quarta-feira, 2 de julho de 2008

"Na região dos gerasenos..."

Mais uma vez, hoje a Liturgia vem ser bálsamo para as nossas feridas, uma unção para nossos pensamentos, palavras e ações. Depois de atravessar o Mar da Galiléia e fazer cessar uma tempestade no meio do mar, Jesus chega a seu lado oposto: a região dos gerasenos ou gadarenos. Impressiona a imediatez com que dois homens lhe vêm ao encontro. Diz o texto de Mateus que eram muito violentos, possuídos pelo demônio.

Agora, abramos um parêntese, para observar o contexto desse início. O Evangelho de Mateus, tal como o conhecemos, foi escrito em grego, por volta do ano 80. Para esse ambiente, certa antropologia considerava que os deslizes do homem não eram provocados por ele, mas por entes invisíveis, mais potentes que o homem, chamados demônios. Ou seja, demônios, dentro desse contexto grego antigo, eram potestades capazes de orientar os atos humanos, muitas vezes à revelia de sua vontade. Tudo aquilo sobre o quê o homem era incapaz de governar em si e se manifestava de alguma forma era obra de demônios. Por exemplo, se um homem ficava nervoso e perdia o controle derramando sua fúria sobre alguém, não era ele quem estava agindo, mas um demônio, através dele. Essa condição era aquela na qual o homem estava sendo governado por um demônio.

Não se tratava de um ente bom ou mau, não havia até então uma identificação com Satanás ou, como tratam os catecismos de diversas épocas, com os seus séquitos. Eram potestades. Podia ser útil que uma potestade se pusesse em ação, por exemplo, na hora de prender um criminoso ou defender uma cidade. O fato é que eram entes invisíveis, mas não menos reais, e verdadeiros agentes pessoais, já que provocavam reações as mais diversas no homem.

É vivendo nesse contexto que os cristãos vão enxergar aí um espaço aberto para o senhorio de Cristo. Mateus, que, como outros apóstolos, se move pelo mundo grego, absorve essa forma de conhecimento antropológico. Na verdade, esse texto tem sua forma mais primitiva em Marcos, que segue sempre Pedro e escreve para os cristãos de Roma. Mateus, escrevendo para cristãos convertidos do judaísmo, assume esses elementos, já que os judeus estão espalhados por todo o mundo de influência da cultura helênica.

Mais tarde, a Tradição vai sistematizar o conhecimento acerca dos demônios. É só no século III que irá surgir uma orientação sistemática sobre eles. O responsável por ela é um monge, chamado Evágrio, da região do Ponto, Ásia Menor (por isso chamado Evágrio Pôntico). Este monge, nas suas lutas pessoais, num processo de grande observação interior (Evágrio passou por diversos processos de desordem interior em sua vida), pôde distinguir os demônios fundamentalmente em número de oito. São eles: gastrimargia (mais tarde chamada de gula), ira, luxúria, inveja, avareza, tristeza, acídia e vanglória. Para Evágrio, o homem natural era movido por essas potestades. Mais tarde, haurindo das fontes da tradição monástica, São Gregório Magno elaboraria um catecismo onde essas potestades são distribuídas em número de sete e passam a se chamar pecados capitais. A diferença é que tristeza e acídia são postas num mesmo contexto e passam a ser chamadas genericamente de preguiça. E assim, tornam-se difundidas por todo o mundo cristão.

Mas por que São Gregório passa a chamar de pecados aquilo que parecia tão conatural ao homem? Meus caros, tenham bem em mente que pecado não é uma ação, não é simplesmente uma puntual direção das capacidades humanas para o mal. Essas ações, esses direcionamentos são proporcionados por algo maior do que eles. Pois é! Se os demônios são grandes, há algo ainda maior do que eles! Na verdade, neste ponto, estamos falando precisamente do drama de toda a história da salvação: o homem é sedento, pura sede de plenitude, perenidade, deseja, busca sempre algo que lhe transcenda, que torne pleno de todo valor todo o seu corpo, sua alma, seus anseios, sua vida.O homem tem sede de Deus. Ser homem é ser sedento de Deus e de desejar estar com Ele, e de ser com Ele, ser nEle, ser UM com Ele. Numa palavra, o homem foi destinado para ser filho dEle. Vejam só: no Gênesis, a tentação que a serpente lhe incute sobre sua indecisão é: “sereis como deuses”. A serpente jogou muito sujo com o homem. Mexeu no seu ponto fraco...

Essa drama está justamente aí: foi buscando ser como Deus que o homem agiu assim. O que o homem não podia compreender é que não era sua pura e simples busca que assim o faria. E assim corria o risco de chamar de Deus aquilo que não era Deus, e declarar que toda a sua sede de plenitude poderia ser saciada por aquilo que não lhe podia saciar. Em suma, o homem viu uma imagem do alvo, um reflexo de sua centralidade, um ponto. Tomou o seu arco, pôs sua flecha e atirou, ..., e errou o alvo. Pois bem, aqui está o problema do pecado. A palavra grega é hamartya, que significa “errar o alvo”. O pecado está aí. O pecado nasce de uma sede de Deus, marcada pela opacidade de não poder enxergar o alvo de sua vida.

Agora, fica mais fácil entender o nexo que há entre os demônios, Satanás e o pecado. Vejam: a busca de Deus no homem natural aparece como presa de Satanás, ou, conforme os termos da Tradição, a antiga serpente, capaz de enganar, iludir. A serpente era símbolo do culto a Baal, deus-mito dos cananeus. Assim, o inimigo de Deus teve eleito como seu representante o representante do deus do povo inimigo do povo de Deus. A serpente falava aos demônios, os demônios falavam ao homem, e o homem cedia. Daí, o pecado originava pecados. Nesse contexto, os demônios passam a ser vistos como séqüitos da serpente, e os pecados como resultados da existência dos demônios em nós. Mais adiante, a teologia espiritual viu por bem, para fugir das armadilhas contidas nos significados das palavras, chamar os demônios de doenças espirituais. Assim caracterizaria a condição do homem natural: marcado pela incompletude ferida. É como um orgulho ferido, que precisa ser correspondido. Sobre elas e sua terapia, recomendo escutar todas as conferências sobre doenças espirituais, realizadas pelo Pe. Paulo Ricardo, da Arquidiocese de Cuiabá, no site: http://www.padrepauloricardo.org/ . Estão em mp3 e podem ser livremente baixadas e escutadas.

Visto isto, é importante dizer que, conforme a penetração do Evangelho nessa antropologia grega clássica, o homem natural é joguete dos demônios. Eles falam e ele atende. Eles mandam, ele obedece. Conforme a mesma antropologia, que também marcou a escrita dos catecismos ao longo dos séculos, e inclusive o Compêndio de Teologia Mística e Ascética, de Tanquerey, o que distingue um homem de um outro animal são três características: inteligência, vontade e coração (aqui significando subjetividade). No homem natural, as três estão sujeitas aos demônios. Em seu crescimento, o homem aprende, conforme essas faculdades, a falar aos demônios e eles ficarem em seus devidos lugares. Ao exercitar a vontade, a inteligência e os sentimentos, o homem se torna capaz de mandar nos demônios, e estes se tornam seus servos. O problema aqui é: pode ser que uma, apenas uma dessas faculdades seja cativada ou mesmo seqüestrada pela fala de um demônio, por seu discurso persuasivo, por suas ameaças. Nesse caso, essa faculdade, que tem o mesmo poder que as demais, irá entrar em conflito (Cf. Tg 4,1) com as demais e até mesmo sujeita-las. É a esse respeito que Jesus diz em outra passagem do Evangelho: “um demônio vem, encontra a casa em ordem, e traz mais sete demônios piores do que ele”, e ainda “não pequeis para que não te aconteça algo pior”.

O homem marcado pelo Espírito Santo, entretanto, carrega ainda em si uma outra faculdade. Esta não é dele, mas de Deus, dom de Cristo Ressuscitado aos seus discípulos. Uma palavra é dita, e desfaz a desordem das palavras, dos pensamentos instalados por dentro das faculdades humanas. Vejam bem: um demônio age por uma única palavra. Ela gera pensamentos, coações, seduções. Anuvia as capacidades de vontade, inteligência e sentimento. Pois bem, meus caros, é preciso que essa palavra seja respondida onde ela nasce, lá, diante do demônio. Não tenhamos medo dele! Não tenhamos medo de nós. Se cremos no Espírito Santo, Ele é capaz de responder com a devida medida aos nossos demônios. É preciso, entretanto, que vigiemos!

“Vigiai e orai a todo momento!, diz-nos Jesus. Esse processo da vigilância, do estar em perene dialogar com Deus em tudo o que fazemos, pensamos ou dizemos é o que possibilita que seu Espírito penetre nessas profundas cavernas de nosso ser e encontre as armadilhas e ameaças aí preparadas. Lembram do Evangelho de hoje, que citamos no começo do texto (Mt 8,28-34)? Jesus disse: “Ide!”, e os demônios se atiraram numa manda de porcos, ou seja, saíram do homem e foram agir em outro lugar. Jesus deixa a paz reinar nesse homem. Em outra passagem, um oficial romano vai dizer: “não sou digno de que entres em minha casa, mas diz uma palavra e serei salvo”! Vêem? Que palavra é essa?

São João da Cruz diz que Deus em toda a sua vida “pronunciou uma única palavra, e essa palavra é seu Verbo, gerado no silêncio, e apenas no silêncio haveria de ser escutada”. Vejam bem, meus caros: a Palavra é concebida no silêncio, lá onde somos nós mesmos, lá onde o presente delineia o futuro, lá onde o horizonte se abre e nos enche de esperança para que a vida aconteça valendo à pena. É preciso que encontremos a Palavra ali, no interior de nossa vida, nas suas reclamações, no interior de nós mesmos, no meio dos demônios, que se alimentam do nosso nada. Lá, ele diz: “Que tens a ver conosco, Filho de Deus?” Da mesma forma, que a pronúncia da Palavra de Deus cria o universo do nada, essa mesma pronúncia nos recria sempre a partir de nosso nada! É essa pronúncia que nos torna filhos de Deus.

Na Santa Regra, Nosso Pai São Bento, parafraseando um Salmo 108 diz a seus filhos: “quando o maligno diabo tenta persuadi- lo de alguma coisa, repelindo-o das vistas do seu coração, a ele e suas sugestões, redu-lo a nada, agarra os seus pensamentos ainda ao nascer e quebra-os de encontro ao Cristo” (Prólogo, 28). Esse movimento de atirar os pensamentos na cruz sugere plasticamente mas com bastante precisão o papel do Espírito Santo na vida do cristão. É onde a Palavra de Deus é pronunciada e o demônio se cala. É ali onde nasce um homem novo.

Para tanto, meus caros, é preciso que Jesus, homem sem pecado (seria absurdo porque gerado dentro da própria natureza divina; Ele é, pois, o alvo!) entre em nossa vida, visite-a, como visitou aquela região inóspita. Afinal, que tem Ele a ver conosco? Que tem Ele a ver com nossas sepulturas, por meio das quais continuamos a andar, em lugares onde ninguém pode chegar perto, sob pena de haver uma violência? Que tem ele a ver com nossos demônios e nosso inferno? Diz São João Crisóstomo: “Jesus Cristo entrou no abismo conquistando os infernos. Naquele dia, ‘Ele despedaçou as portas de bronze, quebrou os ferrolhos de ferro’, como disse Isaías (Is 45,2)”. Esse é um trecho de sua homilia sobre a palavra “cemitério” e sobre a cruz. São João Crisóstomo se refere à descida à Mansão dos Mortos. Essa descida se deu hoje, no coração do endemoninhado de Gerasa, em meu coração, e em teu coração. Hoje, ele quebrou trancas de ferro, arrombou portas de bronze. Somos livres. E nossa liberdade consiste nisto: em escutá-lo, em transfigurarmo-nos conforme a moção do seu Espírito (Sopro, Voz) em nosso interior. Escutemo-lo, para não sermos mais joguetes dos demônios.

E rezemos com o salmista (Salmo 106):

– 10 Alguns jaziam em meio a trevas pavorosas, *
prisioneiros da miséria e das correntes,
– 11 por se terem revoltado contra Deus *
e desprezado os conselhos do Altíssimo.
– 12 Ele quebrou seus corações com o sofrimento; *
eles tombaram e ninguém veio ajudá-los!

– 13 Mas gritaram ao Senhor na aflição *
e Ele os libertou daquela angústia.
– 14 E os retirou daquelas trevas pavorosas, *
despedaçou suas correntes, seus grilhões.

– 15 Agradeçam ao Senhor por seu amor *
e por suas maravilhas entre os homens!
– 16 Porque ele arrombou portas de bronze *
e quebrou trancas de ferro das prisões!

– 17 Uns deliravam no caminho do pecado, *
sofrendo a conseqüência de seus crimes;
– 18 todo alimento era por eles rejeitado *
e da morte junto às portas, se encontravam.

– 19 Mas gritaram ao Senhor na aflição *
e Ele os libertou daquela angústia.
– 20 Enviou sua palavra e os curou *
e arrancou as suas vidas do sepulcro.

– 21 Agradeçam ao Senhor por seu amor *
e por suas maravilhas entre os homens!
– 22 Ofereçam sacrifícios de louvor *
e proclamem na alegria suas obras!

– Glória ao Pai, e ao Filho, e ao Espírito Santo,*
Como era no princípio, agora e sempre. Amém!

Nenhum comentário: