quarta-feira, 18 de maio de 2011

Aprofundando o Mistério Pascal

“Estêvão, cheio do Espírito Santo, olhou para a céu e viu a glória de Deus e Jesus, de pé, à direita de Deus. E disse: ‘Estou vendo o céu aberto, e o Filho do Homem, de pé, à direita de Deus’ ” (At 7,55-56).



Essas misteriosas palavras são citadas em continuidade com o testemunho do Mistério Pascal que continuamos a celebrar por cinqüenta dias, até a grandiosa Solenidade de Pentecostes. Elas nos fazem lembrar as palavras do Salmo 2: “Por que os povos agitados se revoltam? Por que tramam as nações projetos vãos? Por que os reis de toda a terra se reúnem contra o Deus Onipotente e o seu ungido?”

Porque não conheceram a Deus.

Mas quem o conheceu? São Paulo o pergunta na Carta aos Romanos. Conheceu-o quem chorou, quem sentiu suas misérias, sua pequenez, sua esperança desfalecer, quem encontrou no húmus da terra sua verdadeira raiz perecível e recebeu a graça de contemplar aquele Cristo que, tendo vivido essas mesmas coisas, até a morte ignominiosa, ressuscitou pela mais livre ação do Pai, incondicionada às leis do tempo e do espaço, e, mostrando que, as leis do tempo e do espaço são, essas sim, condicionadas a uma outra Lei. Sendo assim, aquele que o viu, que o escutou, que o tocou, que experimentou do Verbo da vida, percebeu que sua vida já não é mais tão somente uma sucessão de fatos justapostos, uma colcha de retalhos, mas um espaço eminentemente vazio, para que possa ser preenchido pela glória, pela consistência, pela densidade da vida divina. Essa vida tem um nome e é uma Pessoa: é o Espírito Santo.

Caros irmãos, sejamos honestos diante de Nosso Senhor: fomos nós que o matamos, fomos nós que lhe renegamos, fomos nós que lhe vendemos por trinta moedas de prata ou por ainda menos, fomos nós que o abandonamos. Nossa vida fala dessas coisas o tempo inteiro.

Pois bem, dessas coisas não escapam sequer os apóstolos. Foram homens do tempo, de um tempo. Eles esperavam glória, honra, reino, poder, vitória sobre o Império. Esperavam um messias à sua maneira, um rei que lhes justificasse os caprichos, um Deus que se dobrasse a seus impulsos mais profundos. E, no entanto, aquele que lhes veio quebrou todas as suas expectativas. Caros irmãos, sejamos honestos: Cristo nos desconcerta. Ele quebra nossos esquemas, rompe nossos planos, abre nossa realidade a uma Realidade que ainda não esperávamos. Em certo sentido, junto com sua morte, vai nossas humanas esperanças, nossas expectativas, nossos loucos e megalômanos ímpetos.

É típico de nosso tempo falar em uma racionalidade fechada em si mesma. É nessa racionalidade que estão situadas nossas políticas, nossas universidades, nossos centros de pesquisa, nossa avaliação da história, nosso julgamento dos fatos hodiernos. E se isso vale para os pagãos, os ateus práticos, os agnósticos, os sem esperança, aqueles que em verdade constituem a esmagadora maioria de pessoas em nosso tempo, mesmo freqüentando igrejas e outros templos, vale de maneira surpreendentemente maior para nós, cristãos. E por um motivo muito simples: não sabemos mais que fé nós professamos. Verdade seja dita, não sabemos mais por que somos cristãos, não temos mais aquela certeza, ao mesmo tempo, inocente de uma pomba e esperta de uma serpente, aquela certeza originária da Igreja, dos primeiros apóstolos, de que Cristo ressuscitou verdadeiramente. Tenho uma série de reservas (incluindo-me) ao fato de nossas paróquias terem muita gente que faça coisas da Igreja, se envolvam com movimentos, festas, corais, grupos de oração e tantas outras legítimas circunstâncias, metam-se a fazer as coisas de Cristo, mas esqueçam-se ... do Cristo. A vergonha de nossa cristandade ocidental hodierna é pensar que testemunho é isso: meter-se a fazer coisas, para atrair a populaça pagã, fazendo-a pensar que assim se converte; lotar igrejas em missas de Domingo, sem se dar conta que o Evangelho começa a ser perjurado ali mesmo, porque o mundo pensa igualzinho aos apóstolos ou os discípulos de Emaús antes da Páscoa: “nós pensávamos que fosse salvar Israel, mas...”

A vergonha de meu tempo, a minha vergonha como cristão, em tempos de crise na Igreja, quando a Barca de Pedro é sacudida de alto a baixo pelos ventos, tempestades e ondas monstruosas do mar da existência, é saber que tudo isso existe e não tomamos sequer o pé da situação. Pior: é ver uma cristandade levianamente levada a pensar que está cumprindo a vontade de Deus. Eu, sinceramente, tenho muitas dúvidas de se estou cumprindo a vontade de Deus. E minha dúvida se estende mesmo às comunidades onde de alguma forma estou inserido. Gostaria mesmo de estar e peço insistentemente a Deus que “seja feita a sua vontade”, mas, como diria Jeremias Profeta, “em tudo é enganador o coração, e isto é incurável, quem poderá conhecê-lo?”

Hoje, parece que caminhamos numa linha tênue entre o pecado e a graça. Certamente, essa linha sempre foi tênue, assim como testemunham os Santos Padres do Deserto. Mas esses homens de virtude heróica puderam assimilar de maneira muito original o ensinamento dos apóstolos. O que eles faziam? Somente uma coisa, dizia um deles: “caía e levantava”. Deus do céu! Que palavras simples! O termo usado para um modo de viver tão simples é o que se refere exatamente ao Mistério Pascal: cair e levantar. Esse modo de viver atraiu milhares de pessoas ao deserto em seu tempo para que fossem simplesmente “cair e levantar”, dia após dia, instante após instante. E somente porque o instante é a circunstância onde a esterilidade de nossos atos pode ser fecundada com a graça de Cristo, ou seja, o instante pode ser eterno, que cair e levantar pode desde já ser a realização do Mistério Pascal em nossa vida.

Cabe, no entanto, reconhecermos algo: há uma aliança a ser feita. Da mesma forma que Deus age livremente realizando o Mistério de Cristo, sua encarnação virginal no seio virginal de Maria, sua vida, sua morte vergonhosa, sua sepultura escandalosamente silenciosa, como o próprio silêncio contemplativo de nosso Deus, e sua inaudita e inefável Ressurreição dentre os mortos, é necessária uma atitude livre de nossa parte, livre de condicionamentos quaisquer que sejam. Essa atitude de aliança, de pacto, de cumplicidade, de estreito vínculo com Deus se dá pela fé neste Mistério, fé esta que age em nosso “cair e levantar”, cada dia, cada instante. Cumpre lembrar-se de que ao cairmos é Cristo que é semeado na terra, na nossa terra, que somos nós mesmos, para que o Pai o ressuscite dos mortos, ressuscitando nossa esperança nEle.

Voltemos à comunidade apostólica: lembremos do olhar de Pedro, após negar Jesus três vezes; lembremos do olhar que Jesus Ressuscitado lhe dirige quando lhe pergunta três vezes pelo seu amor. Pedro chora copiosamente, Pedro reconhece sua humanidade humilhada, e ... simplesmente põe sua vida no olhar de Jesus. Diante de Pedro, aquele Pedro impetuoso, está aquele cujo olhar jamais lhe sairá de seu olhar, por mais que sua presença física não aconteça mais de maneira desvelada até o fim dos tempos. Para ele, esse olhar será como os céus escancarados em sua vida, para sempre. O testemunho da Igreja é o testemunho da abertura Pedro mesmo, ao se dirigir aos diversos povos e aos judeus em Pentecostes vai lembrar das palavras de Davi, cantadas no Salmo 15: “tenho sempre o Senhor ante meus olhos, pois se o tenho a meu lado não vacilo”.

Agora, voltemos ao primeiro parágrafo. Estêvão vê os céus abertos. Essa passagem muitas vezes não é notada. Por muitos, pode-se passar como uma visão subjetiva, um momento psíquico alterado diante da iminência de sua morte por lapidação. Os céus abertos que Estêvão vê é o próprio Mistério Pascal acontecendo na sua vida, quando se une aos sofrimentos de seu Senhor. É na miséria em que se encontra, entregue nas mãos dos ímpios, que Estêvão viverá com profundidade e radicalidade o Mistério da Páscoa de Cristo.

Juntamente com ele, vários outros assim o testemunharam. Por exemplo, conforme o Martirológio Romano, há poucos dias, comemorava-se Santa Teodora, virgem e mártir. O mesmo descreve assim seus últimos momentos: “Recusando-se a sacrificar aos ídolos, respondeu ao prefeito: ‘Acima de tudo devo adorar só Jesus Cristo, que me concedeu a verdadeira liberdade e a verdadeira nobreza’. O prefeito mandou então que ela fosse levada a um lugar de prostituição. Mas, por admirável favor de Deus, um dos cristãos, chamado Dídimo, a tirou de lá imediatamente. Mais tarde, porém, na perseguição de Diocleciano, sob o prefeito Eustrácio, ele foi morto com a mesma virgem, e assim receberam juntos a nobilíssima coroa do martírio.” Desde tempos imemoriais os cristãos professam a fé, especialmente no Batismo e na sua renovação de promessas cada Domingo. Mas sabem em que circunstâncias era professada a fé nesses tempos? Leiam um trecho da Ata do Martírio de São Justino (do Ofício Divino, de 1º de junho, já publicado neste blog): aqui.

Era assim que nossos antepassados professavam a fé. Dá o que pensar no modo como a professamos, na Liturgia e na vida...

Lembra-nos Olivier Clément, grande teólogo ortodoxo do século XX, que o martírio é como que uma segunda natureza na vida de um homem. De tal modo, aquele ser se deparou continuamente com Cristo em sua história que, na hora da mais radical impotência, na hora em que todas as suas forças humanas lhe deveriam negar a morte (e com isso negar a Cristo), uma força que não nasceu com eles, mas nasceu, foi regada continuamente e cresceu neles pôde falar mais alto. Se todas as criaturas, conforme nos lembra São Gregório de Nazianzo, carregam em si uma expressão do Criador, o mártir carrega em si a expressão do Salvador.

Nessa hora, em que nos parece ser o cristianismo algo muito mais sério do que aquilo que assumimos quando resolvemos ser cristãos de algum modo, a ponto de desfalecerem nossos sentido, vem em nosso socorro a palavra que São Paulo dirige a Timóteo: “lembra-te de Jesus Cristo, da descendência de Davi, ressuscitado dentre os mortos.”. Lembrar-se de Cristo é mais do que ter uma lembrança de uma imagem ou de um gesto simpático dele; lembrar-se de Cristo é lembrar-se de sua Páscoa. É algo tão grandioso que somente nos resta dizer: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”.

Lembrar-se de Cristo é acima de tudo continuar em nossa vida a ação eucarística. Em cada Missa, esse Mistério revela sua presença e atualidade: “nós matamos o autor da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos”, lembrava-nos Pedro no último Domingo, dirigindo essas palavras aqueles que deveriam se converter. E dizia mais: “e disso somos testemunhas”. De fato, em cada Eucaristia cantamos: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa Ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!”

Pois bem! É esse anúncio e esse desejo que precisa ser manifesto em nossa vida inteira. Lembro do texto último que enviara aos senhores daquela razão fundamental que esses 50 dias de Páscoa nos querem fazer lembrar: o papel e a ação dos sacramentos em nossa vida, e o significado de sermos cristãos. Se, de fato, (ainda) não há uma perseguição declarada em nosso ambiente, somente seremos firmes num combate, ou seja, fiéis de verdade, como os mártires, se soubermos combater tudo aquilo que é inimizade com Deus hoje, a partir de dentro de nós. Trata-se, de fato, de perscrutar a vontade, a inteligência e o coração. Dentro de nós, para os que não vivemos de maneira superficial, à moda do mundo, trava-se um combate por vezes exaustivo entre nossas paixões e a vontade de Deus, nossa ilusão mascarada e a Realidade, aquilo que para nós é bem e o Verdadeiro e Sumo Bem. Lembram-se do supracitado testemunho de Santa Teodora? Ele “me concedeu a verdadeira liberdade”. O que é a verdadeira liberdade senão esse mistério que acontece na mais íntima realidade de nosso ser, o mistério de cair e levantar, sempre, diante de Deus, até que, de fato, possamos estar de pé no Dia da vinda do Filho do Homem. Esse Dia, a Páscoa última e eterna, é tudo aquilo que um cristão pode ansiar por detrás de todos os anseios humanos. É por isso que repetimos: “Maranathá”, vinde, Senhor Jesus! Em Santo Estêvão, esse Dia se antecipou em seu olhar, quando antes da morte pôde ter a bem-aventurada visão dos céus abertos.

A verdadeira liberdade está no exercício que a Páscoa de Cristo nos propõe cada dia, para que cada instante seja impregnado do Eterno Instante, do sabor do Dia Último e Primeiro de nossas vidas. Santo Inácio de Antioquia, ao se dirigir ao seu martírio, que se daria em Roma, no século II, disse aos romanos que queriam livrar-lhe do patíbulo: “quando eu chegar lá, serei homem!” Sim, meus caros, Inácio caridosamente nos lembra: ainda não somos homens de verdade.

Caros irmãos, se nossas promessas, votos e profissões às vezes saem de nossa boca com certa leviandade de coração, não desanimemos. “Temos junto do Pai um Defensor, Jesus Cristo, o justo”. Ele já realizou a grande promessa que Deus tinha feito antes pela Lei e pelos Profetas. Aliás, é isso que Jesus realiza no cenáculo, quando visita os Apóstolos em sua sepultura forjada, onde esperariam a morte seja por inanição seja pelo ataque dos judeus, e em cada Eucaristia: abrir a nossa inteligência, tão fechada, tão tacanha, tão mesquinha...

Junto com todos vocês, gostaria de começar e recomeçar, nesta Páscoa, a ser cristão de verdade. Esse anúncio, esse testemunho, esse Mistério não se reduz a uma doutrina, a um código moral, a um ritual ou a mais uma das vãs filosofias deste mundo. Ao mesmo tempo, é o Princípio de toda ação religiosa, doutrinal e ritual, e a única e verdadeira Filosofia (amor ao Logos, à Razão de Ser, que não se manteve etérea, mas habita entre nós). Esse Mistério é a raiz essencial da verdadeira vida, diria, quando chegarmos lá, a nossa única e Eterna Vida.

Ao Cristo morto e Ressuscitado, Alfa e Ômega, Princípio e Fim, a Ele a glória, a honra e o poder agora e em eternidade. Amém!

Para onde vai a ciência?

Caros irmãos e amigos,

Para onde vai essa correria nossa? Que sentido tem essa busca desenfreada pelo não sei o quê? Cada vez mais as pessoas correm, buscam algo, buscam conhecer bastante, produzir resultados, mas ... se perdem. É isso mesmo, meus caros: as pessoas estão perdidas. Mas, nessa simplória mensagem, não gostaria de me estender a todas as questões. Gostaria de me deter em um universo específico, aquele que faz parte de meu dia-a-dia: a ciência e a tecnologia.

Para onde vai a ciência? Vemos uma preocupação muito forte, especialmente entre os órgãos de fomento à pesquisa, em obter produtos. São elaboradas políticas para priorizar projetos que tenham bem em vista um produto ou tecnologia que venha a ser usada em curto prazo para a sociedade. Há em tudo isso algo muito bom. Claro que sim! Não reconhecê-lo seria loucura. Há algo bom: o retorno social. É justo que se dê uma resposta à sociedade que espera um retorno de seu investimento em impostos. De fato: a ciência pode carregar em si uma sublime e fundamental maneira de bem utilizar os impostos pagos em seus resultados. Somos beneficiários disso na quase totalidade de nossos momentos minuto após minuto. Não há dúvida!

Sempre a ciência teve um papel de apresentar alternativas para o homem saber lidar com suas limitações de tal maneira a superá-las. Era uma maneira de dilatar os horizontes. Estes eram sentidos e sua percepção oferecia a possibilidade de, sempre em busca de ir além daquela limitação, contorná-la. Voltemos à descoberta da combustão, das ferramentas de corte, à invenção da escrita. Isso é ciência! É tornar o homem ciente de uma possibilidade que antes era velada.

É bela essa história! É o homem que busca, que sente sua contingência e quer dar um passo para além dela. É o exercício da possibilidade de se expandir. É assim que o homem constrói a história.

É bem verdade que muitas das leis naturais descobertas ou manipuladas na história vieram em decorrência das guerras. Nelas, o homem via a ameaça do outro e isso o fazia pensar incansavelmente em alternativas. É a perversão da ciência, porém a via pela qual os inventos e descobertas evoluíram mais rápido. O homem evolui junto com o tamanho de seu pecado.

Não é à toa, entretanto, que em períodos conturbados como esses, a própria guerra eram operações assumidas pelos deuses. E a ciência assumia um caráter de potência divina. Com isso, a ciência e seus produtos e técnicas encontravam um significado mais profundo, ocupando dimensões mais significativas do ser humano. A ciência era ainda, apesar de tudo, algo humano.

É interessante que por longos séculos a ciência se deixou acompanhar pela filosofia. Foi assim entre os gregos, foi assim na Europa medieval (sim, para escândalo de certos iluminados!!!), foi assim no mundo asteca, foi ainda entre os árabes do florescer muçulmano. O saber foi se tornando algo tão belo que o homem encontrou aí uma identidade e um significado. Sim, a ciência deu a possibilidade de um conhecer. Na ciência, tornou-se possível encontrar respostas concretas que a filosofia não seria jamais capaz de dar. Os anseios humanos produziam as questões, a filosofia as elaboravam, a ciência oferecia algumas respostas, sem, porém, ter a pretensão de esgotar-lhes os significados.

O problema começa quando a ciência quer ocupar espaços que não lhe são devidos. Mas não é ela que os rouba. É o homem, sou eu, é você que corrompemos a ciência. De fato, chamamos o bem de mal e vice-versa, como não daríamos à ciência um poder que ela seria sempre incompetente em exercer?

É, meus caros! A ciência rezava, meditava, refletia. Ela, nascida da própria contingência humana, circulava nos contornos dessa contingência. Era possível amar, sentir os limites humanos. A ciência era brilhante. Ela tinha o brilho do olhar humano, pelo seu desejo que ultrapassa a si mesmo, que transcendia. A ciência era tida como um dom, uma dádiva. A ciência era como um reflexo da potência divina.

Hoje, o cenário é esse: pesquisadores querem cada vez mais produção científica, cada vez mais fomento de empresas, cada vez mais alunos, cada vez mais resultados. E por quê? Porque a sociedade pede resultados. Mas também porque eles precisam alimentar uma ilusão: a de que a ciência, o cientista, pode dar essas respostas. E mais: de que todas as respostas encontradas pela ciência são passíveis de uso.

As vozes proféticas que denunciaram essas coisas não foram escutadas. E bombas atômicas foram detonadas, armas químicas mataram e degradaram a tantos. Segue ainda o cinismo dos cientistas de células-tronco embrionárias a dizer que poderão oferecer a cura de doenças as mais diversas. E o que dizer daqueles que submetem a ciência a um ídolo chamado ideologia para dizer que o ser humano é essencialmente homossexual?  A ciência foi empurrada para um espaço que não é dela. A ciência, se não está a serviço da ideologia, está a serviço de um outro ídolo, chamado mercado. O mercado pede, o pesquisador tem que entrar na concorrência para ter seus royalties garantidos. E o mesmo mercado precisa de muitos que estejam a serviço dessa ilusão. Ela está tensionada a comprimir a fé, a esperança, o amor, o sonho, o significado da vida, da minha vida, da nossa vida.

A ciência está esticada para além de seus domínios. Meus amigos, querem saber o que penso disso tudo? Penso, com toda sinceridade, que a ciência tende a se cansar, a se estagnar, a se questionar a si mesma dizendo: “quem eu sou?” A ciência, de fato, já não se questiona mais. Ela quer questionar e responder a tudo e a todos. A ciência está se arriscando num terreno onde ela não tem competência.

A tendência muito natural da ciência é se cansar. Quem estará, em pouco tempo, disposto a essas coisas? Se bem que haverá quem pague e até muito bem a quem se submeta a isso, porque há um deus poderoso a garantir essas coisas: o dinheiro, alimento da iniqüidade, alimento do herói, o homem que se salva a si mesmo. A esse dinheiro se atribui a paz, a segurança, a alegria, o conhecimento, o poder, o bem-estar, a vida. Numa palavra, o dinheiro é tudo. A ciência oferece as respostas que de esse “tudo” precisa.

Mas a idolatria cansa. Querem ver? A ciência conseguiu diminuir a miséria no mundo? Pior! Que aconteceu nesse último século, dito científico, pós-moderno? A depressão, o “stress”, a solidão, o abandono, o abismo entre ricos e pobres, a violência aumentaram. A ciência perdeu força de compaixão, força de sentir a contingência humana e trabalhar cuidadosamente aí. Perdeu um poder magnífico: o poder criador e regenerador. O poder criador e regenerador são características do Amor. NEle, tudo é criado. Rezamos no Credo: “per Quem omnia facta sunt!” Por Ele, por Cristo, o Verbo de Deus, que se fez carne e habitou entre nós, todas as coisas foram feitas. Foi no Amor que todas as coisas foram criadas.

Cristo se manifestou para o homem como Sacramento desse Amor. A ciência! Ah, a ciência. Como ela não poderia ser um sacramento também. Poderia ser um sacramento de criação e regeneração. Se o Deus dela fosse outro, se fosse tão humano como nosso Deus, o Deus de Cristo, ela não seria tão desumana, não se cansaria, não se perderia. “Cansam-se as crianças e param, os jovens tropeçam e caem, mas os que esperam no Senhor renovam suas forças, criam asas como águias, correm sem se cansar, caminham sem parar” (Is 40,30-31). Retornaria o brilho de um olhar que arde por um sonho tão belo: o do homem vivo, pleno, em comunhão com o Eterno, ele mesmo eternizado. Na realidade, ela seria apenas um espaço para que o Deus de Amor se manifestasse.

Sim, meus caros, “a ciência desaparecerá porque nosso conhecimento é limitado” (1Cor 13,8-9). Ele sempre o será, até o Dia feliz em que o Ilimitado nos abrir os olhos, e já não precisarmos mais da ciência e de mais nada. Se ela tiver submetido a Ele, terá cumprido seu papel e desaparecerá como São João Batista, no desejo feliz de que Ele, o Senhor, cresça e ela diminua; caso contrário, ela só será o movimento da condenação humana a rastejar pelo fétido espaço de misérias ruminadas e idolatradas.

Sim, meus caros! É necessário confessar o fracasso de nossa ciência, o fracasso de uma história que tem seu desfecho delineado: o homem infeliz, perdido no seu círculo vicioso de causas e efeitos. Triste do homem a quem Jesus dirige tais palavras: “Hipócritas! Vós sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu. Como é que não sabeis interpretar o tempo presente? Por que não julgais por vós mesmo o que é justo?” (Lc 12,56-57)

Eis o que é justo, como diz a Divina Liturgia de São João Crisóstomo: “À Sabedoria estejamos atentos!” A Ela, que se encarnou e mostrou seu rosto entre nós, a glória, a honra e o louvor, hoje e pelos séculos dos séculos. Amém!

terça-feira, 10 de maio de 2011

D. Henrique Soares da Costa em entrevista a Prof. Felipe Aquino, em Escola da Fé

Aconteceu na última quinta-feira. Eis as partes:

I) Sobre título dos bispos auxiliares:




II) Sobre o Beato João Paulo II:


III) Sobre a visão da Igreja quanto à união homoafetiva:


IV) Como se deve receber a Eucaristia?


V) O olhar da Igreja sobre a morte de Osama Bin Laden



VI) Escola da Fé - A Teologia da Libertação morreu




Aqui, temos a voz do pastor. "Pascere in Christo". Eis o seu lema!

Vale à pena uma reflexão de nossa parte! Abraços a todos!

sábado, 7 de maio de 2011

Hermenêutica da Reforma em Continuidade - Atenção a tradicionalistas e progressistas

Saiu no ZENIT (06/05/2011), o discurso do Papa aos membros do Instituto Litúrgico Santo Anselmo, por ocasião do 50º aniversário de sua fundaçãoaos membros do Pontifício Instituto Litúrgico Santo Anselmo, por ocasião dos seus 50 anos de fundação.

Eminência,
Reverendo Padre Abade Primaz,
Reverendo Reitor Magnífico,
Ilustres Professores,
Queridos Estudantes:
Saúdo-vos com alegria por ocasião do IX Congresso Internacional de Liturgia que estais realizando no âmbito da comemoração do cinquentenário da fundação do Pontifício Instituto Litúrgico. Saúdo cordialmente cada um de vós, em especial, o grão-chanceler, Abade Primaz Notker Wolf, e agradeço pelas amáveis ​​palavras que me dirigiu em nome de todos vós.
O Bem-aventurado João XXIII, recolhendo as instâncias do movimento litúrgico que pretendia dar um novo impulso e um novo fôlego à oração da Igreja, pouco antes do Concílio Vaticano II e durante sua realização, quis que a Faculdade dos Beneditinos no Aventino constituísse um centro de estudos e de pesquisa para garantir uma sólida base para a reforma litúrgica conciliar. Na véspera do Concílio, de fato, parecia cada vez mais viva, no campo da liturgia, a urgência de uma reforma, postulada também pelas petições realizadas por diversos episcopados. Além disso, a forte demanda pastoral que motivava o movimento litúrgico requeria que se favorecesse e suscitasse uma participação ativa dos fiéis nas celebrações litúrgicas, através do uso de línguas nacionais, e que se aprofundasse na questão da adaptação dos ritos às diversas culturas, especialmente em terra de missão. Além disso, mostrou-se clara desde o início a necessidade de um estudo mais aprofundado do fundamento teológico da Liturgia, para evitar cair no ritualismo ou promover o subjetivismo, o protagonismo do celebrante, e para que a reforma estivesse bem justificada no âmbito da Revelação e em continuidade com a tradição da Igreja. O Papa João XXIII, incentivado por sua sabedoria e seu espírito profético, para acolher e responder a estas exigências, criou o Instituto Litúrgico, ao qual quis atribuir imediatamente o título de "Pontifício", para indicar seu vínculo especial com a Sé Apostólica.
Caros amigos, o título escolhido para o Congresso do Ano Jubilar é muito significativo: "Instituto Pontifício: entre memória e profecia". Quanto à memória, devemos observar os frutos abundantes suscitados pelo Espírito Santo em meio século de história, e assim devemos agradecer ao Dador de todo bem, apesar também dos mal-entendidos e erros na realização efetiva da reforma. Não podemos deixar de recordar os pioneiros, presentes na fundação da Faculdade: Cipriano Vagaggini, Adrien Nocent, Salvatore Marsili e Burkhard Neunheuser, que, ao acolherem os pedidos do Pontífice fundador, empenharam-se, sobretudo após a promulgação da Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium, em aprofundar na "função sacerdotal de Cristo. Nela, os sinais sensíveis significam - e, cada um à sua maneira, realizam - a santificação dos homens; nela, o Corpo Místico de Jesus Cristo - cabeça e membros - presta a Deus o culto público integral" (n. 7).
Pertence à "memória" a vida do Pontifício Instituto Litúrgico, que ofereceu a sua contribuição para a Igreja comprometida com a recepção do Concílio Vaticano II, através cinquenta anos de formação litúrgica acadêmica - formação oferecida à luz da celebração dos santos mistérios, da liturgia comparada, da Palavra de Deus, das fontes litúrgicas, do magistério, da história das instâncias ecumênicas e de uma sólida antropologia. Graças a este importante trabalho formativo, um grande número de graduados e licenciados já presta seu serviço à Igreja em várias partes do mundo, ajudando o povo santo de Deus a viver a liturgia como expressão da Igreja em oração, como presença de Cristo entre os homens e como atualidade constitutiva da história da salvação. De fato, o documento conciliar evidencia o duplo caráter teológico e eclesiológico da liturgia. A celebração realiza, ao mesmo tempo, uma epifania do Senhor e uma epifania da Igreja, duas dimensões que se conjugam em unidade na assembleia litúrgica, na qual Cristo atualiza o mistério pascal de morte e de ressurreição e o povo batizado bebe mais abundantemente das fontes da salvação. Na ação litúrgica da Igreja, subsiste a presença ativa de Cristo: o que realizou em seu caminho entre os homens, Ele continua tornando operante através de sua ação pessoal sacramental, cujo centro é a Eucaristia.
Com o termo "profecia", o olhar se abre a novos horizontes. A Liturgia da Igreja vai além da própria "reforma conciliar" (cf. Sacrosanctum Concilium, 1), cujo objetivo, de fato, não era principalmente o de mudar os ritos e gestos, mas sim renovar as mentalidades e colocar no centro da vida cristã e da pastoral a celebração do mistério pascal de Cristo. Infelizmente, talvez, também pelos pastores e especialistas, a liturgia foi tomada mais como um objeto a reformar que como um sujeito capaz de renovar a vida cristã, a partir do momento em que "existe um vínculo estreito e orgânico entre a renovação da Liturgia e a renovação de toda a vida da Igreja. A Igreja extrai da liturgia a força para a vida". Quem nos recorda isso é o Beato João Paulo II, na Vicesimus quintus annus, na qual a liturgia é considerada como o coração latente de toda atividade eclesial. E o Servo de Deus Paulo VI, referindo-se ao culto da Igreja, com uma expressão sintética, afirmou: "Da lex credendi passamos à lex orandi, e isso nos leva à lux operandi et vivendi " (Discurso na cerimônia de oferenda de velas, 2 de fevereiro de 1970).

O antigo, em nenhuma oposição com o novo.


Cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, fonte da qual brota a sua força (cf. Sacrosanctum Concilium, 10), a liturgia, com o seu universo celebrativo, torna-se assim a grande educadora na primazia da fé e da graça. A liturgia, testemunha privilegiada da Tradição viva da Igreja, fiel à sua missão original de revelar e tornar presente no hodie das vicissitudes humanas da opus Redemptionis, vive de uma relação correta e consistente entre a sã traditio e a legítima progressio, lucidamente explicitada pela Constituição conciliar no n. 23. Com ambos os termos, os Padres conciliares quiseram gravar seu programa de reforma, em equilíbrio com a grande tradição litúrgica do passado e do futuro. Não raro, contrapõe-se, de maneira desajeitada, tradição e progresso. Na verdade, os dois conceitos estão integrados: tradição é uma realidade viva, que por isso inclui em si o princípio do desenvolvimento, do progresso. É como dizer que o rio da tradição leva em si também sua fonte e tende à desembocadura.

O novo, em nenhuma oposição ao antigo: o pai de família "sabe tirar de seu tesouro coisas novas e velhas".


Queridos amigos, espero que esta Faculdade de Sagrada Liturgia continue, com um vigor renovado, seu serviço à Igreja, em plena fidelidade à rica e bela tradição litúrgica e à reforma desejada pelo Concílio Vaticano II, de acordo com as diretrizes da Sacrosanctum Concilium e dos pronunciamentos do Magistério. A liturgia cristã é a liturgia da promessa realizada em Cristo, mas também é a liturgia da esperança, da peregrinação rumo à transformação do mundo, que acontecerá quando Deus for tudo em todos (cf. 1 Cor 15, 28). Pela intercessão da Virgem Maria, Mãe da Igreja, em comunhão com a Igreja celeste e com os padroeiros São Bento e Santo Anselmo, invoco sobre cada um a Bênção Apostólica. Obrigado.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Jesus tomou os pães e, tendo dado graças, distribuiu-os

Do Livro sobre o Sacramento, de Santo Alberto Magno, bispo
 
Senhor, lavados e purificados no mais profundo de nós mesmos, vivificados pelo Teu Espírito Santo, saciados pela Tua Eucaristia, faz com que tenhamos parte na graça que tiveram os santos apóstolos e os discípulos, que receberam o sacramento das Tuas mãos. Desenvolve em nós a solicitude e a diligência para Te seguirmos como membros Teus (1Cor 12,27), para que sejamos dignos de receber de Ti o sentido e a experiência do Teu alimento espiritual. Desenvolve em nós o zelo de Pedro para destruirmos toda a vontade que seja contrária à Tua (Jo 18,10), esse zelo que Pedro concebeu durante a Ceia. [...] Desenvolve em nós a paz interior, a resolução e a alegria que foram saboreadas por São João, quando se inclinou sobre o Teu peito (Jo 13,25); que assim possamos usufruir da Tua sabedoria, que tomemos o gosto da Tua doçura, da Tua bondade. Desenvolve em nós a retidão da fé, uma esperança firme e uma caridade perfeita.

Pela intercessão de todos os santos apóstolos e de todos os Teus bem-aventurados discípulos, faz com que recebamos da Tua mão o sacramento, faz com que evitemos perseverantemente a traição de Judas, e inspira ao nosso espírito o que o Teu Espírito inspirou aos santos que estão já no céu, realizando em si mesmos a perfeição da beatitude. Concede-nos tudo isto, Tu que vives e reinas com o Pai na unidade do mesmo Espírito, desde antes de todo o começo e muito para além dos séculos. Amém.

Lançamento importante

terça-feira, 3 de maio de 2011

Para o Domingo de Oitava da Páscoa

No último Domingo, celebramos a Oitava da Páscoa. Com grande alegria, oito dias depois de termos vivido a Noite Santa da Páscoa, continuamos, durante todos estes dias num só côro, num só coração: "Cristo ressuscitou! Aleluia! Este é o Dia que o Senhor fez para nós! Alegremo-nos e nEle exultemos!"  Nesse Domingo, convidava-nos a Mãe Igreja, na antífona de entrada da Missa a agirmos como crianças recém-nascidas. Jesus disse, no Evangelho de Mateus, que quem não se tornasse como criança não entraria no Reino do Céu. Pois bem, diz-nos a Mãe-Igreja: "como crianças recém-nascidas desejai o puro leite espiritual para crescerdes na salvação, Aleluia!" Quão belas e suaves essas palavras, que fazem lembrar a Bem-aventurada Ângela de Foligno, que, se colocando no seio da Trindade, unindo-se ao Cristo, que recebe eternamente do Pai a geração, ou seja, o Espírito Santo, sentia-se como uma criança recebendo da mãe o leite cálido do seu seio. lembra-me também Santa Teresinha do Menino Jesus, em sua infânia espiritual, que soube se deixar conduzir pela Vida com a qual Deus lhe conduzia. Tantos e tantos santos que, como diz a Oração Eucarística III, "na vida souberam amar Cristo e seus irmãos", deixando-se amamentar pelo puro leite espiritual, o Espírito Santo, para que crescessem na salvação e no amor de Deus. Também nós, Senhor, desejamos crescer na salvação. Não nos deixeis para que não sejamos tentados a levarmos a nossa vida num desejo de auto-salvação. Como a Tradição da Igreja diz há tantos séculos: "vinde Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor; enviai o vosso Espírito e tudo será criado e renovareis a face da  terra.

Antífona da Entrada em Latim, no modo VI do canto gregoriano


É preciso "sermos como crianças para entrar para entrarmos no Reino dos Céus". No Evangelho, vemos Dez discípulos trancafiados, como se diz, com "as portas fechadas por medo dos judeus". É o Primeiro Dia, depois do Shabatt dos judeus. Há pouco haviam crucificado Aquele que Pedro havia declarado como sendo o Cristo, o Filho do Deus vivo. Estavam com medo, o mesmo medo da Sexta-feira da Paixão, que os levara a fugirem, negarem e traírem o Senhor da Glória. Estavam com medo, medo que não move, que estagna, que impede a ação, a decisão, medo que estaciona a vida, impede o testemunho e descentraliza a nossa existência. Em meio a esse medo, Jesus simplesmente entra, aparece e se põe no meio deles, dos medrosos apóstolos. E o quê Jesus lhes diz? "A paz esteja convosco". De que paz fala? Noutra passagem do mesmo Evangelho, que será ainda lida neste Tempo Pascal, Jesus vai dizer: "Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Porém, não vo-la dou como o mundo dá". Não se trata, pois, de uma paz adocicada, paz de trio elétrico, paz de beira-mar, paz de garantias no céu. Pura ilusão! A paz que eu procurava, Senhor, fugia da vossa cruz, assim como o messias que os discípulos procuravamapascentava apenas desejos terrenos. Não é dessa paz pré-transcendente que Jesus nos fala, nem a que ele deseja. Dessa paz, Jesus diz no Evangelho de Lucas: "eu não vim trazer a paz; vim trazer a espada". A paz que Cristo deseja aprofundo o Shalom hebraico às raízes mais profundas do desejo humano de plenitude. Na realidade, estamos em tempos de guerras, porque uma guerra muito pior, da qual estas são apenas uma fugaz imagem, se trava na profunidade da vida humana. Na aurora da humanidade, o homem conheceu o pecado e bebeu o amargor da sua morte. Como diz SãoPaulo na Carta aos Romanos: "o salário do pecado é a morte". O homem perdeu a paz, a harmonia, a inocência e a alegria. O que restam são pedaços impregnados de morte como a angústia de nossos dias, a solidão em meio aos lares e comunidades, o medo da vida, o medo de Deus. Mas é esse Deus que vem ao nosso encontro no deserto de nossos medos e nos diz:  "a paz esteja convosco!" É CRisto, o mesmo que fôra crucificado, que mostrando as mãos e o lado nos diz: "Vede: a fidelidade me conduziu até o madeiro, a uma morte cruenta, conduziu-me até o sumo derramamento de sangue. E eu estou aqui. O Pai me ama. Ele me diz: 'quero que tu vivas'. Vou proclamar o decreto do Senhor: 'Tu és meu Filho, eu hoje te gerei! Tu és príncipe desde o dia em que nasceste, na glória e esplendor da santidade; como orvalho antes da aurora eu te gerei!' (cf. Sl 2,7; 109,3) Ele me ama, por isso ressuscitou-me dos mortos. E como criança, passivamente, bebi o amargor de vossa morte. Porém, como criança, dormi nos braços de minha Mãe, mais ainda, de meu Pai, e bebi o pur leite espiritual, o Espírito Santo, a Vida eterna, que tinha antes de todos os séculos, e que o Pai me deu agora em plenitude humana e divina". Assim, e por isso, o Evangelho nos diz que "os discípulos se alegraram por verem o Senhor." Não era visão, não era sugestão. A única sugestão que tinham é de que ELe havia morrido, o óbvio, daí o medo dos judeus. Agora, Jesus deseja-lhes a paz e envia os discípulos.

Que aconteceu neste hoje? Os medrosos agora são enviados, e os Atos dos Apóstolos, que são lidos em todo o Tempo Pascal, nos revelam que os antigos medrosos irão até o fim anunciar perante o antigo Sinédrio, perante os gregos, perante todos os confins da terra, o Nome do Senhor Ressuscitado. E eis a obra: até hoje, no Espírito que os conduziu e sustentou, somos a Igreja de Deus, a Esposa de Cristo, as primícias da Jerusalém Celeste. Nascemos da Páscoa de CRisto. Ele hoje nos dá a paz e nos envia, não de qualquer modo, mas como o Pai o enviou. Como isto é destinado a nós, tão frágeis? Agora, lembro-me da vocação de Maria, anunciada pelo Anjo Gabriel. E ele, ela respondia: "como irá acontecer, se não conheço homem?" E o Anjo respondeu-lhe: "para Deus, nada é impossível". Sim, a mesma Sombra do Altíssimo que pairara sobre Maria e fecundara o seu ventre virgem agora nos é dada. Cristo diz a eles e, por eles, a nós: "recebei o Espírito Santo!" Sim, recebamos, como crianças recém-nascidas o puro leite espiritual para crescermos na salvação. Não desconfiemos nem desesperemos de Deus. ELe agora nos infunde, por Cristo, a sua Vida, o seu Amor, a sua Glória, a sua Plenitude, Aquele que impede que nossa vida seja entregue ao medo, à futilidade, ao pecado e à morte. É neste Espírito que somos batizados e nEle recebemos do Pai as mesmas palavras dirigidas ao Cristo nas águas do Jordão: "Tu és meu Filho amado, no qual eu me comprazo!" O Pai se alegra conosco, porque agora nos vê na mesma luz com a qual vê seu CRisto. Temos razão ao cantarmos: "meu coração me diz: o Amor me amou e se entregou por mim.. Jesus ressuscitou." Sim, o Amor me amou, o Amor nos amou, o Amor revelou sua face a todos aos quais destinou seu amor. É o fato de sermos amados que nos dá agora a coragem (cor-agere = ação do coração) para aceitarmos a missão, vivermo-la no meio do mundo, na Galiléia de nossa vida. É o fatode sermos infinitamente amados por Deus que nos impele a amar. Não é tanto um amor (frágil, permeado e adoecido pelo pecado) que nasce de nós, mas de Deus e passa, quano somos abertos, por nós, como que por canais que conduzem a esse puro leite espiritual para a salvação do mundo.



Como crianças! Como vivemos a vida de recém-nascidos? Olhemos para a aurora da humanidade. O Gênesis nos revela que o homem vivia em harmonia com todo ser criado. Escutamos os Atos dos Apóstolos o testemunho dos primeiros cristãos que receberam o Espírito: "eram perseverantes em ouvir os ensinamentos dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações. Viviam unidos e colocavam tudo em comum (...), conforme a necessidade de cada um." Porém, para nós, a frase central está no versículo 46 do capítulo 2: "diariamente, todos freqüentavam o templo, partiam o pão pelas casas e, unidos, tomavam a refeição com alegria e simplicidade de coração." De que refeição nos fala, senão da Eucaristia? Era recebida e partilhada com alegria e simplicidade de coração. Talvez essa seja a receita para que vivamos a paz do Senhor Jesus. Por ela, podemos viver uma vida plenamente humana, plenamente cristã, viva, ou seja, para crescer na salvação. Tudo isso, conseqüência do amor de Deus. Como diz o Salmo Pascal 117: "pelo Senhor é que foi feito tudo isso, que maravilhas Ele fez a nossos olhos! Este é o Dia que o Senhor fez para nós, alegremo-nos e nEle exultemos!"

Por essa mesma razão é que São Pedro, na II Leitura, agradece a Deus "porque eterna é a sua misericórdia": "Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que em sua grande misericórdia, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, nos fez nascer de novo, para uma esperança viva, para uma herança incorruptível, que não se mancha, nem murcha, e que é reservada para vós, no céu". Eis a obra do Amor de Deus: destinou-nos à plenitude, com nosso corpo, nossa alma, nossa vida, nosso relacionamento, nosso trabalho... Enfim, com a Ressurreição do Senhor, a eternidade começa hoje para nós, porque o Pai acolhe as nossas opções profundas de vida no seu infinito Amor. A festa que assim celebramos com alegria nos convida a abandonar nossa vida nas mãos do Senhor, com suas vitórias e derrotas, alegrias e sofrimentos, com toda a intensidade de coração. Tomé talvez não tenha sido incrédulo tanto por não ter visto, mas por não confiar no alegre (a alegria agora é novidade!!!) testemunho dos outros apóstolos, na obra que o Senhor realizou neste Dia.

Dessa forma, São Pedro nos exorta, lembrando de que o Ressuscitado antes padecera a Cruz, que, embora a esperança, viva e incorruptível seja motivo de alegria para nós, talvez seja necessário ainda sofrermos as provações da vida para que a nossa fé seja acrisolada, purificada e seja ela, cada vez mais, sinal do amor que temos a Deus. Como ele mesmo diz para as trevas de nosso mundo: "sem ter visto Senhor, vós o amais. Sem over ainda, nEle credes. Isso será para vós motivo de alegria indizível e gloriosa, pois obtereis aquilo em que credes: a vossa salvação!"

Foi-nos dado o Espírito Santo, que clama em nós: "Abbá!" Somente se assim nos dispusermos à ação do Espírito que nos torna como crianças diante de Deus. tornar-se-á possível o crescimento de sua obra.. Sim, Senhor, vós amastes a cada um de nós infinitamente e nese amor nos conduzis à salvação. Hoje, dai-nos viver este dia, esta Páscoa, esta Vida que nos destes na alegria e na simplicidade de crianças recém-nascidas. Dai-nos buscarmos a vós como o Cristo vos busca. Buscamo-Vos nEle, Palavra e Sacramento, Ação de Graças que se dá a vós na eternidade porque eterna é a vossa misericórdia.

A Ele, que convosco e o Espírito Santo, reina sobre todo o universo, a glória, o poder e a majestade, pelos séculos dos séculos. Amém!

Celebremos a Mãe de Deus

Neste mês de maio, continuamos a celebrar a Páscoa do Senhor, mas tradicionalmente é costume louvarmos de modo muito iintenso à Virgem Maria. Gostaria de compartilhar com vocês uma parte da Anáfora (oração Eucarística) de São João Crisóstomo, e em seguida outra da Anáfora de São Basílio, respectivamente, ambas usadas nas Divinas Liturgias (Missas) de Rito Oriental. Importante notar: esses louvores à Virgem Maria são cantados pelo povo. Unamos a nossos irmãos orientais nossa voz e rezemos:

Verdadeiramente é digno e justo que te bendigamos, ó bem-aventurada Mãe de Deus. Tu, mais venerável que os Querubins e ,incomparavelmente, mais gloriosa que os Serafins; deste à luz o Verbo de Deus, conservando intacta a glória da tua virgindade. Nós te glorificamos, ó Mãe de nosso Deus!


Ó cheia de graça, em ti rejubila-se toda a criação! A assembléia dos anjos e o gênero humano te glorificam, ó templo santificado, paraíso espiritual e glória das virgens, na qual Deus se encarnou e da qual se tornou Filho aquele que é nosso Deus antes dos séculos. Porque fez de teu seio um trono e as tuas entranhas, mais vastas que os céus. Ó cheia de graça, em ti rejubila-se toda a criação e te glorifica! 

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Oração Mariana - Iniciou-se maio...

... e iniciamos bem, ainda na Oitava de Páscoa, quando o Santo Padre Bento XVI, beatificou seu imediato predecessor (algo que não acontecia há cerca de 1000 anos), o Bem-aventurado João Paulo II. Com isso, o Papa de 26 anos de minha vida, que influenciou a todos nós, foi elevado às honras dos altares.


Pois bem, assim aconteceu no por ele instituído Domingo da Misericórdia, este ano 1º de maio, início do mês mariano. Para motivar este aspecto, lembramos da dedicação que João Paulo II fez de sua vida, entregando-se a ela dizendo "totus tuus", "todo teu". Na vigília de oração por esse evento tão grandioso, o Papa Bento XVI rezou as palavras que se seguem:

Ave-Maria, Mulher pobre e humilde,abençoada pelo Altíssimo!
Virgem da esperança, profecia dos tempos novos,
nós nos associamos ao vosso cântico de louvor
para celebrar as misericórdias o Senhor,
para anunciar a vida do Reino de Deus
e a plena libertação do homem.


Ave-Maria, humilde serva do Senhor,
gloriosa Mãe de Cristo!
Virgem fiel, morada santa do Verbo,

ensinai-nos a perseverar na escuta da Palavra,
a sermos dóceis à voz do Espírito,
atentos a seus apelos na intimidade da consciência
e em suas manifestações nos eventos da história.



Ave-Maria, Mulher da dor,Mãe dos vivos!
Virgem esposa junto à Cruz, nova Eva,
sede nossa guia pelas estradas do mundo
ensinai-nos a viver e a difundir o amor de Cristo,
a portar com humildade a nossa cruz
e estar convosco junto à cruz de Cristo – junto aos fracos, aos
sofredores, aos marginalizados, aos pobres e a conhecer neles o rosto de Cristo


Ave-Maria, Mulher da fé, primeira dos discípulos!
Virgem Mãe da Igreja, ajudai-nos
a dar sempre razão da nossa esperança,
confiando na bondade do homem criado por Deus
à sua imagem e no amor do Pai.





 

Ensinai-nos a renovar o mundo a partir de dentro:
na profundidade do silêncio e da oração,
na alegria do amor fraterno,
na fecundidade insubstituível da Cruz.


Santa Maria, Mãe dos fiéis,
rogai por nós.

Amém.

Vida escondida

Bem, agora para tranquilizar nosso coração agitado...

Além da Vigília Pascal na Noite Santa, tive uma outra experiência muito feliz. Após a Vigília, olhei meio despretensiosamente meus emails e vi uma mensagem de Ir. Francesca, madre da Servas da Santíssima Trindade, direto de seu mosteiro, na cidade arquiepiscopal de Maceió. Elas oram pelo sacerdócio no mundo inteiro, especialmente pelos sacerdotes mais problemáticos, confeccionam artigos litúrgicos e devocionais e zelam diariamente por uma liturgia reverente e decentemente celebrada.

Entre outras palavras da mensagem, estava um comovente texto de Santo Agostinho (Discurso 231,5), que gostaria de passar a todos vocês, que compartilham comigo este espaço, dando um abraço de Boa Noite, no desejo de que nossa Páscoa continue e sejamos felizes nEla, no Cordeiro Pascal, que é Cristo:

«Tende fé! Vireis a Mim e haveis de saborear os bens da minha mesa, como é verdade que Eu não recusei saborear os males da vossa mesa... Prometi-vos a minha vida... Como antecipação, franqueei-vos a minha morte, como que para vos dizer: Convido-vos a participar na minha vida... É uma vida onde ninguém morre, uma vida verdadeiramente feliz, que oferece um alimento incorruptível, um alimento que restabelece e nunca acaba. A meta a que vos convido... é a amizade como o Pai e o Espírito Santo, é a ceia eterna, é a comunhão comigo ... é participar na minha vida»


Só em lembrar disso viver essa Páscoa já valeu a vida inteira... "Vossa vida está escondida com Cristo, em Deus."

Deus lhes pague, queridas irmãs...


Ressurreição e a Eucaristia, segundo Ratzinger - Introdução ao Cristianismo


Meus caros, 

mais cedo abordávamos como o Papa Bento XVI tratava a questão do anúncio alegre do Reino encontra seu eco mais profundo apenas e unicamente no Mistério Pascal. Agora, gostaria de  tomar um texto mais antigo dele, ainda de quando era padre, de 1970, publicado em português pela Editora Herder, agora já reeditado por outras. É a "Introdução ao Cristianismo". Lá, o nosso estimadíssimo autor faz uma leitura profunda dos artigos do Credo. E nessa obra, ele comenta a Eucaristia dentro da perspectiva da Ressurreição. Observando as duas obras, temos um suplemento incrível. Convido-o a degustarmos esta outra obra tão bendita. Partamos do princípio que Aquele que é reconhecido permanece de certa forma desconhecido, um desconhecido que revela o que lhe apraz. O papa segue normal, eu, em itálico, como de costume nesses casos.




"Examinemos mais de perto, sob este aspecto, o episódio dos discípulos de Emaús, com que já nos deparamos de passagem. À primeira vista tem-se a impressão de estarmos diante de uma descrição totalmente terrena, maciça, como se nada restasse do mistério indescritível que encontramos nos relatos paulinos. Parece predominar totalmente a tendência de enfeitar, de lançar mão de um concreto lendário, apoiada numa apologética que busca dados palpáveis, recolocando completamente o Senhor ressuscitado dentro da história terrena. Contudo opõe-se a isto o seu misterioso aparecimento e o não menos misterioso desaparecimento. Mais ainda se opõe a circunstância de ele se conservar irreconhecível ao olhar comum. Não é possível identificá-lo como durante a sua vida terrena. Ele se descobre exclusivamente na esfera da fé; mediante a explicação da Escritura incendeia o coração dos dois viandantes, e à fracção do pão abre-lhes os olhos. Temos aí a indicação dos dois elementos fundamentais da antiga liturgia cristã a qual é integrada de liturgia da palavra (leitura e interpretação da Escritura) e liturgia da fracção do pão eucarístico. Assim o evangelista faz ver que o encontro com o Ressuscitado se situa em um plano totalmente novo; tenta descrever o indescritível, mediante o código dos acontecimentos litúrgicos. Com isto oferece, simultaneamente, uma teologia da Ressurreição e da liturgia: o Ressuscitado é encontrado na palavra e no sacramento; o serviço divino é a maneira pela qual ele se nos torna tangível e reconhecível como vivo. Vice-versa, liturgia baseia-se no mistério pascal; há de ser compreendida como a aproximação do Senhor a nós, a tornar-se companheiro nosso de viagem, incendiando o coração embotado, abrindo os olhos fechados. Cristo continua indo conosco, volta sempre a encontrar-nos desanimados e queixosos, continua dispondo da força para fazer-nos ver."



"Naturalmente isto tudo diz apenas a metade. O testemunho do Novo Testamento estaria falseado, se quiséssemos ficar apenas nisto. A experiência do Ressuscitado é algo diverso do encontro com um homem da nossa história; muito menos ainda pode ela ser reduzida a conversas à mesa e a recordações que se tivessem afinal condensado na idéia de que ele vive e de que a sua obra prossegue. Uma explicação assim aplaina o evento na direção oposta, nivelando-o à esfera humana, privando-o do que lhe é peculiar. Os relatos da ressurreição são algo diferente e algo mais que meras cenas litúrgicas camufladas: eles permitem ver o acontecimento fundamental sobre o qual se ergue toda a liturgia cristã. Testemunham um acontecimento que não brotou dos corações dos discípulos, mas que lhes sobreveio de fora, dominando-os, de encontro à sua dúvida, e infundindo-lhes a certeza de que "o Senhor ressuscitou verdadeiramente". (Observação minha: muitos teólogos, ditos modernos ou liberais, que já não acreditam mais no Mistério de Deus - diga-se a verdade - continuam aí, na Igreja Católica, nem a abandonando nem se convertendo, mas pelo contrário pervertendo o coração de fiéis e até mesmo de membros do clero. Pronto: terreno fértil para todo tipo de abuso litúrgico. E não estamos falando de ritualismo; estamos falando daquilo que é o 'centro e o ápice de nossa fé', conforme nos lembra o próprio Concílio Vaticano II. Com isso, minam a fé dos fiéis por dentro, deixando que eles esqueçam que aquele rito, aquele gesto, aquelas palavras nos falam mais do que elas mesmas dizem, apontam para o inefável, fazem arder o coração, desembota nossa visão. O homem, a comunidade, o padre, o animador musical, o coral, as tais e ingratas equipes de liturgia não podem, não conseguem não têm o poder de suscitar um acontecimento tão grande; se não se reconhece que a ação nos precede, nos envolve e vai aidante de nós, o nosso olhar sobre os Sagrados Mistérios está destinado à cegueira. De fato, a Eucaristia é um dom do alto). O que jazera no sepulcro não está mais lá, mas vive – é realmente ele mesmo quem vive. O que fora arrebatado para o outro mundo de Deus, mostrou-se entretanto ser tão poderoso que tornava palpável ser ele mesmo quem estava diante deles; mostrou ter-se comprovado nele mais forte o poder do amor do que o poder da morte.


        Somente tomando isto tudo tão a sério como o que fora dito anteriormente é que se conservará a fidelidade ao testemunho do Novo Testamento; só assim se salvará a sua seriedade cosmo-histórica. A tentativa mais que cômoda de, por um lado, dispensar a fé no mistério da potente atuação de Deus neste mundo, e no entanto simultaneamente querer ter a satisfação de conservar-se no terreno da mensagem bíblica esta tentativa conduz ao vácuo: não satisfaz nem à honestidade da razão nem às razões da fé. Não é possível conservar juntas a fé cristã e a "religião nos limites da razão pura"; a opção é inevitável. Naturalmente, o crente verá com clareza crescente quão repleta de razão está a adesão àquele amor que venceu a morte.



E lembro ainda, caro irmão, tomemos cuidado para que, com isso, não venha a morrer a nossa fé e nossa esperança diante do imorredouro. A cruz sem a ressurreição seria masoquismo; a ressurreição sem a cruz seria um devaneio etéreo; a Eucaristia sem ambas (radicadas em cada gesto, palavra, seguindo o ritual da Santa Igreja e num espírito de profundo entrosamento com o Mistério Pascal, em oração) correria de um lado a outro: do ritualismo preciosista ao espetáculo circense, passando mesmo pelo indiferentismo ritual. E isso não é o sagrado, não permite irromper o Cristo na história, e muito menos elevar o nosso espírito à eternidade. Sobra apenas a chatice dos mesmos apelos infra-históricos, como aqueles que desanimavam os discípulos de Emaús.

Catequese Mistagógica da Igreja de Jerusalém, sobre a Eucaristia (séc. IV)

Na noite em que foi entregue, nosso Senhor Jesus Cristo tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e deu-o a seus discípulos, dizendo: “Tomai e comei: isto é o meu corpo”. Em seguida, tomando o cálice, deu graças e disse: “Tomai e bebei: isto é o meu sangue” (cf. Mt 26,26-27; 1Cor 11,23-24). Tendo, portanto, pronunciado e dito sobre o pão: Isto é o meu corpo, quem ousará duvidar? E tendo afirmado e dito: Isto é o meu sangue, quem se atreverá ainda a duvidar e dizer que não é o seu sangue?

Recebamos, pois, com toda a convicção, o Corpo e o Sangue de Cristo. Porque sob a forma de pão é o corpo que te é dado, e sob a forma de vinho, é o sangue que te é entregue. Assim, ao receberes o corpo e o sangue de Cristo,te transformas com ele num só corpo e num só sangue. Deste modo, tendo assimilado em nossos membros o seu corpo e o seu sangue, tornamo-nos portadores de Cristo; tornamo-nos, como diz São Pedro, participantes da natureza divina (2Pd 1,4).

Outrora, falando aos judeus, dizia Cristo: Se não comerdes a minha carne e não beberdes o meu sangue, não tereis a vida em vós (cf. Jo 6,53). Como eles não compreenderam o sentido espiritual do que lhes era dito, afastaram-se escandalizados, julgando estarem sendo induzidos por Jesus a comer carne humana.

Na Antiga Aliança havia os pães da propiciação; por pertencerem ao Velho Testamento, já não mais existem. Na Nova Aliança, porém, trata-se de um pão do céu e de um cálice da salvação que santificam a alma e o corpo. Assim como o pão é próprio para a vida do corpo, também o Verbo é próprio para a vida da alma.

Por isso, não consideres o pão e o vinho eucarísticos como se fossem elementos simples e vulgares. São realmente o corpo e o sangue de Cristo, segundo a afirmativa do Senhor. Muito embora os sentidos te sugiram outra coisa, tema firme certeza do que a fé te ensina.

Se foste bem instruído pela doutrina da fé, acreditas firmemente que aquilo que parece pão, embora seja como tal sensível ao paladar, não é pão, mas é o corpo de Cristo. E aquilo que parece vinho, muito embora tenha esse sabor, não é vinho, mas é o sangue de Cristo. Antigamente, bem a propósito, já dizia Davi nos salmos: O pão revigora o coração do homem, e o óleo ilumina a sua face (Sl 103,15). Fortifica, pois, teu coração, recebendo esse pão espiritual e faze brilhar a alegria no rosto de tua alma.

Com o rosto iluminado por uma consciência pura, contemplando como num espelho a glória do Senhor, possas caminhar de claridade em claridade, em Cristo Jesus, nosso Senhor, a quem sejam dadas honra, poder e glória pelos séculos sem fim. Amém.

Catequese Mistagógica de Jerusalém sobre o Batismo (séc. IV)

Fostes conduzidos à santa fonte do divino Batismo, como Cristo, descido da cruz, foi colocado diante do sepulcro. A cada um de vós foi perguntado se acreditava no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Vós professastes a fé da salvação e fostes por três vezes mergulhados na água e por três vezes dela saístes; deste modo, significastes, em imagem e símbolo, os três dias da sepultura de Cristo.

Assim como nosso Senhor passou três dias e três noites no seio da terra, também vós, na primeira emersão, imitastes o primeiro dia em que Cristo esteve debaixo da terra; e na imersão, a primeira noite. De fato, como aquele que vive nas trevas não enxerga nada, pelo contrário, aquele que anda de dia está envolvido em plena luz. Assim também vós, na imersão, como que mergulhados na noite, nada vistes; mas na emersão, fostes como que restituídos ao dia. Num mesmo instante, morrestes e nascestes, e aquela água de salvação tornou-se para vós, ao mesmo tempo, sepulcro e mãe.

Apesar de situar-se em outro contexto, a vós se aplica perfeitamente o que disse Salomão: Há um tempo para nascer e um tempo para morrer (Ecl 3,2). Convosco sucedeu o contrário: houve um tempo para morrer e um tempo para nascer. Num mesmo instante realizaram-se ambas as coisas e, com a vossa morte, coincidiu o vosso nascimento.

Ó fato novo e inaudito! Na realidade, não morremos nem fomos sepultados nem crucificados nem ainda ressuscitamos. No entanto, a imitação desses atos foi expressa através de uma imagem e daí brotou realmente a nossa salvação.

Cristo foi verdadeiramente crucificado, verdadeiramente sepultado e ressuscitou verdadeiramente. Tudo isto foi para nós um dom da graça, a fim de que, participando da sua paixão através do mistério sacramental, obtenhamos na realidade a salvação.

Ó maravilha de amor pelos homens! Em seus pés e mãos inocentes, Cristo recebeu os cravos e suportou a dor; e eu, sem dor nem esforço, mas apenas pela comunhão em suas dores, recebo gratuitamente a salvação.

Ninguém, portanto, julgue que o batismo consista apenas na remissão dos pecados e na graça da adoção filial. Assim era o batismo de João que concedia tão-somente o perdão dos pecados. Pelo contrário, sabemos perfeitamente que o nosso batismo não só apaga os pecados e confere o dom do Espírito Santo, mas é também o exemplar e a expressão dos sofrimentos de Cristo. É por isso mesmo que Paulo exclama: Será que ignorais que todos nós, batizados em Jesus Cristo, é na sua morte que fomos batizados? Pelo batismo na sua morte, fomos sepultados com ele (Rm 6,3-4).