quarta-feira, 2 de julho de 2008

“De noite, mesmo de noite, iremos buscar a fonte. Só nossa sede nos guia. Só nossa sede nos guia.” (J. Berthier, de Taizé)

Meus caros, escrevi este texto há cerca de dois anos e achei oportuno pô-lo aqui hoje, junto com o texto logo abaixo, por causa de sua interpertinência. Espero que a leitura seja proveitosa.



Há alguns momentos na vida em que bate uma saudade danada de não sei o quê... Talvez já tenhamos todos passado por momentos assim. Uma sede que parece do tamanho do infinito nos invade e toma de assalto nossas almas de maneira a encher nossos corações de uma certa vacuidade.

E com essa saudade do infinito parece que várias outras saudades de coisas sensíveis, pessoas, situações vêm juntas. É quando parece acontecer de perceber o tamanho de nosso exílio e de nossa solidão. Mas esse abismo também pode fazer perceber várias e grandiosas dimensões de nossas almas ainda não percebidas, ao menos até aqui.

Nessa hora, nossas carências podem falar alto, deparamo-nos com nossas contradições interiores, com nossas relações quebradiças com o outro, conosco mesmos, com a vida, com o mundo, com Deus...

E no aparente vazio da existência, a tentação de fugir dele (ou daquilo que eventualmente o expõe) não é rara. E é muito comum se observar isso nas compensações tão comuns que trazemos nessas horas. Por exemplo, diversas compulsões como comer, beber, viajar, ter relações sexuais e comprar, que, em si, nada trazem de mal, muito pelo contrário, acabam sendo escapes de como tentar preencher esse vazio. Pode ser que essas coisas evitem de nos fazer chorar, de nos inquietar..., pelo menos por algum tempo.

Mas esse vazio é do tamanho do infinito. Os antigos hebreus perceberam isso muito bem quando chamaram o homem de “nefesh”. Essa palavra é traduzida como a alma humana pelos textos da Septuagenta, bíblia traduzida para o grego na diáspora dos judeus, mas surge de algo mais primitivo do que o conceito de alma: a garganta. A antiga visão hebraica percebia o homem como uma garganta escancarada para o alto, necessitada de alimento, de água, de saciedade. Uma garganta aberta para o infinito...



Diz o Salmo 62: “minha alma tem sede de ti, minha carne também te deseja, como terra sedenta e sem água”. E ainda, o 42: “assim como a corça suspira pelas águas correntes, suspira igualmente a minh’alma por ti, ó meu Deus!” É dessa sede que envolve o homem todo que estamos falando, uma sede que marca inclusive sua carne, ou seja, revela-lhe sua fragilidade, sua contingência. Que paradoxo: um desejo tão grande num ser tão frágil.

Nessa hora, lembro-me do canto de Taizé transcrito no início deste texto. “De noite, mesmo de noite...” Quem busca, fá-lo até quando escurece. Sim, porque é possível que não tenha sono, não sossegue, enquanto não encontrar o que busca. De noite... Lembram da esposa do Cântico dos Cânticos? É em meio à noite que ela sai em busca de seu amado. Levanta-se de seu leito e se dirige à cidade para o encontrar.

Parece-me importante olhar e contemplar com carinho esses momentos. Eles podem nos despertar de nossa letargia, tirar-nos daquela mediocridade que nos faz pensar que já chegamos ao cume da montanha. Entulhar essa garganta, esse recipiente seria uma tentativa de matar esse desejo, uma poluição da alma.

Nessa hora, o Senhor Jesus nos dirige uma palavra que nos orienta: “Vigiai!” A vigília é a atitude daquele que espera. Quando eu era mais jovem, minha mãe esperava até muito tarde quando não chegava logo em casa. Testemunho também que esperei nove meses pelo encontro dos corações meu e de minha esposa, antes de iniciar o namoro. Todas as mães esperam cerca de nove meses pelo filho que há de nascer. Só quem ama espera e deseja.

O conselho de que vigiemos vem, pois, como algo que quer despertar em nós o amor e, despertando-o, possa lançar alguma luz sobre o ponto de encontro desse amor. Se isso acontecer, é o próprio amor que dilata nossa alma e faz perceber algo mais daquele amor eterno que se manifesta desde toda a eternidade para dar sentido ao nosso sonho, nosso anelo.

Cristo também dirige uma palavra de relevante significado nesse contexto. “Se soubesses quem te diz ‘Dá-me de beber’, tu mesma pedirias de beber. (...) Em verdade, digo-te que, quem beber dessa água nunca mais terá sede”. Foi no encontro com a samaritana, próximo ao poço de Jacó. Mas o verdadeiro poço de Jacó é Cristo. Nele, encontramos a verdadeira água viva que jorra para a vida eterna.

“Nefesh” é uma palavra que também nos lembra “comer”. Quanto de nosso desejo não desperta ansiedade, vontade de devorar o mundo, uma impaciência danada... Às vezes, pode ser que nossas atitudes mais primitivas, mais animalescas surjam justamente aí. Pode ser que a morte de algum de nossos mais queridos proporcione o surgimento desses momentos. Pode ser que traumas de diversos matizes revelem essa dimensão desconhecida que parece contradizer nossos ideais, nossa formação moral, nossos conceitos e questione tudo o que somos ou que pensamos ser.

“Quem comer a minha carne e beber o meu sangue terá a vida eterna”. A catequese do evangelista João no discurso do Pão da Vida (capítulo 6 de seu evangelho) é claramente uma catequese eucarística. É necessário comer e beber do corpo e sangue de Cristo para encontrar a Vida..., mas não é suficiente. A atitude de quem deglute o Cristo para a Vida é a daquele que quer viver com Ele, por Ele e Nele. É a atitude eucarística, ou seja, da ação de graças. É a atitude de quem comeu e bebeu com Ele, “na NOITE em que ia ser entregue”, quando ele “tomou o pão em suas mãos, DEU GRAÇAS e o partiu, e o deu a seus discípulos dizendo: tomai todos e comei. Isto é o meu corpo que será entregue por vós”. A ação de graças suprema de Cristo Jesus se dá imediatamente antes de sua Paixão, na noite, na treva de sua vida, quando até o Pai parecia tê-lo abandonado e sua morte já se fazia inevitável.

Deu graças, não obstante o vazio. De fato, aí estão “as lições que melhor educam”. Na noite, dar graças, buscá-lo, mas na quietude de quem sabe que será encontrado antes de encontrar, mesmo que todas as instâncias deste mundo digam o contrário...
Sim, Senhor, porque buscar-te não é simplesmente humano, é sobre-humano, é divino, e sem te guardarmos no coração, sem carregarmos em nós as marcas com as quais nos marcaste, como te encontraremos? Viajaremos o universo inteiro e nosso vazio continuará. Por isso, Senhor, tu que tens o universo em tuas mãos, dá-nos a mansidão e a quietude de espírito para te buscarmos na serenidade de Cristo Jesus, sem O Qual nada podemos fazer. Sim, haverá uma inquietude que nos move, que nos arranca da mediocridade e da alienação do mistério da Vida, mas seja ela orientada pelo vento do Espírito Santo, que conduza nossas almas para o verdadeiro valor que preenche nossas vidas. Assim, nossa sede, de fato, nos guia a buscar a fonte, onde podemos beber e saber que estaremos vivos para todo o sempre. Amém!

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