domingo, 13 de julho de 2008

Ao final do retiro em Campos do Jordão, na Memória da Virgem Maria

“Bendize, ó minh’alma, ao Senhor, e todo o meu ser seu santo nome! Bendize, ó minh’alma, ao Senhor! Não te esqueças de nenhum de seus favores. Pois Ele te perdoa toda a culpa, e cura toda a tua enfermidade, da sepultura salva tua vida e te cerca de carinho e compaixão; de bens Ele sacia tua vida e tornas sempre jovem como a águia” (Sl 102,1-6).


Este Salmo que já havia me tocado há vários anos, para que através dele pudesse contemplar a misericórdia de Deus me foi dado de presente hoje de madrugada no I Noturno do Ofício de Vigílias. Foi o 1º salmo depois do Invitatório (Sl 94).

No penúltimo dia de retiro, já para encerrar as experiências de deserto, pois à tarde minha família vem se unir a mim, para celebrarmos o Domingo juntos e podermos matar as saudades, eu, minha esposa e meu filho, Deus inicia o dia suscitando a ação de graças em meu interior: “Bendize, minha alma, ao Senhor!”

De fato, como nunca pude vislumbrar, este foi um retiro todo conduzido pelo Senhor. Nele, pude experimentar suas misericórdias, especialmente através da Liturgia Sagrada, mas também através do ambiente por onde ela se estendeu, a criação de Deus e todos os fatos que se desdobraram em meu interior, como também nos diálogos com as pessoas com as quais encontrei, tão diferentes entre si: monjas, clérigos, pessoas do povo, funcionários da Abadia, especialmente nas horas de refeição e após a Santa Missa Conventual.

Comoveram-me a experiência do filho da viúva de Naim, da pecadora que chorava aos pés de Jesus em casa de Simão, de Mateus, o publicano. Cristo Jesus entrou na sepultura de cada um deles. Também posso dizer que entrou na minha sepultura, como canta o salmista e me ergueu de lá, qual Palavra inefável que ergue o homem em seu mistério.

Aliás, hoje é sábado, e estamos celebrando a Memória de Maria Virgem no Sábado. Essa memória lembra a Mãe de Deus (o título que mais amo na Virgem), aquela que, após a morte de seu Filho, perseverou no seu sepulcro. Pude falar um pouco desse mistério na terça-feira.

Perseverar no sepulcro... É isso que, desde longa tradição, os cristãos fazem no Sábado Santo, unidos à Virgem Maria. O silêncio típico desse dia fá-los unir àquela, que, bendita por ter trazido em seu seio o Criador do mundo, como nos lembra uma antífona mariana, vê o seu Filho no seio da terra. É a Virgem que vê seu Filho num outro seio. Que há de acontecer. A semente caiu na terra.

Jesus fala tantas vezes na semente... Hoje o Evangelho da Missa foi a parábola do semeador (Lc 8,4-15). Maria certamente a conhecia. A semente poderia cair em tantos tipos de terra: expostas aos pássaros, pedregosas, espinhosas, e até, ... , em terra fértil. Poderia ser uma pergunta de Maria: em qual terra meu Filho veio cair?

Na terra exposta aos pássaros, diria eu. Ele diz: “olhai as aves do céu (...), pois vosso Pai que está nos céus os alimenta” (Mt 6,26). E se as aves do céu são gratas ao Senhor elevando-lhe constantemente seus cânticos, como posso ouvir agora nos jardins desta Abadia, as aves que a parábola do semeador contempla vivem numa outra dinâmica: a diabólica.
Felizmente ou infelizmente, sabe Deus, as aves carregam em si esse simbolismo ditado pelo Verbo. É verdade que os demônios que comem a semente do Verbo serão destruídos. Mas, se a terra está cheia dessas aves de rapina, como poderá brotar a alegra do Verbo sobre a face terrestre? E Deus não deixa de semear, e as aves vêm e roubam mais uma vez, até que estejam saciadas (“saciais com vossos bens os ventres deles, e seus filhos também hão de saciar-se”, Sl 16,14), e nesse dia, a semente possa brotar na terra. Maria teve de ver a sua Semente cair aí... “Olhai e vede: há dor maior que minha dor?”

Eis que a terra humana, tão sujeita a intempéries e variáveis mil, é o lugar onde a Palavra veio ser semeada. Maria, tão imersa no espírito dos pobres de Israel, devia conhecer a passagem profética que diz: “assim como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam mais, mas vêm irrigar e fecundar a terra, e fazê-la germinar e dar semente, para o plantio e para a alimentação, assim a palavra que sair de minha boca; não voltará para mim vazia; antes, realizará tudo o que for de minha vontade e produzirá os efeitos que pretendi ao envia-la” (Is 55,10-11).

Sim! A Palavra há de cair na terra, mas Deus continuará sendo fiel. Pode ser que caia em terrenos pedregosos ou espinhosos. De fato, as tribulações, representadas pelas pedras, ou as preocupações, simbolizadas pelos espinhos, podem sufocar a Palavra. Que dizer dos que gritavam: “crucufica-o!”, ou dos apóstolos que fugiram ante a chegada das hostes que prenderam Jesus? O próprio Jesus vai dizer: “Tomai cuidado para que os vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez ou as preocupações da vida, e esse dia não caia de repente sobre vós” (Lc 21,34).

Não obstante a infertilidade do deserto humano, Deus continua sendo fiel. De fato, “o Filho do Homem foi entregue nas mãos dos homens”, e, enquanto isso, os gritos e gestos de violência continuavam. O mistério é que aí Ele se entrega ao Pai, cumprindo a profecia de Is 55,10-11. Mas, o que vemos? O que Maria vê? Seu Filho morto, em seus braços, a ser, depois, depositado num sepulcro.

Abro um parêntese para lembrar da experiência que eu e minha esposa tivemos ao vermos nosso filho Gabriel José morto em nossos braços. Foi algo dilaceramos. Variávamos da revolta à auto-punição, do desespero à esperança em curtos espaços de tempo. Ali era semeada uma palavrinha, uma imagem e semelhança do Logos. E não menos doloroso foi o ter de pô-lo numa gaveta de cemitério. Como dói essa lembrança!

Maria viveu a plenitude dessa experiência: ver seu Filho num sepulcro. É a ordem natural invertida. De fato, toda e qualquer ordem natural já havia sido corrompida há muito tempo... E isso foi assumido por esse mistério da piedade.

A semente da Palavra foi semeada em todos os terrenos. Resta apenas um se manifestar: o terreno fértil. Qual será ele? Se ele existir, Maria pode se encher de esperança. Se ele existir, eu e minha esposa também podemos ter uma esperança enorme. Se ele existir, o homem pode se reerguer, pois verá a semeadura brotar e crescer grandemente.

“Se o grão de trigo é jogado na terra e não morre, fica só um grão de trigo; mas se morre, ele dá muito fruto!” Cristo Jesus desperta o homem para a fidelidade de Deus. A sepultura diante da qual Maria se encontra é o lugar onde Jesus irá desaparecer totalmente para aparecer no seio do Pai. É esse lugar necessário para que alguém muito especial aos olhos de Deus se beneficie. Sabem quem? Adão. A leitura patrística do Ofício do Sábado Santo apresenta, nesse dia de grande silêncio, Jesus convidando Adão a se erguer. Nesse dia, diz o ofício da liturgia bizantina, já é Páscoa para Adão. A semente frutificou na sepultura de Adão.

Nesse dia, estar junto à Mãe de Deus é estar junto àquela que vela pela ressurreição do Filho do Homem, do Homem Todo, Cristo como Cabeça, a humanidade, qual Igreja ressurgida pelo chamado do Filho do Homem a erguer-se, como fizera com o filho da viúva de Naim, com a pecadora, com o publicano Mateus, com Lázaro, com Madalena, Pedro e tantos outros, como fez comigo, como seu Corpo.

Ressurge Cristo, ressurge o homem. Maria vela por esse mistério, guardando-o em seu coração como sempre o fizera. A semente, semeada em tantos lugares, acabou caindo nessa terra fértil. Deus apostou no coração humano, como apostou em Maria, para que a semente de sua Palavra, aquela que deifica o mundo, brotasse em toda a terra.

A terra, de fato, pode ser árida, mas nossos restos mortais a fertilizaram, para que a semente caída pudesse brotar. Sim, nossos restos, onde não havia mais pássaros, pedras ou espinhos, mas só o húmus do nosso simples ser humano, para que o Espírito renovasse a inteira face da terra.

Isso aconteceu neste retiro, para que se fizesse assim em minha vida. Possa eu ser fiel à esperança que suscitou em meu coração. Mais tarde, ao pôr-do-sol, já será Domingo, e já poderemos dar as boas vindas da noite, que, como a noite pascal, ilumina toda a terra escura e faz a semente plantada crescer e dar muito fruto. Que a Virgem Maria nos ensine a esperar e a nos alegrar assim! Amém!

Obrigado, Senhor!

quarta-feira, 2 de julho de 2008

“De noite, mesmo de noite, iremos buscar a fonte. Só nossa sede nos guia. Só nossa sede nos guia.” (J. Berthier, de Taizé)

Meus caros, escrevi este texto há cerca de dois anos e achei oportuno pô-lo aqui hoje, junto com o texto logo abaixo, por causa de sua interpertinência. Espero que a leitura seja proveitosa.



Há alguns momentos na vida em que bate uma saudade danada de não sei o quê... Talvez já tenhamos todos passado por momentos assim. Uma sede que parece do tamanho do infinito nos invade e toma de assalto nossas almas de maneira a encher nossos corações de uma certa vacuidade.

E com essa saudade do infinito parece que várias outras saudades de coisas sensíveis, pessoas, situações vêm juntas. É quando parece acontecer de perceber o tamanho de nosso exílio e de nossa solidão. Mas esse abismo também pode fazer perceber várias e grandiosas dimensões de nossas almas ainda não percebidas, ao menos até aqui.

Nessa hora, nossas carências podem falar alto, deparamo-nos com nossas contradições interiores, com nossas relações quebradiças com o outro, conosco mesmos, com a vida, com o mundo, com Deus...

E no aparente vazio da existência, a tentação de fugir dele (ou daquilo que eventualmente o expõe) não é rara. E é muito comum se observar isso nas compensações tão comuns que trazemos nessas horas. Por exemplo, diversas compulsões como comer, beber, viajar, ter relações sexuais e comprar, que, em si, nada trazem de mal, muito pelo contrário, acabam sendo escapes de como tentar preencher esse vazio. Pode ser que essas coisas evitem de nos fazer chorar, de nos inquietar..., pelo menos por algum tempo.

Mas esse vazio é do tamanho do infinito. Os antigos hebreus perceberam isso muito bem quando chamaram o homem de “nefesh”. Essa palavra é traduzida como a alma humana pelos textos da Septuagenta, bíblia traduzida para o grego na diáspora dos judeus, mas surge de algo mais primitivo do que o conceito de alma: a garganta. A antiga visão hebraica percebia o homem como uma garganta escancarada para o alto, necessitada de alimento, de água, de saciedade. Uma garganta aberta para o infinito...



Diz o Salmo 62: “minha alma tem sede de ti, minha carne também te deseja, como terra sedenta e sem água”. E ainda, o 42: “assim como a corça suspira pelas águas correntes, suspira igualmente a minh’alma por ti, ó meu Deus!” É dessa sede que envolve o homem todo que estamos falando, uma sede que marca inclusive sua carne, ou seja, revela-lhe sua fragilidade, sua contingência. Que paradoxo: um desejo tão grande num ser tão frágil.

Nessa hora, lembro-me do canto de Taizé transcrito no início deste texto. “De noite, mesmo de noite...” Quem busca, fá-lo até quando escurece. Sim, porque é possível que não tenha sono, não sossegue, enquanto não encontrar o que busca. De noite... Lembram da esposa do Cântico dos Cânticos? É em meio à noite que ela sai em busca de seu amado. Levanta-se de seu leito e se dirige à cidade para o encontrar.

Parece-me importante olhar e contemplar com carinho esses momentos. Eles podem nos despertar de nossa letargia, tirar-nos daquela mediocridade que nos faz pensar que já chegamos ao cume da montanha. Entulhar essa garganta, esse recipiente seria uma tentativa de matar esse desejo, uma poluição da alma.

Nessa hora, o Senhor Jesus nos dirige uma palavra que nos orienta: “Vigiai!” A vigília é a atitude daquele que espera. Quando eu era mais jovem, minha mãe esperava até muito tarde quando não chegava logo em casa. Testemunho também que esperei nove meses pelo encontro dos corações meu e de minha esposa, antes de iniciar o namoro. Todas as mães esperam cerca de nove meses pelo filho que há de nascer. Só quem ama espera e deseja.

O conselho de que vigiemos vem, pois, como algo que quer despertar em nós o amor e, despertando-o, possa lançar alguma luz sobre o ponto de encontro desse amor. Se isso acontecer, é o próprio amor que dilata nossa alma e faz perceber algo mais daquele amor eterno que se manifesta desde toda a eternidade para dar sentido ao nosso sonho, nosso anelo.

Cristo também dirige uma palavra de relevante significado nesse contexto. “Se soubesses quem te diz ‘Dá-me de beber’, tu mesma pedirias de beber. (...) Em verdade, digo-te que, quem beber dessa água nunca mais terá sede”. Foi no encontro com a samaritana, próximo ao poço de Jacó. Mas o verdadeiro poço de Jacó é Cristo. Nele, encontramos a verdadeira água viva que jorra para a vida eterna.

“Nefesh” é uma palavra que também nos lembra “comer”. Quanto de nosso desejo não desperta ansiedade, vontade de devorar o mundo, uma impaciência danada... Às vezes, pode ser que nossas atitudes mais primitivas, mais animalescas surjam justamente aí. Pode ser que a morte de algum de nossos mais queridos proporcione o surgimento desses momentos. Pode ser que traumas de diversos matizes revelem essa dimensão desconhecida que parece contradizer nossos ideais, nossa formação moral, nossos conceitos e questione tudo o que somos ou que pensamos ser.

“Quem comer a minha carne e beber o meu sangue terá a vida eterna”. A catequese do evangelista João no discurso do Pão da Vida (capítulo 6 de seu evangelho) é claramente uma catequese eucarística. É necessário comer e beber do corpo e sangue de Cristo para encontrar a Vida..., mas não é suficiente. A atitude de quem deglute o Cristo para a Vida é a daquele que quer viver com Ele, por Ele e Nele. É a atitude eucarística, ou seja, da ação de graças. É a atitude de quem comeu e bebeu com Ele, “na NOITE em que ia ser entregue”, quando ele “tomou o pão em suas mãos, DEU GRAÇAS e o partiu, e o deu a seus discípulos dizendo: tomai todos e comei. Isto é o meu corpo que será entregue por vós”. A ação de graças suprema de Cristo Jesus se dá imediatamente antes de sua Paixão, na noite, na treva de sua vida, quando até o Pai parecia tê-lo abandonado e sua morte já se fazia inevitável.

Deu graças, não obstante o vazio. De fato, aí estão “as lições que melhor educam”. Na noite, dar graças, buscá-lo, mas na quietude de quem sabe que será encontrado antes de encontrar, mesmo que todas as instâncias deste mundo digam o contrário...
Sim, Senhor, porque buscar-te não é simplesmente humano, é sobre-humano, é divino, e sem te guardarmos no coração, sem carregarmos em nós as marcas com as quais nos marcaste, como te encontraremos? Viajaremos o universo inteiro e nosso vazio continuará. Por isso, Senhor, tu que tens o universo em tuas mãos, dá-nos a mansidão e a quietude de espírito para te buscarmos na serenidade de Cristo Jesus, sem O Qual nada podemos fazer. Sim, haverá uma inquietude que nos move, que nos arranca da mediocridade e da alienação do mistério da Vida, mas seja ela orientada pelo vento do Espírito Santo, que conduza nossas almas para o verdadeiro valor que preenche nossas vidas. Assim, nossa sede, de fato, nos guia a buscar a fonte, onde podemos beber e saber que estaremos vivos para todo o sempre. Amém!

"Na região dos gerasenos..."

Mais uma vez, hoje a Liturgia vem ser bálsamo para as nossas feridas, uma unção para nossos pensamentos, palavras e ações. Depois de atravessar o Mar da Galiléia e fazer cessar uma tempestade no meio do mar, Jesus chega a seu lado oposto: a região dos gerasenos ou gadarenos. Impressiona a imediatez com que dois homens lhe vêm ao encontro. Diz o texto de Mateus que eram muito violentos, possuídos pelo demônio.

Agora, abramos um parêntese, para observar o contexto desse início. O Evangelho de Mateus, tal como o conhecemos, foi escrito em grego, por volta do ano 80. Para esse ambiente, certa antropologia considerava que os deslizes do homem não eram provocados por ele, mas por entes invisíveis, mais potentes que o homem, chamados demônios. Ou seja, demônios, dentro desse contexto grego antigo, eram potestades capazes de orientar os atos humanos, muitas vezes à revelia de sua vontade. Tudo aquilo sobre o quê o homem era incapaz de governar em si e se manifestava de alguma forma era obra de demônios. Por exemplo, se um homem ficava nervoso e perdia o controle derramando sua fúria sobre alguém, não era ele quem estava agindo, mas um demônio, através dele. Essa condição era aquela na qual o homem estava sendo governado por um demônio.

Não se tratava de um ente bom ou mau, não havia até então uma identificação com Satanás ou, como tratam os catecismos de diversas épocas, com os seus séquitos. Eram potestades. Podia ser útil que uma potestade se pusesse em ação, por exemplo, na hora de prender um criminoso ou defender uma cidade. O fato é que eram entes invisíveis, mas não menos reais, e verdadeiros agentes pessoais, já que provocavam reações as mais diversas no homem.

É vivendo nesse contexto que os cristãos vão enxergar aí um espaço aberto para o senhorio de Cristo. Mateus, que, como outros apóstolos, se move pelo mundo grego, absorve essa forma de conhecimento antropológico. Na verdade, esse texto tem sua forma mais primitiva em Marcos, que segue sempre Pedro e escreve para os cristãos de Roma. Mateus, escrevendo para cristãos convertidos do judaísmo, assume esses elementos, já que os judeus estão espalhados por todo o mundo de influência da cultura helênica.

Mais tarde, a Tradição vai sistematizar o conhecimento acerca dos demônios. É só no século III que irá surgir uma orientação sistemática sobre eles. O responsável por ela é um monge, chamado Evágrio, da região do Ponto, Ásia Menor (por isso chamado Evágrio Pôntico). Este monge, nas suas lutas pessoais, num processo de grande observação interior (Evágrio passou por diversos processos de desordem interior em sua vida), pôde distinguir os demônios fundamentalmente em número de oito. São eles: gastrimargia (mais tarde chamada de gula), ira, luxúria, inveja, avareza, tristeza, acídia e vanglória. Para Evágrio, o homem natural era movido por essas potestades. Mais tarde, haurindo das fontes da tradição monástica, São Gregório Magno elaboraria um catecismo onde essas potestades são distribuídas em número de sete e passam a se chamar pecados capitais. A diferença é que tristeza e acídia são postas num mesmo contexto e passam a ser chamadas genericamente de preguiça. E assim, tornam-se difundidas por todo o mundo cristão.

Mas por que São Gregório passa a chamar de pecados aquilo que parecia tão conatural ao homem? Meus caros, tenham bem em mente que pecado não é uma ação, não é simplesmente uma puntual direção das capacidades humanas para o mal. Essas ações, esses direcionamentos são proporcionados por algo maior do que eles. Pois é! Se os demônios são grandes, há algo ainda maior do que eles! Na verdade, neste ponto, estamos falando precisamente do drama de toda a história da salvação: o homem é sedento, pura sede de plenitude, perenidade, deseja, busca sempre algo que lhe transcenda, que torne pleno de todo valor todo o seu corpo, sua alma, seus anseios, sua vida.O homem tem sede de Deus. Ser homem é ser sedento de Deus e de desejar estar com Ele, e de ser com Ele, ser nEle, ser UM com Ele. Numa palavra, o homem foi destinado para ser filho dEle. Vejam só: no Gênesis, a tentação que a serpente lhe incute sobre sua indecisão é: “sereis como deuses”. A serpente jogou muito sujo com o homem. Mexeu no seu ponto fraco...

Essa drama está justamente aí: foi buscando ser como Deus que o homem agiu assim. O que o homem não podia compreender é que não era sua pura e simples busca que assim o faria. E assim corria o risco de chamar de Deus aquilo que não era Deus, e declarar que toda a sua sede de plenitude poderia ser saciada por aquilo que não lhe podia saciar. Em suma, o homem viu uma imagem do alvo, um reflexo de sua centralidade, um ponto. Tomou o seu arco, pôs sua flecha e atirou, ..., e errou o alvo. Pois bem, aqui está o problema do pecado. A palavra grega é hamartya, que significa “errar o alvo”. O pecado está aí. O pecado nasce de uma sede de Deus, marcada pela opacidade de não poder enxergar o alvo de sua vida.

Agora, fica mais fácil entender o nexo que há entre os demônios, Satanás e o pecado. Vejam: a busca de Deus no homem natural aparece como presa de Satanás, ou, conforme os termos da Tradição, a antiga serpente, capaz de enganar, iludir. A serpente era símbolo do culto a Baal, deus-mito dos cananeus. Assim, o inimigo de Deus teve eleito como seu representante o representante do deus do povo inimigo do povo de Deus. A serpente falava aos demônios, os demônios falavam ao homem, e o homem cedia. Daí, o pecado originava pecados. Nesse contexto, os demônios passam a ser vistos como séqüitos da serpente, e os pecados como resultados da existência dos demônios em nós. Mais adiante, a teologia espiritual viu por bem, para fugir das armadilhas contidas nos significados das palavras, chamar os demônios de doenças espirituais. Assim caracterizaria a condição do homem natural: marcado pela incompletude ferida. É como um orgulho ferido, que precisa ser correspondido. Sobre elas e sua terapia, recomendo escutar todas as conferências sobre doenças espirituais, realizadas pelo Pe. Paulo Ricardo, da Arquidiocese de Cuiabá, no site: http://www.padrepauloricardo.org/ . Estão em mp3 e podem ser livremente baixadas e escutadas.

Visto isto, é importante dizer que, conforme a penetração do Evangelho nessa antropologia grega clássica, o homem natural é joguete dos demônios. Eles falam e ele atende. Eles mandam, ele obedece. Conforme a mesma antropologia, que também marcou a escrita dos catecismos ao longo dos séculos, e inclusive o Compêndio de Teologia Mística e Ascética, de Tanquerey, o que distingue um homem de um outro animal são três características: inteligência, vontade e coração (aqui significando subjetividade). No homem natural, as três estão sujeitas aos demônios. Em seu crescimento, o homem aprende, conforme essas faculdades, a falar aos demônios e eles ficarem em seus devidos lugares. Ao exercitar a vontade, a inteligência e os sentimentos, o homem se torna capaz de mandar nos demônios, e estes se tornam seus servos. O problema aqui é: pode ser que uma, apenas uma dessas faculdades seja cativada ou mesmo seqüestrada pela fala de um demônio, por seu discurso persuasivo, por suas ameaças. Nesse caso, essa faculdade, que tem o mesmo poder que as demais, irá entrar em conflito (Cf. Tg 4,1) com as demais e até mesmo sujeita-las. É a esse respeito que Jesus diz em outra passagem do Evangelho: “um demônio vem, encontra a casa em ordem, e traz mais sete demônios piores do que ele”, e ainda “não pequeis para que não te aconteça algo pior”.

O homem marcado pelo Espírito Santo, entretanto, carrega ainda em si uma outra faculdade. Esta não é dele, mas de Deus, dom de Cristo Ressuscitado aos seus discípulos. Uma palavra é dita, e desfaz a desordem das palavras, dos pensamentos instalados por dentro das faculdades humanas. Vejam bem: um demônio age por uma única palavra. Ela gera pensamentos, coações, seduções. Anuvia as capacidades de vontade, inteligência e sentimento. Pois bem, meus caros, é preciso que essa palavra seja respondida onde ela nasce, lá, diante do demônio. Não tenhamos medo dele! Não tenhamos medo de nós. Se cremos no Espírito Santo, Ele é capaz de responder com a devida medida aos nossos demônios. É preciso, entretanto, que vigiemos!

“Vigiai e orai a todo momento!, diz-nos Jesus. Esse processo da vigilância, do estar em perene dialogar com Deus em tudo o que fazemos, pensamos ou dizemos é o que possibilita que seu Espírito penetre nessas profundas cavernas de nosso ser e encontre as armadilhas e ameaças aí preparadas. Lembram do Evangelho de hoje, que citamos no começo do texto (Mt 8,28-34)? Jesus disse: “Ide!”, e os demônios se atiraram numa manda de porcos, ou seja, saíram do homem e foram agir em outro lugar. Jesus deixa a paz reinar nesse homem. Em outra passagem, um oficial romano vai dizer: “não sou digno de que entres em minha casa, mas diz uma palavra e serei salvo”! Vêem? Que palavra é essa?

São João da Cruz diz que Deus em toda a sua vida “pronunciou uma única palavra, e essa palavra é seu Verbo, gerado no silêncio, e apenas no silêncio haveria de ser escutada”. Vejam bem, meus caros: a Palavra é concebida no silêncio, lá onde somos nós mesmos, lá onde o presente delineia o futuro, lá onde o horizonte se abre e nos enche de esperança para que a vida aconteça valendo à pena. É preciso que encontremos a Palavra ali, no interior de nossa vida, nas suas reclamações, no interior de nós mesmos, no meio dos demônios, que se alimentam do nosso nada. Lá, ele diz: “Que tens a ver conosco, Filho de Deus?” Da mesma forma, que a pronúncia da Palavra de Deus cria o universo do nada, essa mesma pronúncia nos recria sempre a partir de nosso nada! É essa pronúncia que nos torna filhos de Deus.

Na Santa Regra, Nosso Pai São Bento, parafraseando um Salmo 108 diz a seus filhos: “quando o maligno diabo tenta persuadi- lo de alguma coisa, repelindo-o das vistas do seu coração, a ele e suas sugestões, redu-lo a nada, agarra os seus pensamentos ainda ao nascer e quebra-os de encontro ao Cristo” (Prólogo, 28). Esse movimento de atirar os pensamentos na cruz sugere plasticamente mas com bastante precisão o papel do Espírito Santo na vida do cristão. É onde a Palavra de Deus é pronunciada e o demônio se cala. É ali onde nasce um homem novo.

Para tanto, meus caros, é preciso que Jesus, homem sem pecado (seria absurdo porque gerado dentro da própria natureza divina; Ele é, pois, o alvo!) entre em nossa vida, visite-a, como visitou aquela região inóspita. Afinal, que tem Ele a ver conosco? Que tem Ele a ver com nossas sepulturas, por meio das quais continuamos a andar, em lugares onde ninguém pode chegar perto, sob pena de haver uma violência? Que tem ele a ver com nossos demônios e nosso inferno? Diz São João Crisóstomo: “Jesus Cristo entrou no abismo conquistando os infernos. Naquele dia, ‘Ele despedaçou as portas de bronze, quebrou os ferrolhos de ferro’, como disse Isaías (Is 45,2)”. Esse é um trecho de sua homilia sobre a palavra “cemitério” e sobre a cruz. São João Crisóstomo se refere à descida à Mansão dos Mortos. Essa descida se deu hoje, no coração do endemoninhado de Gerasa, em meu coração, e em teu coração. Hoje, ele quebrou trancas de ferro, arrombou portas de bronze. Somos livres. E nossa liberdade consiste nisto: em escutá-lo, em transfigurarmo-nos conforme a moção do seu Espírito (Sopro, Voz) em nosso interior. Escutemo-lo, para não sermos mais joguetes dos demônios.

E rezemos com o salmista (Salmo 106):

– 10 Alguns jaziam em meio a trevas pavorosas, *
prisioneiros da miséria e das correntes,
– 11 por se terem revoltado contra Deus *
e desprezado os conselhos do Altíssimo.
– 12 Ele quebrou seus corações com o sofrimento; *
eles tombaram e ninguém veio ajudá-los!

– 13 Mas gritaram ao Senhor na aflição *
e Ele os libertou daquela angústia.
– 14 E os retirou daquelas trevas pavorosas, *
despedaçou suas correntes, seus grilhões.

– 15 Agradeçam ao Senhor por seu amor *
e por suas maravilhas entre os homens!
– 16 Porque ele arrombou portas de bronze *
e quebrou trancas de ferro das prisões!

– 17 Uns deliravam no caminho do pecado, *
sofrendo a conseqüência de seus crimes;
– 18 todo alimento era por eles rejeitado *
e da morte junto às portas, se encontravam.

– 19 Mas gritaram ao Senhor na aflição *
e Ele os libertou daquela angústia.
– 20 Enviou sua palavra e os curou *
e arrancou as suas vidas do sepulcro.

– 21 Agradeçam ao Senhor por seu amor *
e por suas maravilhas entre os homens!
– 22 Ofereçam sacrifícios de louvor *
e proclamem na alegria suas obras!

– Glória ao Pai, e ao Filho, e ao Espírito Santo,*
Como era no princípio, agora e sempre. Amém!