sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

São José e a Justiça que nos visita

Hoje, no segundo dia da Semana Santa do Natal, senti-me impelido a fazê-lo. Isso aconteceu contemplando as leituras da liturgia de hoje, onde Jeremias Profeta prenuncia os dias em que Deus faria brotar de Davi um rebento justo, uma descendência, que governaria com sabedoria e exerceria o direito e a justiça em Israel (Jr 23,5), mais o acontecimento do anúncio do anjo do Senhor a São José (Mt 1,18-24). Esta última leitura é repetida com a genealogia de Jesus, na Vigília de Natal.
 
O que significa tudo isso?
 
O evangelista Mateus diz que José era um homem justo. O que é um justo, na mentalidade judaica? É um homem temente a Deus, um homem que leva Deus como referência de vida, sua Lei, seu culto, sua maneira de se manifestar na história. Um homem justo é, numa palavra, o homem que tem fé, o crente. Por isso se diz que José era justo. Acontece, porém, uma situação inusitada e inquietante: aquela que lhe estava prometida em casamento aparece grávida. Apenas um outro evangelista, Lucas, dá-se o trabalho de dizer como Maria ficou grávida (quando o Arcanjo Gabriel lhe apareceu e lhe anunciou o sonho de Deus, para o qual ela disse seu “sim”). Mateus laconicamente resume o fato como “tendo concebido do Espírito Santo”. Mateus, como bom autor de um evangelho dirigido a cristãos vindos do judaísmo, descreve a genealogia do Cristo e realça apenas o drama ocorrido com o pai. De fato, haveria de se explicar o inaudito fato àquela sociedade patriarcal.
 
Que coisa! Não é fácil. Prometida em casamento, engravida sem ter sido tocada por José. O justo poderia apelar para a Lei: poderia denunciá-la de adultério, e ela, sofrer a pena de lapidação. Porém, o justo não esquece o provérbio que lembra que “o justo precisa ser humano”, e não denuncia Maria, mas decide ir embora, assumindo ele mesmo a condenação perante a sociedade, de ter engravidado uma mulher e ter fugido como um covarde, sem, no entanto, tê-lo sido. A José, a Lei oferecia um recurso, e certamente, seu título de justo não seria retirado; o amor a Maria ofereceria um outro recurso que lhe pouparia.
 
Mas há um outro olhar que pode ser lançado sobre tudo isso. Anjos agem na vida dos homens quando Deus lhes deseja comunicar algo muito importante. De modo particular, os arcanjos vêm em socorro da humanidade para oferecer sublimes e indispensáveis dons da graça divina. Ali estava o coração de um justo apertado, sufocado, angustiado. Ali estava um homem em prantos. Os demônios conseguem manipular até a realidade do justo, usando das armas da própria justiça e até mesmo do amor humano para desviar a atenção do plano de Deus, plano que corresponde à Realidade por excelência.
 
O ícone de Natal apresenta um José pensativo, desanimado, olhando para um ente esquisito, que está de costas para quem observa a obra. Esse ente é o inimigo de Deus. Cabe lembrar que todos nos viciamos em carregar o vencido inimigo de Deus dentro de nós, e daquilo que sofreu José sofremos também nós em nossas tentações e aflições. São as amarguras, o desânimo, a cólera e todas aquelas coisas que nos afastam de Deus e de nós mesmos. E ainda contamos com instrumentos legítimos para consolidar e validar nossa justiça.
 
Olhando para José, lembramos de que o anjo lhe foi em socorro em sonho. O pedido do anjo em acolher aquela que continuava Virgem ecoa como um pedido a José para ser mais do que justo, enlarguecer os limites da própria justiça, dilatar o coração. De fato, o Salmo 118,26 diz: "de vossos mandamentos corro a estrada, porque vós me dilatais o coração". A justiça de que se trata agora não é mais a justiça que os homens reconhecem como tal, mas a justiça de Deus, a justiça prometida pelos profetas, quando do Dia da vinda do Santo Messias. Ele mesmo, o Messias, disse: "se a vossa justiça não for maior do que a justiça dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus".
 
Aí, está, pois, a justiça. Não basta ao justo ser justo; não basta ao justo ser humano. Ele precisa ser tudo isso, mas precisa de algo mais para ser pleno: ele precisa de um olhar teologal, pneumatikon, espiritual. O justo, nesse novo e inaudito sentido, é aquele que olha segundo Deus, para além das prescrições e julgamentos humanos. É aquilo que muitos já denominaram de “ter espírito religioso”, o senso de que Deus é livre, de que age como quer, de que todas as leis naturais e humanas estão inscritas numa lei transcendente, misteriosa, que não conhecemos, ao menos por inteiro, coisa que em nossos tempos não está em moda.
 
Olhemos, agora, mais atentamente para essa silenciosa figura do presépio: José. Como bom judeu, conheceu as Escrituras da Lei e dos Profetas. Entre tantas outras passagens, destacamos a que foi I Leitura hoje: “virão dias em que Deus fará brotar de Davi um rebento justo”. Será que José lembrou dessa profecia? Será que lembrou de todas as outras? Certamente. Mas o que era José, da já tão esquecida e vilipendiada casa de Davi, diante da grandiosidade dos planos de Deus? Afinal de contas, a casa de Davi tinha deixado destruir tudo o que Deus oferecera a seu povo. Israel sofreu pilhagem após pilhagem, e a casa de Davi, outrora tronco forte, agora não era mais do que um rebento, um raminho, um galhinho fininho de árvore. Para José, acordado do sonho, vale a pergunta: “será que é comigo?” Caro amigo e leitos, quantas vezes a Palavra de Deus não terá sido dirigida a você, e você se fez essa pergunta?
 
Os profetas anunciaram que coisas inauditas aconteceriam no Dia da Vinda do Messias. Joel diz que o sol perderia seu brilho, a lua se transformaria em sangue, os anciãos teriam sonhos, os jovens teriam visões. E mais, Deus prometeu à Casa de Davi uma descendência em várias passagens da Escritura: os escritos dos Livros dos Reis e das Crônicas, os escritos proféticos de Isaías e Jeremias, os Salmos 71, 88 e 131, enfim tudo apontava para isso. E José era da casa de Davi. Somente um único aspecto não lhe faz entender como isso seria com ele: ele não tocou em Maria. A própria Virgem pergunta ao Arcanjo Gabriel: “como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?” Conhecer, no sentido conjugal, segundo a tradução hebraica, é ter relações sexuais. Como acontecerá isso?
 
Meus caros, aqui é preciso ter fé. José teve a fé. De que fé estamos falando? Fé em Deus, mas não em qualquer Deus , não em um ente que moldamos a nosso modo. Trata-se da fé num Deus livre, que, como diz o Salmo 113, “faz tudo aquilo que quer”. Deus é Alguém, Alguém com vontade, com inteligência, com coração, que dispõe da realidade conforme seu desígnio a habilita, inclusive dando condição para que surjam as leis naturais que estudamos e das quais desfrutamos para nosso bem (e também para o nosso mal).
 
Certas horas da vida, nas demoras de Deus, nas aparentes sensações de falta de existência de Deus, de vazio de Deus, meu caro irmão, minha cara irmã, tenha a certeza que é Ele mesmo que nos faz o apelo para que descubramos uma virtude maior em nosso Deus. Ele é livre, mais livre do que eu penso, mais livre do que eu, e me leva a uma liberdade ainda maior, se eu souber silenciar diante de tudo aquilo que é Mistério e que leva, assim mesmo, mesmo desafiando o que é facilmente demonstrável ou sensível, a se cumprir seu eterno plano de amor.
 
Se eu estiver disposto a dar o salto que essa fé pede de mim, se eu tiver a coragem de apostar na Verdade que se nos apresenta, embora nossa rigidez racionalista e sentimentalista apresentem mil ilusões, poderei dar mais um passo em direção ao seu Reino.
 
Se eu souber silenciar as vozes pululantes do coração perturbado e amansar a fera que se acha tão justa e tão boa dentro de mim, descobrirei que não sou justo nem bom, enquanto não conseguir olhar para além do palpável.
 
Caro irmão, cara irmã, tenha a certeza! Se tudo isso acontecer em nossa vida, Deus se tornará palpável, visível, audível. Se assim já se faz, pela potestade da Igreja, que sacramentaliza essa realidade, através dos sacramentos, far-se-á em nós. Misteriosamente , Deus se revelará a nós. De fato, Ele assume a liberdade de se revelar a quem quer, mas ao coração daquele que só deseja o que Ele deseja – tenha a certeza –, Deus se inclina de uma maneira inaudita.
 
Quantas lições o silêncio de José nos traz! Que belo é o olhar daquele que não deu uma única palavra verbalmente, mas ao ouvir a palavra por meio do anjo, permitiu que a Palavra, o Verbo, a Razão de Deus se fizesse palpável, na sua Encarnação no ventre de Maria Virgem!
 
Ruperto de Deutz, no século XII, chegou a escrever: “o que prefigura essa escada” – a escada de um outro sonho, o de Jacó – , “senão a linhagem da qual Jesus deveria nascer, linhagem que o santo evangelista, com um sopro divino, faz subir, de maneira que chegasse a Jesus passando por José? E a este José o Senhor confiou o Menino. Pela «Porta do Céu» (Gn 28,17)[...], quer dizer, pela bem-aventurada Virgem, sai Nosso senhor a chorar, feito criança por nós.”
 
Contemplamos, com o sim de José, o presépio. O menino que vai nascer é Deus, mas é menino, Filho do Homem, título que repetiu tantas vezes com relação a Si próprio. Vem pequeno, vem criança, para que, como crianças, aprendamos com Ele a sermos o que nós somos nEle.
 
Gostaria de terminar este texto repetindo uma bela e significativa frase de Ângelus Silesius, místico da Idade Média: “nasça Cristo mil vezes em Belém; se não nascer em teu coração, de nada te adiantou ter Ele nascido, terás vivido em vão!”
 
Olhemos para o Presépio, olhemos para José, para o Menino. Olhemos para nós, para o nosso coração, para a nossa vida! Seja ela o presépio, onde contemplamos o milagre da encarnação do Verbo de Deus acontecendo em cada momento, em cada simples e pequeno instante. Eis o que seja a sublimidade da verdadeira vida, que se completa, no Dia Final, quando Ele for tudo em todos. A Ele a glória para sempre. Amém!

A todos que acompanham este humilde espaço eletrônico, desejo, de coração, um Feliz e Santo Natal, pleno do Cristo, Nosso Senhor!