela, ora profundo e devorador como um buraco negro.

O interessante é que devido à sua densidade, os buracos negros atraem os corpos. E é inevitável que sejam atraídos, uma vez postos como pontos interiores ao lugar geométrico onde a atração de todos os outros corpos celestes jamais suplanta à deste misterioso ente físico. Alguns diriam do equilíbrio assintoticamente estável a que se dirigem os corpos sob a atração de um buraco negro.

Mas, de uma forma geral, os buracos negros são conhecidos pela maioria das pessoas, como algo misterioso, escuro, amedrontador. Existem diversas teorias físicas sobre o que acontece nesses corpos, inclusive sobre singulares comportamentos sobre massa, tempo e espaço neles. Não é objeto deste blog aprofundar sobre esses aspectos. O interesse está mais em penetrar no que é Mistério e nos atrai profundamente, até que, a partir de alguma circunstância que sabemos mais ou menos onde e como aconteceu, mas não tanto como um racionalista se arrisca a dizer categoricamente onde e como estão as coisas.

Mas quão belo é o sol e as outras estrelas. Eles também exercem atração sobre os planetas e determinam seu comportamento. Estes encontram sua órbita, sua razão de ser o que é, simplesmente pelo fato de a dita estrela existir e lançar sobre eles a medida própria de luz e calor. É por causa disso, que um girassol gira, que a água desce para o mar, sentimos calor ou frio ou um belo perfume se espalha no ar. Sim, se por potencial gravitacional, equilíbrio térmico ou processo difusivo, isso não apresenta nenhuma novidade perante os olhares da inocente criança. Apenas o fato de sentir frio e de ver a cachoeira se derramar para baixo extasia o olhar da criança, como poderia dizer Chesterton, mesmo aquela que ainda deve existir em nós, a mesma que Jesus acolheu em seu colo, lembrando aos adultos bem pensantes que aqueles que não fossem como ela não entrariam no Reino do Céu.

Até aqui, vocês devem estar se perguntando o que significa epectase e porque se transformou no nome deste web log. A palavra epectase me disse muito quando lia o melhor livro sobre Matrimônio que já pude ter em mãos, o Sacramento do Amor, de Pavel Evdokimov. A palavra vem do grego, epektásis, que lembra uma flecha num arco apontada para um alvo. Ela apresenta uma tendência e contradizê-la seria desprover a flecha daquilo que lhe seria mais próprio: atingir o alvo. A epectase, dentro da Tradição Cristã, é essa tendência irremediável, por assim dizer, para Aquele que é nosso Alvo, nossa Meta, nosso Fim. A epectase é o Mistério que carregamos e que como uma configuração de spin numa composição paramagnética nos torna ontologicamente atraídos e sempre tendentes Àquele que É.

São Paulo, Apóstolo, que a partir do próximo Domingo, durante 1 ano inteiro, será mais conhecido e meditado por ocasião do Ano Paulino, a ser aberto por S. S. Bento XVI, na Basílica Fora dos Muros dedicada ao Apóstolo, dá uma palavra importantíssima sobre o que podemos entender por epectase dentro da Tradição Cristã. Na Carta aos Filipenses, ele diz: "Não que eu já o tenha alcançado ou que já seja perfeito, mas vou prosseguindo para ver se o alcanço, pois que já fui alcançado por Cristo Jesus. Irmãos, eu não julgo que eu mesmo o tenha alcançado, mas uma coisa faço: esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está adiante, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto, que vem de Deus em Cristo Jesus" (Fl 3,11-14 - Tradução da Bíblia de Jerusalém). Eis aí a melhor apresentação do que seja a epectase cristã.

Queremos continua nela e convidamos a todos a descobrirem esse magnetismo místico em suas vidas. Espero que este blog seja um espaço para isso, para que "qualquer que seja o ponto a que chegamos, conservemos o rumo" (Fl 3,16).

Sejam bem vindos e sintam-se abraçados, no calor daquele que nosso Alvo, nossa Meta!