sábado, 12 de junho de 2010

Ela muito amou

A guerra que se trava aqui, agora e em todos os dias é contra a verdade. O problema é quando o homem se torna a verdade de si mesmo. Quando suas paixões, seus delírios, suas ilusões, seus encantos tomam a posição de referência absoluta na sua vida, o preço que essas condições trazem é muito alto, e sem dúvida alguma, machuca desde o nosso coração até os confins da terra. Os confins da terra foram machucados por nossas ilusões, pelos demônios de nossa fiel estimação.

O homem e suas verdades... Está aí: o Evangelho (Lc 7,36-50) da Eucaristia deste XI Domingo do Tempo Comum nos fala de um banquete. No banquete, há uma partilha, um envolvimento de corações, acontece a celebração da amizade, da família, do encontro. Quem deu o banquete? Um fariseu chamado Simão. Havia um ritual para receber o visitante: lavar-lhe os pés, em sinal de estar à disposição; dar-lhe o ósculo de saudação, como sinal de amizade e paz; ungi-lo com óleo, conforme lembra o Sl 132, sobre a suavidade de como é bom ver os irmãos juntos bem unidos. Nada disso Simão o fez. Falta de decoro, de ética, de estética?

Talvez Jesus tivesse motivos até para não entrar. Será que era realmente bem-vindo? Não esqueçamos o que o Evangelho diz instantes antes: “esses homens são como crianças, que não se põem a favor da alegria nem do pesar”. Esses homens tinham um real ressentimento com Jesus. Mas o convidaram para um banquete. Que banquete será esse? Eles não cumprem sequer os preceitos cultuais de receber o visitante...

Sim, a pergunta é exatamente esta: “será que Ele é realmente bem-vindo?” Até que ponto Deus é bem-vindo? Até que ponto a Verdade nos pode falar, estar conosco? Será que suportamos seu convívio? Entretanto, se a porta se abre, Ele entra.

Vejamos bem onde Jesus chega: na casa de um fariseu, na casa da Lei. Ali, supõe-se, está encerrada a Lei, o cumprimento da verdadeira piedade pós-exílica, no desejo de que Deus manifeste seu Messias mediante o cumprimento estrito da Lei. Naquela casa, as pessoas trazem essa carga de memórias. “Deus havia se manifestado muito desfavorável no tempo do descumprimento da Lei. Agora, vem um que é conhecido como Messias, fazer refeição com publicanos e pecadores? Como é isso? Refeições com aqueles que podem ser justamente a causa de nossa desgraça? Com aqueles que contaminam nossa terra e o nosso culto afastando o olhar de Deus? Bem, Ele venha ter conosco, mas a saudação da paz, isso Ele não o terá! Deus não falou mais; nós falamos, e falamos as palavras de Deus, as palavras da Torah. Não podemos estar errados...”

Mas quando Jesus se senta com eles, vem uma mulher de má fama, famosa por causa de seus pecados, sabe Deus quais. Um gesto impressionante, entretanto, ela fez. Não disse nada, sequer uma palavra. De fato, não tinha nada, só pecado, só uma fama desgraçada. E ai dela se dissesse algo na casa de um fariseu... Um gesto impressionante: aos pés de Jesus, derramava lágrimas, enxugava-os e os ungia com perfume. Tudo o que o dono da casa não o fez, ela o fez, sempre aos pés.

Jesus, entretanto, não se volta para ela, mas para Simão, pedindo permissão para contar uma parábola. Já que o clima entre Ele e Simão estava frio, fazia-se importante pedir permissão. É aquela parábola conhecida do que devia muito e do que devia pouco e ambos foram igualmente perdoados. Ao lançar a decisão para Simão sobre quem mais amou, ele diz achar que era o que devia mais, e foi aprovado pela resposta.

Bem, o contraponto já estava feito! A mulher realmente fez por um impulso interior o que Simão poderia ter feito ao menos por cumprimento da Lei. A mulher foi uma feliz pecadora; Simão falhou no cumprimento da Lei. Seja como for, parece que era de se esperar que a mulher fizesse assim, porque experimentou amor muito grande; Simão precisava de seguranças, de garantias, e o espaço que até então havia reservado para o amor era minúsculo.

Cabe dizer ainda que aquela guerra que Israel travava com Deus acontecia exatamente aí, no coração de Simão. Simão sofria, mas seu sofrimento estava reprimido porque alguma coisa havia tomado o lugar da verdade. Seu medo, medo de Deus, medo do outro, medo da vida, medo de assumir sua fragilidade, medo de ser frágil, medo de amar e de ser amado. Simão estava ferido, mas ninguém podia perceber isso, porque isso de nada adiantaria. Pior, alguém ferido é alguém indigno de entrar no Templo ou na sinagoga. E a guerra continuava em seu coração. Preferiu manter-se em guarda. E veja quem era, curiosamente, seu inimigo: a Verdade!

A mulher, pobre mulher, não resistiu. Também sentiu os efeitos da guerra. Pecava e pecava obstinada e publicamente. Era alguém assim, com suas tendências, seus vícios, suas fraquezas. Estava em guerra também, mas não agüentava mais. Não agüentava mais que esses condicionamentos continuassem a lhe subjugar, a subjugar a Realidade, a Única capaz de lhe dar verdadeira liberdade e verdadeiro sentido. Sofria, chorava seu sofrimento, sua indignidade, sua impossibilidade de estar junto ao povo de Deus, de sentir a companhia de Deus. Ah! Que mulher! Na sua indignidade, descobriu o verdadeiro valor da vida. Esparramada sobre as lágrimas que caíam pôde debruçar-se sobre o húmus da verdade, a realidade humilhada do seu ser humano, do seu ser simplesmente mulher.

De fato, ela descobriu o húmus da Verdade, pois a Verdade se manifestou como húmus e estava ali diante dela. Como perder uma oportunidade como essa? Ah! O salmista... Diz ele: “a verdade e o amor se encontrarão” (Sl 84,11). Eles se encontraram. O ascendente, mas tão vacilante amor humano encontrou a medida de seu desejo: a Verdade, manifestada como amor descendente, como misericórdia, o Amor descendente do próprio Deus. Tudo aquilo que Deus esperara de Israel, e que o próprio Sl 77 narra, dizendo o quanto lhe favoreceu, aconteceu ali, naquela cena, na casa do fariseu Simão. Bendito seja Simão, cuja casa serviu de espaço para que a verdade e o amor se encontrassem!

Nesse dia, iniciou-se na vida dessa mulher um novo tempo. Sua alma era sua alma, mas não era a mesma alma. Seu corpo era aquele seu corpo, outrora objeto do pecado, mas não era o mesmo corpo. São Paulo, em 1Cor 15, fala de um corpo carnal, um corpo psíquico e um corpo pneumático (algumas traduções usam o termo espiritual, mas é ambíguo). Pois bem, o homem psíquico é o homem fechado em sua racionalidade, o bem pensante. É Simão, o fariseu! Temos muitos desses hoje em dia... O homem carnal é o homem perdido até de sua racionalidade: que dizer da pecadora? O homem pneumático é o pneumatóforo, portador do Espírito. O pneumático é aquele que carrega a misericórdia de Deus aonde quer que vá, como consolação para si e para os outros. Sua vida é um gesto contínuo de adoração. É um sacramento vivo, onde quer que esteja. Poderá até ser odiado, pois a verdade que carrega queima como fogo os raciocínios dos psíquicos e a animalidade dos carnais, ele mesmo tendo sido queimado nesse fogo. Esse homem é, em primeira análise, Cristo Jesus. Depois, todos aqueles que assim o são, todos aqueles que foram queimados por esse fogo de sua Verdade, de seu Espírito. É por isso que os mártires se deixam queimar ou derramar sangue em nome de Cristo: sua vida é fogo do Espírito e Sangue de Cristo! Quem puder entender, entenda!

O corpo pneumático é o corpo ressuscitado. No momento em que o amor e a verdade se encontraram, que aconteceu? “Jesus disse à mulher: ‘teus pecados estão perdoados’ (...) Tua fé te salvou! Vai em paz!’”  Sua vida não poderia exalar mais do que o odor desse momento, sua voz não poderia falar de outra coisa que não dessa ocasião-chave de seu novo nascimento, seus olhos não podiam brilhar mais do que agora, sua alegria indizível poderia ultrapassar todas as guerras que os homens ou os demônios pudessem travar contra ela, porque não é contra ela que o fazem, mas contra a Verdade, contra Deus, e Este habita em todas as células de seu corpo, fala nelas e as rege na vontade consciente e decidida em amá-lo.

E mais uma palavrinha que considero importante. Quem é Simão e quem é a mulher? Num certo sentido, Simão é Israel. É lá que Cristo entra, é lá que Cristo vai dialogar com os escribas em sua juventude (Lc 2,46-47). De fato, vai-lhes encher de estupefação, mas também de revolta. É sobre Israel que recaem as palavras do Salmo 2: “por que os povos agitados se revoltam? Porque tramam as nações projetos vãos?” Simão é aquele Israel, cujo próprio nome diz, luta com Deus, como assim o fez Jacó no vau do Jaboc (Gn 32,23-33), recebendo o nome de Israel.

A mulher é a Igreja, aquela que, de Israel e das nações, vem aos pés da Verdade e se põe humildemente com lágrimas, confessando seus fracassos, suas misérias, a saudade que sente de seu Deus, da Verdade, o desejo de seu Cristo, de seu Amado, em meio à condição humilhada, condição essa em que Ele mesmo se pôs para que pudesse ser encontrado, pois caso contrário jamais o seria, a guerra continuaria, ..., e seria excessivamente desleal. Justiça foi feita!

“A verdade e o amor se encontrarão,
A justiça e a paz se abraçarão.
Da terra brotará a fidelidade,
E a justiça olhará dos altos dos céus”.

Tudo isso aconteceu hoje!

Em Cristo Jesus, Nosso Senhor, a quem sejam dadas a glória, a honra e o louvor, pelos séculos dos séculos. Amém!

domingo, 6 de junho de 2010

As lágrimas de uma mãe

Segue ainda, meus caros, mais um comentário feito ao Evangelho do Dia, a Ressurreição da Viúva de Naim, feito, por Santo Ambrósio, bispo e doutor da Igreja. Boa leitura.

A misericórdia divina deixa-se facilmente vergar pelos gemidos desta mãe. Ela é viúva; os sofrimentos ou a morte do seu único filho quebraram-na. [...] Creio que esta viúva, rodeada da multidão do povo, é mais do que uma simples mulher que merece pelas suas lágrimas a ressurreição de um filho, jovem e único. Ela é a própria imagem da Santa Igreja que, com as suas lágrimas, no meio do cortejo fúnebre e até junto do túmulo, obtém que seja devolvido à vida o jovem povo deste mundo. [...]

Porque à palavra de Deus os mortos ressuscitam, reencontram a voz e a mãe recupera o seu filho; ele foi chamado do túmulo, foi arrancado ao sepulcro. Que túmulo é este para vós, senão o vosso mau comportamento? O vosso túmulo é a falta de fé. [...] Desse sepulcro, Cristo vos liberta; saireis do túmulo se escutardes a Palavra de Deus. E, se o vosso pecado for demasiado grave para que o possam lavar as lágrimas da vossa penitência, que intervenham por vós as lágrimas da vossa mãe Igreja. [...] Ela intercede por cada um dos seus filhos, como por outros tantos filhos únicos. Com efeito, ela é plena de compaixão e experimenta uma dor espiritual e materna sempre que vê os seus filhos arrastados para a morte pelo pecado.

sábado, 5 de junho de 2010

Um grande profeta surgiu entre nós, e Deus visitou o seu povo

Escutaram o Evangelho deste Domingo (X Comum)? Não? Então, segue abaixo:


Naquele tempo, Jesus dirigiu-se a uma cidade chamada Naim. Com ele iam seus discípulos e uma grande multidão. Quando chegou à porta da cidade, eis que levavam um defunto, filho único; e sua mãe era viúva. Grande multidão da cidade a acompanhava. Ao vê-la, o Senhor sentiu compaixão para com ela e lhe disse: “Não chores!” Aproximou-se, tocou o caixão, e os que o carregavam pararam. Então, Jesus disse: “Jovem, eu te ordeno, levanta-te!” O que estava morto sentou-se e começou a falar. E Jesus o entregou à sua mãe. Todos ficaram com muito medo e glorificavam a Deus, dizendo: “Um grande profeta apareceu entre nós e Deus veio visitar o seu povo”.
E a notícia do fato espalhou-se pela Judeia inteira, e por toda a redondeza.

Agora, comento:


Pode ser que nos sintamos alijados da Realidade fundante do Amor. Talvez pareçamos mortos, mas a fala do Senhor, seja na carícia, seja na dureza (Deus em si vai muito mais além de carícias e durezas, e usa de ambas para nos conquistar), vem querer abrir os nossos olhos para o Sol que nasce. Não nos enganemos! O Deus eterno, ao nos pôr aqui, levou tanto em consideração a sua obra que, destinando-a a Cristo, fez aparecer tudo o que lhe daria possibilidade de aparecer. Orientados pelo Oriente, ressuscitado dos mortos, acabamos por compreender que todos os entes da criação carregam em si uma memória de Deus. Eles não sabem disso. Só nós o podemos saber. Só nós lhes poderemos dar nomes, segundo a ordem concebida em nosso coração, iluminada pelo Sol que vem do Alto. Aí, nossa vida se torna culto, torna-se verdade, torna-se louvor, em continuidade com a ordem dada no processo contínuo da Criação.

Cabe dizer que estávamos mortos. Num momento seguinte, de volta à sinaxe, celebramos a Eucaristia. Só o homo celebrans, se ele não desconecta a palavra do coração, pode verdadeiramente enxergar. Caso contrário, os demônios lhe darão visões espetaculares. Na Eucaristia, tudo aquilo que a criação já vinha fazendo, celebrar, agora estamos a ver a plenitude de tudo aquilo, até onde vai esse Mistério.

O processo de alienação e desenraizamento de nosso tempo fez o homem perder o senso do Mistério. Tudo é tão trivial, tudo é tão racionalizável, destrinchável, sistematizável... Em nossas paróquias, corre-se o risco (se é que já não se mergulhou nisso) de o culto se transformar em um acontecimento trivial, que não traz mais nada de novo.

Pois bem, o homem morto, que está ressuscitando, e vos dirige a palavra veio se revigorar na Liturgia Sagrada. Ela é um Mistério, sempre tem algo grandioso a nos dizer (“Ele não se cala” nunca, não obstante seu aparente silêncio), e, embora compreendamos algo, sempre estará a dizer sempre mais. Na Eucaristia de hoje, Lucas narra a ressurreição que Jesus realizou no filho de uma viúva, de uma cidade chamada Naim (Lc 7,11-17). Havia uma multidão em cortejo fúnebre. O defunto era um filho de viúva. Prestemos atenção à situação dessa mulher, no contexto do tempo e do lugar em que Jesus estava. Quando o marido morre, a mulher jamais pode se dizer independente. Ela passa a ser responsabilidade do filho mais velho, e daí por diante. Se a mulher ficar só, ela não tem mais nenhum direito. Tem de pedir esmolas para sobreviver, viver de migalhas, coberta de molambos. Ela é ninguém, como os leprosos! Conseguiu o azar de ser jogada no mundo sem ninguém. E azar o dela! Essa mulher perdeu o marido, ...  e o filho responsável por ela. Não era só o seu filho, o seu querido, aquele que ela carregou por nove meses, viu crescer, brincar, aprender a Torah, trabalhar; era ela também que estava com sentença de morte, uma morte em vida. Uma mãe perder um filho já é um gládio que atinge o fundo de suas entranhas. Como se não bastasse, agora ela se tornara nada! Quem seria agora seu arrimo? Jesus, ao se deparar com a cena, sentiu compaixão dela.

Como é duro sentir-se só, abandonado! Não é à toa que Jesus sente compaixão dessa mulher. O que lhe daria a vida novamente? Não é à toa que a criação esconde possibilidades que só Deus, em sua pericorese, em seu movimento de Amor Trinitário, pode despertar. De fato, aí, Jesus, o Filho, realiza um milagre: reanima (devolve alma) ao jovem, ordenando-lhe levantar-se. O morto sentou-se e começou a falar. E Ele o entregou à mãe. A multidão teve medo e glorificou a Deus, dizendo: “Um grande profeta surgiu entre nós, e Deus visitou o seu povo”.

A pergunta é: o que Lucas quis dizer com isso? Será que só quis narrar um milagre? Será que só quis demonstrar o poder de Jesus sobre a morte? E por que não o experimentamos em nossos dias? Que quis dizer com isso?

Quem é a mulher? É Israel, abandonada à sua própria sorte. Seus filhos jamais lhe podem sustê-la. Eles morreram, suas crianças choram de fome, seus profetas e sacerdotes foram para o exílio, exílio de Deus. Lembram das Lamentações de Jeremias Profeta? “Olhai e vede se há dor semelhante à minha dor! ” A mulher é a humanidade, sem ninguém que advogue por ela, tratada como um trapo, ricos e pobres, homens e mulheres, jovens e velhos, solteiros e casados, estranhos, todos a si mesmos, num ensaio do que seja o inferno já aqui na terra.

Quando o filho lhe é devolvido, Israel e a humanidade se tornam reconciliada. Uma nova oportunidade, uma nova esperança se abre. Israel e a humanidade, judeus e gentios vão agora se congregar numa realidade chamada Igreja. A devolução do filho lembra a esperança ressurgida de Santa Maria Madalena, conforme cantamos na seqüência pascal, durante a Oitava de Páscoa. É essa a esperança ressurgida que sempre celebramos na Eucaristia.

E digo mais! A compaixão de Jesus não é a de quem se põe metaforicamente no lugar de outrem. Não é o simples sentir-se no lugar da mulher. Jesus vai para o lugar. Mas será o da mulher ou do rapaz? Jesus vai para o lugar do rapaz. O texto de Lucas, com paralelos sinóticos, fala, antes de mais nada, de Jesus, o Cristo, o Filho, aquele cuja ausência é desespero, e cuja devolução, da parte de Deus, onde a ciência não pode penetrar, mas está imerso na natureza por ele criada, é o renascer de nossa esperança. Se não fosse assim, a admiração da multidão seria apenas um susto pelo caricato fato de um morto interromper uma procissão fúnebre e começar a falar. Não! Seria muito pouco. A multidão professa a fé: “um grande profeta surgiu entre nós, e Deus visitou o seu povo!” O profeta fala de Deus, revela sua verdade. Lembram de Ezequiel, Profeta? Ele fala de um Deus que não fica indiferente à condição humana, por mais que se diga, como seus contemporâneos: “O Senhor abandonou o país, o Senhor não está vendo!” (Ez 9,9), como nossos contemporâneos. A fala de Jesus compreende algumas palavras (“levanta-te e anda”) e um grandioso gesto (“entregou-o à sua mãe”). De fato, Ele não precisa de muitas palavras, pois Ele é a Palavra, no dizer de Henri de Lubac, o Verbo abreviado, manifesto numa figura humana (mas foi uma figura assim, resplendente e fulgurante, que chamou Ezequiel à visão!).

Mas há aqui, ainda, ao menos no meu ver, uma última questão: houve uma mulher, bem real, bem concreta, bem histórica, de quem o Filho foi levado. Essa mulher é Maria, a mãe de Jesus. Será que Maria não lembrou dessa passagem evangélica que hoje escutamos? "Por que meu Filho, aquele que reanimou o filho da viúva de Naim e lhe deu consolação, não pode descer dessa cruz de escárnio?" Eis a noite de Maria! Naquela hora (cf. Jo 19,26-27), é assim que o evangelista João gosta de falar, Jesus dirigiu o olhar para Maria e disse: “eis o teu filho!”, e a ele, João, o discípulo amado: “eis a tua mãe!”, e diz ainda, “e daquela hora em diante o discípulo a levou para a sua casa”. Maria já tinha um filho. Ele lhe foi dado pelo próprio Jesus. Mas será a consolação de Maria completa? Bem, não será desprotegida socialmente, mas carregará consigo as marcas da Paixão de seu Filho.

Somente quando Cristo ressuscita dos mortos é que Maria pode ser consolada. Ela já não o terá como antes; tê-lo-á mais do que antes porque o Filho constituiu aí a humanidade reconciliada, da qual ela, João e mais uma inumerável descendência, de uma abundante filiação. São os filhos de Deus. Eles nasceram aí (“de Sião se diz: ‘nasceu nela todo homem!’”). Maria tem agora uma multidão de filhos, que já não são apenas seus, são de Deus. Deus assumiu seu destino e revigorou a esperança, de tal modo enchendo de óleo sua vasilha que jamais pudesse faltar. É assim que o Senhor nos cumula com o Espírito Santo, e nos enche dessa vida divina que nos faz perceber a grandiosidade de seu Amor.

A manhã deste Domingo seja ensolarada e os pássaros cantem a Deus alegremente! O Senhor continue sendo o nosso Sol e ilumine até as nossas sombras. Se as nuvens vierem, será refrigério. De um modo ou de outro, não nos deixará. Que jamais nos alijemos dELe. Amém!

Nosso Senhor queria que mesmo seus atos materiais fossem entendidos espiritualmente.

Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo
Os milagres de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo impressionam todos aqueles que os escutam e crêem, mas a uns de um modo, e a outros de outro. Alguns, na verdade, maravilhados com os milagres corpóreos, não sabem chegar aos maiores; outros, ouvindo o que se passa nos corpos, admiram mais ainda o que ocorre nas almas.
Se a mãe viúva (de Naim) se alegrou com a ressurreição do jovem, nossa Mãe, a Igreja, alegra-se diariamente com a ressurreição espiritual dos homens. Aquele estava morto em seu corpo; estes, em suas almas. A morte visível daqueles, era chorada visivelmente; a morte invisível destes não era lamentada, porque sequer a percebiam. Afligiu-se, no entanto, aquele que conhecia os mortos. E só conhecia os mortos o que era capaz de dar a vida. Pois se não tivesse vindo para ressuscitar os mortos, o Apóstolo não diria: Levanta-te, tu que dormes; levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará (Ef 5, 14).
Se três mortos foram ressuscitados visivelmente pelo Senhor, muitos o foram de modo invisível. Quem poderia dizer quantos mortos ressuscitou visivelmente? Pois nem todas as coisas que ele fez foram escritas, chegando João a declarar: Jesus fez ainda muitas outras coisas. Se todas elas fossem escritas uma por uma, creio que nem o mundo inteiro poderia conter os livros que seria preciso escrever(Jo 21, 25).
Muitos outros, sem dúvida, foram ressuscitados por Jesus, mas não é sem razão que apenas três são mencionados. Pois nosso Senhor queria que mesmo seus atos materiais fossem entendidos espiritualmente. Não fazia milagres somente por fazer milagres, mas para que esses, causando admiração àqueles que o vissem, levassem a verdade a quem soubesse compreendê-los.
Aquele que vê as letras de um livro bem escrito, mas não sabe ler, louva apenas a habilidade do copista e admira a beleza dos caracteres, mas não sabe o que significam e o que pretendem; seus olhos louvam, mas seu espírito não compreende. Já um outro louva a arte e compreende o sentido, pois é capaz de ver não apenas o que os outros vêem, mas pode também compreender o que está escrito, o que é impossível para quem não aprendeu a ler. Assim, aqueles que viram os milagres de Cristo e não compreenderam o que significavam e o que sugeriam aos que compreendessem, admiram apenas os fatos materiais; outros admiram o fato, mas compreendem também o que significam. É assim que devemos proceder na escola de Cristo.

Quem não se encanta com a pessoa de Jesus?

Quem não se encanta com a pessoa de Jesus? Talvez alguns não se comprometam com ele, não se envolvam com ele, não se encontrem com ele, não o conheçam (com os olhos da fé e do coração). Mas quem, ao contemplar seus gestos, suas palavras, seu carinho pelo ser humano, não se encanta com ele? É este Jesus, que sendo Deus, sendo Verbo de Deus, se fez carne e armou tenda entre nós, é ele que depois de seu batismo no Jordão, passou a sua vida "fazendo o bem e curando a todos os que estavam possuídos pelo demônio".

Jesus revelou o rosto carinhoso de Deus para o ser humano. Jesus se nos revela como O que conduz-nos ao Pai, dando-nos inteira confiança de que isto é possível. Jesus nos planta também a possibilidade de confiar que uma mudança é possível. É ele a porta sempre aberta ao novo. É ele a própria novidade de Deus. Curando a todos os que estavam possuídos pelo
demônio, isto é, pacificando o ser humano de suas revoltas, remontando seus cacos interiores, pelo Mistério Pascal, realizou uma nova aliança. A aliança é nova porque não vem de códices, de palavras, de regras, mas da pessoa mesma de Jesus. Vivê-lo em cada momento, celebrá-lo em cada Missa, escutá-lo na Palavra de Deus, acolhê-lo em cada irmão é a boa obra de amor à qual ele nos chama.

A história que vou contar muitos a conhecem e ao mesmo tempo não a conhecem. Tambeém acontece entre familiares, amigos, colegas de trabalho. É curioso notar o quanto pecado entrou nos mínimos aspectos de nossa vida. É mistério! Num momento da história, como em tantos de nossas histórias, Deus dera a liberdade ao homem: "podeis comer de qualquer fruto do jardim, menos o da Árvore da Vida e da Árvore do Bem e do Mal". É uma simbologia, para que o homem não queira egoisticamente ser dono da vida e aquele que decide sobre o bem e o mal. Nossa consciência conta essa história o tempo todo. É preciso assumi-la com maturidade. Mas somos frágeis, como Adão, Adhamar, vindo da terra, como um vaso de barro: facilmente se esfarela. Nossos ímpetos mais profundos nos movem a uma plenitude, a uma totalidade, e há caminhos fáceis, rápidos e errôneos para isso. Assim é: muitas vezes decidimos o que é bem e o que é mal. Às vezes no impulso; outras vezes, com a decisão obstinada de fazê-lo. Poderíamos pensar: e agora? O homem tem jeito ainda? Talvez a resposta da história seja negativa. Talvez a mídia não nos dê uma resposta séria. Talvez a pobreza, a guerra, a fome, a violência, nossas paixões descabidas façam desfalecer a nossa esperança. Mas Jesus, que desceu até as profundezas da condição humana, elevou-a a Deus. Diz o autor da Carta aos Hebreus: "Jesus tem o poder de salvar todo aquele que se aproxima de Deus por seu intermédio". Sim, salvar, dar uma condição nova, um olhar novo, uma esperança nova. Sim, pois as coisas antigas passaram. Ele mesmo diz: "eis que faço novas todas as coisas". Não precisamos mais vestirmo-nos de folhas de parreira e se esconder de Deus. Por Jesus, temos acesso ao Pai. Lembram do leproso, do cego, do aleijado, que foram curados e saíram pulando de alegria? Sim, porque agora sua esperança reacendeu.

Como o homem ainda se esconde e fica a compensar suas mágoas, suas feridas em coisas que só lhe dão lampejos de alegria, mas não lhe trazem plena felicidade! Dá pena tal situação.

Que todos vocês possam olhar para este Jesus, que viveu, sofreu, morreu e ressuscitou, tudo para nossa salvação, e possa ser ele alegria de todos os seus dias! Olhem para ele, que diz:

"Vinde a mim todos vós que estais cansados dos vossos fardos, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo, pois o meu fardo é leve, e o meu jugo, suave."

Um grande abraço, Santo Domingo e as bênçãos de Deus.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Elisabeth da Trindade e a epectase

Caros amigos, as palavras abaixo são uma tradução livre do trecho de uma dissertação de mestrado escrita por Catherina Maria Carratu, em Espiritualidade Cristã, pela Universidade da África do Sul. Seu título é "A comparative study of the mysticism of Elizabeth of the Trinity (1880-1906) and the Eastern Ortodox Church", de 2003. O trecho abaixo se refere à epectase e no que concerne ao progresso espiritual. As referências apresentadas são da pesquisa feita durante a dissertação. Penso que vale à pena lerem.

Gregório de Nissa contemplou a jornada da perfeição cristã como um perpétuo progresso (epectase) e é o tema central de sua teologia espiritual (Malherbe & Ferguson 1978:113). O conceito de epectase, é obtido da Carta de São Paulo aos Filipenses 3,13-14: "esquecendo-me do que fica para trás e avançando (= epectase) para o que está adiante, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto, que vem de Deus em Cristo Jesus". A idéia de epectase contém a noção de uma sinergia entre o esforço humano e o livre arbítrio e a graça de Deus. Os homens não são sujeitos passivos nas mãos do Artista divino, mas têm de avanças livremente para a ação purificadora, a iluminadora e a deificante do Espírito Santo. O termo "avançar" (epectase) denota esforço.

Elisabeth [da Trindade] se refere ao mesmo texto paulino, "eu levo adiante meu esforço em caminhar para alcançar o que Ele me destinou para me tomar em si. Meu interesse inteiro é esquecer o que fica para trás e me tensionar para a frente constantemente ao que está adiante. Eu corro em linha reta ao objetivo, à vocação à qual Deus me chamou em Cristo Jesus" (De Meester 1984:106). O trabalho de se tensionar em direção ao objetivo é adicionalmente expresso por Ela, como segue, 'antes de alcançá-lo (o centro mais profundo), a alma já está "em Deus que é seu centro", mas ainda não está em seu centro mais profundo. Ela pode ainda ir adiante. Uma vez que o amor é o que nos une a Deus, quanto mais intenso é este amor, mais profundamente a alma entra em Deus e se torna mais centrada nEle...; mas quando este amor tiver alcançado sua perfeição, a alma terá penetrado dentro do centro mais profundo (De Meester 1984:95-96). A idéia do progresso espiritual aparecer também em suas cartas. "Cada minuto nos é dado para 'enraizar-nos' mais profundamente em Deus, como diz São Paulo, assim a semelhança de nosso Arquétipo divino poderá ser mais impactante, a união, mais íntima" (De Meester 1995:358). Elisabeth também vê seu trabalho como um elogia da glória como iniciando já na terra e continuando na eternidade. Entretanto, para Elisabeth, cada tempo é eternidade iniciada e em progresso (De Meester 1984:141).

Os princípios contidos na epectase são também remetidos de maneira harmoniosa por Elisabeth em numerosas cartas onde ela fala do abandono (De Meester 1995:28,229) ou o repouso em Deus como uma criança no colo da mãe (ibid. 1995:11,158,216), bem como o esforço para se manter recolhido no interior (ibid. 1995:216). O abandono é mencionado aqui como um exemplo de epectase na mística de Elisabeth porque envolve um esforço real e uma tensão constante para O que virá. Não é fácil ser totalmente entregue ao que virá de Deus como um bebê no colo de sua mãe. Há um nada passivo sobre o auto-esquecimento, a auto-ignorância, contemplando o Mestre somente, aceitando tudo como proveniente diretamente dEle (De Meester 1995:358). "'Eu morro diariamente'. Eu me diminuo, eu me renuncio mais cada dia uma vez que Cristo pode elevar-se em mim e ser exaltado" (De Meester 1984:97). "Mas para ater-me a este amor, a alma deve primeiro estar 'inteiramente entregue'" (De Meester 1984:99). O conceito expresso por Elisabeth envolve um esforço muito real, sacrifício e constante fidelidade ao objetivo, e então, epectase.

Distante de uma concepção predeterminística radical da graça divina, que poderia facilmente ser o caso devido à centralidade da predestinação em seu misticismo, Elizabeth, sem ambiguidade e explicitamente, encoraja seus leitores a se jogarem para o crescimento de suias vidas espirituais. Eles também têm uma tarefa a cumprir, e isto é primeiramente uma matéria de auto-abertura ao Deus Triuno tanto quanto Ele possa fazer sua ação divina neles - tempo, espera, habitação são as palavras operativas, palavras que descrevem a epectase. Como isso é realizado? Pelo recolhimento interior de si mesmos, na presença que cura, perdoa e santifica das Três Pessoas Divinas e pelo abandono a Elas. O conceito de sinergia aqui implicado, embora Elisabeth não use essa palavra, é muito próximo daquele usado na Ortodoxia Oriental.

Suas exortações a seus correspondentes a praticar sacrifício e renúncia e crescerem em recolhimento interior (De Meester 1995:277-278) reforçam a idéia de que a união com Deus é um processo de crescimento contínuo. [...]

Tanto misticismo de Elisabeth como na Ortodoxia Oriental, o contemplativo é chamado a um perpétuo tensionamento em diração ao alvo. Paradoxalmente, o alvo nunca é completamente alcançado, porque Deus é um princípio infinito e espiritual.

A Deus o que é de Deus

Meus caros, continuamos agora a viver o Tempo Comum, ou, como se diz em latim, per annum. Cristo nos convida sempre ao seu amor e à sua verdade. Todos os nossos dias estão nEle e são dEle. Hoje, dizia-nos, mostrando uma moeda com a imagem de César:

«De quem é esta imagem e a inscrição?» Responderam: «De César.»
Jesus disse: «Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.»

Mas onde está a imagem de Deus, para aprandamos a lhe dar o que é devido? Eis que, com maestria, São Columbano (abade, séc. VII) nos responde:
Moisés escreveu na Lei: «Deus fez o homem à Sua imagem e semelhança» (Gn 1, 26). Peço-vos que considereis a importância desta afirmação: Deus, o omnipotente, o invisível, o incompreensível, o inestimável, ao formar o homem com o barro da terra, enobreceu-o com a imagem da Sua própria grandeza. O que têm em comum o homem e Deus, o barro e o espírito? Com efeito, «Deus é espírito» (Jo 4, 24). Foi, pois, uma grande prova de estima pelo homem ter-lhe Deus concedido a imagem da Sua eternidade e a semelhança da Sua própria vida. A grandeza do homem é a sua semelhança com Deus, desde que a conserve. [...]

Enquanto a alma fizer bom uso das virtudes nela semeadas, será semelhante a Deus. Deus ensinou-nos a remeter para Ele todas as virtudes que colocou em nós quando nos criou. Pede-nos, antes de mais, que amemos a Deus com todo o coração (Dt 6, 5), porque «Ele amou-nos primeiro» (1Jo 4, 10), amou-nos desde o começo, antes mesmo de existirmos. Amar a Deus é, pois, renovar em nós a Sua imagem. Ora, ama a Deus aquele que guarda os Seus mandamentos.
[...]

Temos, pois, o dever de reflectir em honra do nosso Deus, do nosso Pai, a imagem inviolada da Sua santidade, porque Ele é santo e nos disse: «Sede santos como Eu sou santo» (Lv 11, 45); com amor, porque Ele é amor e João disse: «Deus é amor» (1Jo 4, 8); com ternura e em verdade, porque Deus é bom e verdadeiro. Não sejamos pintores de uma imagem infiel. [...] E, a fim de não introduzirmos em nós a imagem do orgulho, consintamos que Cristo pinte a Sua imagem em nós.