segunda-feira, 25 de abril de 2011

A Páscoa de meu pequeno Davi

Não posso deixar de registrar o comovente presente que hoje me deu meu pequeno Davi, de 6 anos, como muitos sabem. É um aficcionado em futebol e, como toda criança, ama ovos de Páscoa.

Está se preparando paulatina e vigorosamente para a Primeira Comunhão e nesta última Quaresma viveu, na sua medida de criança, aquelas renúncias e penitências que se fazem como exercícios de preparação para a Páscoa. Ultimamente, participou das celebrações solenes do Domingo de Ramos e do Tríduo Pascal com toda a atenção, interesse e dedicação. Creio que está sendo uma Páscoa muito feliz para ele.

Pois bem, mas vamos ao presente, um presente de Páscoa. Vejam abaixo:


Uma bola? Um ovo de Páscoa?

Pois bem, disse-me ele: "é uma hóstia!" Comoveu-me muito. Apesar das cores, que talvez lembrassem outras coisas que venham à mente das crianças, elas estavam divididas por uma cruz. E os mais atentos podem ver uma cruz azul lá no alto, como que para introduzir o tema. E não esqueceu nem o lado cor de vinho, lado de onde o Cordeiro Imolado derramou o sangue.

Meu filho me disse mais do que muitos teólogos e certos clérigos. Diz o Salmo 8: "o perfeito louvor vos é dado pelos lábios dos mais pequeninos".

Confirmou-me: "é uma hóstia!" Que bom, meu filho. Você está vivendo intensamente esta Páscoa!!!

Laus Christi - O louvor de Cristo

Meus caros, diante do Mistério da Páscoa, mais há a se contemplar do que a dizer. Por isso, deixo com vocês agora um texto antigo, do distante século IV, de Melitão, Bispo de Sardes, uma das Igrejas (Dioceses) mais antigas do mundo, da qual já testemunhava o Apocalipse. É isso mesmo! A Páscoa está apenas iniciando. Durante 50 dias, até Pentecostes, ficaremos a sentir o gosto desse Mistério tão grande, pelo qual o Cristo nos deu. Sem mais, fiquem com Melitão de Sardes:






Prestai atenção, caríssimos: o mistério pascal é ao mesmo tempo novo e antigo, eterno e transitório, corruptível e incorruptível, mortal e imortal.

É mistério antigo segundo a Lei, novo segundo a Palavra que se fez carne; transitório pela figura, eterno pela graça; corruptível pela imolação do cordeiro, incorruptível pela vida do Senhor; mortal pela sua sepultura na terra, imortal pela sua ressurreição dentre os mortos.

A Lei, na verdade, é antiga, mas a Palavra é nova; a figura é transitória, mas a graça é eterna; o cordeiro é corruptível, mas o Senhor é incorruptível, ele que,imolado como cordeiro, ressuscitou como Deus.

Na verdade, era como ovelha levada ao matadouro, e contudo não era ovelha; era como cordeiro silencioso (Is 53,7), e no entanto não era cordeiro. Porque a figura passou e apareceu a realidade perfeita: em lugar de um cordeiro, Deus; em vez de uma ovelha, o homem; no homem, porém, apareceu Cristo que tudo contém.

Por conseguinte, a imolação da ovelha, a celebração da páscoa e a escritura da Lei tiveram a sua perfeita realização em Jesus Cristo; pois tudo o que acontecia na antiga Lei se referia a ele, e mais ainda na nova ordem, tudo converge para ele.


Com efeito, a Lei fez-se Palavra e, de antiga, tornou-se nova (ambas oriundas de Sião e de Jerusalém); o preceito deu lugar à graça, a figura transformou-se em realidade, o cordeiro em Filho, a ovelha em homem e o homem em Deus.

O Senhor, sendo Deus, fez-se homem e sofreu por aquele que sofria; foi encarcerado em lugar do prisioneiro, condenado em vez do criminoso e sepultado em vez do que jazia no sepulcro; ressuscitou dentre os mortos e clamou com voz poderosa: “Quem é que me condena? Que de mim se aproxime (Is 50,8). Eu libertei o condenado, dei vida ao morto, ressuscitei o que estava sepultado. Quem pode me contradizer? Eu sou Cristo, diz ele, que destruí a morte, triunfei do inimigo, calquei aos pés o inferno, prendi o violento e arrebatei o homem para as alturas dos céus. Eu, diz ele, sou Cristo.

Vinde, pois, todas as nações da terra oprimidas pelo pecado e recebei o perdão. Eu sou o vosso perdão, vossa páscoa da salvação, o cordeiro por vós imolado, a água que vos purifica, a vossa vida, a vossa ressurreição, a vossa luz, a vossa salvação, o vosso rei. Eu vos conduzirei para as alturas, vos ressuscitarei e vos mostrarei o Pai que está nos céus; eu vos levantarei com a minha mão direita”.

Christos Anesti! Allillúia! Surrexit Christus! Allellúia!


Eis a festa, eis a alegria, eis o repouso, eis a esperança, eis o desejo, o impulso, a fonte da coragem, eis o alimento de cada dia, o Pão do Amanhã, eis a nossa vida, aquela que não passa...

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Missão e conservação da fé na dinâmica pascal

O primeiro ponto que levantamos é: Por que conservação e missão precisam se excluir? Essa pergunta é típica de nossos tempos e nos leva a pensar em outras por causa da forma como costuma ser abordada: O que o clero e muitos de nossos irmãos entendem por missão? A descoberta de realidades novas nunca devem ser assumidas em detrimento do patrimônio que recebemos, sob o risco da pena de perdermos a própria identidade.

Assim, dedicamos os seguintes parágrafos para detalhar o que entendemos por missão, e só depois tentar balbuciar uma resposta, que, penso, é apenas uma gota no oceano. Ao pensarmos em missão pensamos no que o próprio Jesus realiza ao chamar os apóstolos e envia-los dois a dois. Segundo o evangelista Lucas, Ele faz isso após passar uma longa vigília noturna em oração, em diálogo com o Pai, o seu Abbá. Segundo o Evangelho de Marcos, chamou os doze para estar com Ele. Depois enviou-os às cidades onde Ele mesmo devia ir. No Evangelho de João, Ele diz: “Como Pai me enviou, assim também eu vos envio”. Vejamos: o anúncio para adiante sempre tem como raiz o Pai. Vejamos ainda: o envio dos Doze é preparado pelo estar com Ele, Cristo, pelo saborear a sua presença e vivenciá-la relacionalmente. E ao enviar os Doze, estivessem eles curando, expulsando demônios ou ressuscitando mortos, a prerrogativa do envio era o fato de que ali Ele mesmo, Cristo Jesus, deveria ir. Pode ser que esse roteiro evangélico sirva para nortear um caminho.

Primeiramente, na relação com o Pai: “como o Pai me enviou, assim também eu vos envio”. Compreender a Missão pressupõe a compreensão do Mistério Pascal. Como o Pai enviou Jesus? Jesus é o Verbo de Deus, que, existindo antes dos séculos, num profundo e eterno diálogo com o Pai, manifestou-se na carne humana, tendo sido concebido virginalmente do Espírito Santo no seio da Virgem Maria (Credo de Nicéia-Constantinopla). Enviou o Pai seu Verbo, vivendo a maior parte de sua vida em condições comuns,  vivendo a dor do parto, a situação de pobreza material, as brincadeiras da infância, o aprendizado na carpintaria de José, o suor do trabalho, o aprendizado das escrituras, o conhecimento de si. Esse processo o conduz a João Batista, às margens do Rio Jordão, onde seu batismo simboliza a entrada do Verbo de Deus nas fileiras dos pecadores. Sem pecado, Ele assume o nosso pecado. Ele mesmo, após esse acontecimento, vai para o deserto. Nesse ponto, gostaríamos de nos deter um pouco mais.

O que acontece no deserto? Ali, Jesus já havia sido preparado na versação das Escrituras. Ele mesmo conheceu a realidade humana em si. Certamente, viu muitas das Escrituras acontecerem no íntimo de seu coração em sua juventude. Porém, como saber-se Filho de Deus, como saber-se enviado diretamente do Pai? Um sinal já havia sido dado. No dia do seu Batismo, o Pai se fez ouvir, dizendo: “Este é o meu Filho muito amado, no qual ponho o meu bem-querer”. Como isso não fosse suficiente, Jesus vai ao deserto provar-se. No deserto, Jesus tem como perceber-se, a sós. As tradições antigas associavam o deserto à morada dos demônios. De fato, o homem, em sua solidão, pode perceber as possíveis contradições existentes na natureza e na história e que lhe interpelam instantemente. São Bento, por exemplo, passa 3 anos numa gruta, em Subiaco, a cerca de 60 km de Roma, para “estar consigo mesmo”, como relata seu biógrafo, o Papa São Gregório Magno. Santo Antão, em seu deserto, no alto Nilo, é provado nas diversas virtudes evangélicas, e sente as dores profundas que as tentações lhes causam, revelando-lhe a profunda dessemelhança com Deus. Nisso consiste sua luta. No deserto, Jesus experimenta o que é estar exposto a tudo aquilo que ameaça a identidade de Deus em si e responde a essas potências, hipostasiadas no demônio, com a Palavra de Deus. O deserto é, portanto, o lugar de provar-se quanto à Palavra de Deus. Ali, ela se torna um espelho para o homem, Deus se torna alguém para o homem, no tempo e no espaço. Convenhamos que, se por um lado, há desertos físicos, como as ocasiões de retiro, há desertos espirituais que enfrentamos dia após dia, quando nos sabemos sós, no meio da sociedade, tantas vezes no seio da família, na própria paróquia e em nossos ambientes de trabalho. Dia após dia, é possível configurar-se a Jesus, indo em busca de si mesmo, e, na companhia dEle, partirmos, sempre em oração para o nosso interior. A primeira missão, pois, é conhecer-se. E, para isso, é necessária a devida disponibilidade à oração. Sobre a oração, pudemos nos aprofundar na resposta que demos anteriormente. Conhecer-se já não é mais um caminho que trilhamos sozinhos, mas com a presença de Cristo, presente no deserto, lugar de sua vitória sobre os demônios.

Note-se ainda um simbolismo fortíssimo no tocante ao deserto: esse é o lugar para onde foi enviado Adão, segundo as Escrituras, quando pecou contra Deus. Adão faz uma missão às avessas. É expulso, enviado para fora. Jesus, ao adentrar pelo deserto é como se lançasse um grito em busca de Adão, o Adão que está nele. Se os caros irmãos lerem o capítulo III do Evangelho de Lucas, verão ali uma genealogia de Jesus, que culmina em ... Filho de Adão. Não é à toa que, em Marcos, Jesus, sendo Filho de Deus (e assim o testemunha o centurião romano aos pés da cruz), de maneira tão clara e repetitiva se diz o Filho do Homem. Ao buscar-se, ao buscar o Pai, ao buscar estar em si, consigo mesmo, ao se expor à tentação, Jesus realiza algo que parece desapercebido: ele vai em busca de sua raiz humana, Adão. Vejamos: aqui já se inicia um processo missionário. A missão de Jesus vai se desvelando quando ele vai em busca do homem perdido. De fato, Jesus traz Adão em suas memórias mais subjacentes, e indo para dentro o encontra.

Trocando esse fato em miúdos: na tentação do deserto, Jesus encontra tudo aquilo que devora o homem por dentro, Jesus experimenta tudo aquilo que o homem sofre, a fome, o abandono, a impotência. Uma clara manifestação de sua identidade é a de que, ao sofrer a tentação, sofre-a justamente naquilo que Ele, enquanto Filho de Deus, poderia mudar: transformar pedras em pães, jogar-se do pináculo do templo e dedicar sua força ao inimigo, para tudo possuir. Mas, trave-se a questão, isso era justamente tudo o que o homem sonhara para se libertar de sua condição contingente. Jesus se nega a isso, porque sobrepujaria o seu ser homem e não daria ao homem o caminho para encontrar-se de verdade. Sentir, pois, o que o outro sente tem um nome em nossa língua e esse nome é compaixão. A saída de Jesus ao deserto fá-lo contorcer as entranhas, como diz o profeta Oséias, porque Adão está ali. No caso de Adão, o homem sem Deus, ou ele sucumbe à contingência sem esperança, ou sucumbe ao demônio, com suas ilusões, através de suas paixões, apegos e pecados de estimação. Assim, o segundo momento da missão se dá em função do primeiro: saber que o outro sofre as mesmas tentações que nós. Certamente, como nós, o outro cai nas tentações também e não menos cai em pecado.

Nesse ponto de percepção da missão, lembremos de Santa Teresinha do Menino Jesus, declarada pelo Servo de Deus Papa João Paulo II a padroeira das missões. O seu desejo era o de salvar as almas. Para isso, lembra-nos sua autobiografia, História de uma Alma, que queria se tornar mártir, queria saber fazer os mais belos discursos, queria mesmo ir até o outro lado do mundo para dar Jesus a conhecer aos diversos povos. Entretanto, em meio à sua inquietude (ser cristão é ser um constante inquieto, não obstante a quietude do coração em Cristo), encontra a Primeira Carta aos Coríntios, e, ao ler o capítulo 12, ela se lembra que não é possível ao homem ser tudo isso ao mesmo tempo. Assim mesmo, isso ainda lhe deixa inquieta. Quando ela termina o capítulo, no versículo 31, uma janela florida se lhe abre diante dos olhos do coração: “Aspirai aos melhores carismas. E vos indico um caminho ainda mais excelente”. E ela diz: “O Apóstolo esclarece que os melhores carismas nada são sem a caridade, e esta caridade é o caminho mais excelente que leva com segurança a Deus. Achara enfim repouso”. Mais adiante, vai dizer: “no coração da Igreja, minha mãe, eu serei o amor e desse modo serei tudo, e meu desejo se realizará”. Ser o amor... A padroeira das missões nunca precisou sair de seu mosteiro carmelita em Lisieux para assim ser reconhecida.

Essa observação cabal nos faz perceber mais um aspecto importante, que pode ser nosso terceiro ponto: a nossa missão pode se dar perfeitamente no lugar onde estivermos, desde que amemos, não como o mundo, mas como Cristo, que vai ao encontro do último em si, pois nada está fora de seu domínio.

Somente após o deserto, Jesus vai de cidade em cidade. Ele encontra alguns à beira do Mar da Galiléia e os chama para serem pescadores de homens. Para Jesus, esse simbolismo é claro. Os homens estão submersos, como peixes, vivem afogados nas águas, símbolo do desconhecido, do confuso. As águas eram os lugares que eram associados à presença de monstros. A tradição profética de Israel associa o mar à presença de um monstro terrível chamado Leviatã. Também o Apocalipse vai tratar de uma Besta que se ergue do mar. Mas Jesus os chama a pescar homens. No mar da existência, no meio das marés da vida, nas idas e vindas, em meio às esquisitices do caminho, há a imagem de Deus perdida, o homem submerso no universo de suas paixões. Ser pescador de homens é um outro símbolo bastante eficaz (o Sucessor de Pedro usa o anel de pescador): é ir às instâncias do desconhecido por amor àquele que se encontra lá, mesmo sem saber, mesmo se sentindo um peixe e não um homem. Mas o deserto já havia falado da questão do desconhecido. O importante aqui é a resposta: eles deixam tudo e seguem a Jesus. Seguir a Jesus aqui é perceber a interpelação do Pai em seus próprios corações, é aquela inquietude de Santa Teresinha, que lhe leva para mais adiante, a não se fixar nas próprias patologias, nem nas ideologias, nem nas modas, nem nas conveniências sejam de que lado venham. Aqui, é importante se notar que deixar tudo é, como dizia Santo Agostinho, “deixar tudo o que não é Deus, para encontrar o próprio Deus”. Ainda sobre o deixar, São Pedro Damião diz: “o maior peso que o homem carrega é ele mesmo”. São suas manias, seus apegos, suas paixões, suas ideologias, seus traumas, seus pecados. O apelo de Jesus aponta para deixar tudo isso, porque é simplesmente tudo isso que nos faz buscar muita coisa na vida, até mesmo dentro do seio da comunidade. Será que buscamos realmente a Jesus? Será que buscamos ser um com Ele, será que a constante tensão de vontades é voltada para Ele, para sua Palavra, seu Evangelho? Portanto, a quarta etapa de nosso itinerário é a conversão. No Evangelho de Marcos, o primeiro apelo de Jesus é: convertei-vos e crede no Evangelho.

Vejamos, pois, o exemplo de Santo Agostinho: de devasso que era, converteu-se, tornou-se bispo e formou praticamente TODA a cultura ocidental. Perguntamo-nos: isso é ser missionário ou não? No entanto, onde foi que ele encontrou bases para tudo isso. Ele diz, nos Livros das Confissões: na família (a formação e a oração de sua mãe, Santa Mônica), na Igreja (as mistagogias de Santo Ambrósio, bem como as solenes e cantadas liturgias em Milão) e no seu interior (onde se escondia aquela beleza tão antiga e tão nova, da qual havia se afastado, no deserto árido de seu exterior). Vejamos o que uma experiência viva de Deus é capaz de fazer. O homem era devasso, dado ao sexo e às modas filosóficas do século IV; esse homem moldou-se de tal forma a Cristo que conseguiu dar forma a toda a cultura ocidental, falando de si (por exemplo, nas Confissões), de Deus (Sobre a Trindade, Comentários aos Salmos, Carta a Proba e Juliana, Sermões, etc.) e da sociedade (no extenso tratado de sócio-política, Cidade de Deus, onde profetizou a queda da sociedade Romana da época). Perguntamos mais uma vez, agora, aos caros irmãos: isso é ou não ser genuinamente missionário?

Revelar a beleza nova e antiga, a beleza eterna do próprio Deus em nossas vidas, em cada uma das pequenas obras que somos capazes de realizar (e aquelas às quais também Deus nos capacita) é a missão por excelência. Bento XVI lembrava no discurso na Catedral da Sé, em 11 de maio de 2007: “a Igreja age por atração e não por proselitismo”. Estejamos atentos a isso. Essa atração se dará na medida em que, despojando-nos do que passa, ou seja, da antiga paixão adâmica, deixemos espaço para que se manifeste o brilho de Cristo em nossa história, na família, na comunidade, no trabalho, no lazer, onde estivermos. Portanto, o quinto passo que se faz necessário é o da manifestação das obras de Deus em nossas vidas, para o quê é indispensável a vigilância interior. É claro! Alcança-lo não é um processo estático, mas dinâmico, trata-se de estar com Ele, dialogar com Ele, escuta-lO, assim como Ele chamou os que Ele quis. Aliás, com relação a esse aspecto, em seu Castelo Interior ou Moradas, Santa Teresa de Jesus (Teresa de Ávila) dizia que “não avançar no que tange à vida espiritual é já retroceder”. Portanto, que ninguém se considere convertido, pois, se não estivermos em constante conversão, isso é um excelente sinal de que o processo de conversão ainda está por se iniciar. E sem conversão, não há missão, conforme o corolário que construímos acima.

Relembrando agora do momento em que Jesus chamou os Doze: eram as cidades às quais Ele mesmo devia ir. Em nosso contexto, trata-se de ter aos nossos olhos o horizonte escatológico. Sim, porque abrir ao outro os sinais evangélicos significa ser sinal de esperança para os que nos encontram. Dizia ainda Santo Agostinho: “o pior horizonte do homem é viver sem esperança ou pôr sua esperança em coisas que não podem sustenta-la”. Ser sinal de esperança é ser sinal patente de que Ele vem. O anúncio do Evangelho jamais pode ser limitado a um contar histórias, interpretar textos, muito menos reduzido a recontar nossas patologias mais diversas. Diríamos que, em maioria de nossas comunidades eclesiais, essas patologias continuam sendo recontadas, conforme temos encontrado, e isso pode comprometer profundamente o anúncio da Boa Nova. Ser sinal de esperança pede deixar tudo isso. Ser sinal de esperança é ser memorial vivo do acontecimento Cristo, em sua Encarnação, Paixão, Morte, Sepultura e Ressurreição. De fato, aquelas cidades que foram visitadas pelos discípulos viram coisas admiráveis, sinais de uma criação nova, de leis que apontam para mais além do que as leis escrutáveis da criação. O que aquelas cidades aonde Ele mesmo devia ir viram foi algo estupendo, admirável, podiam testemunhar coisas que nenhum outro povo vira. Os próprios apóstolos se admiram e dizem a Jesus: “os demônios nos obedecem”. Esses sinais, o de que nossos demônios já não precisam ser nossos chefes, mas capachos de Deus, são os sinais de que nosso mundo precisa. São acontecimentos que mostram que o mal, mesmo o nosso mal, tantas vezes indesejado por nós mesmos, mas ainda indomado, não tem a última palavra, porque a Última Palavra, por excelência, é a Primeira: Cristo.

Aliás, assim o celebramos em cada Eucaristia. A morte não tem a última palavra, mas dói, desconcerta, mata-nos por dentro, espera-nos em cada esquina da vida; a sepultura é uma certeza para a qual (que vergonha!!!) nós, cristãos, somos os primeiros a esquecê-la, e não nos iludamos, caros irmãos, mas tudo isso acontece porque não acreditamos de verdade na Ressurreição de Cristo. Acreditamos que Ele está a nosso dispor, a ser usado como bem queremos, acreditamos, não raras vezes, em um corpo reanimado pelas nossas forças, qual bezerro de ouro aos pés do Sinai. Se acreditássemos de verdade na Ressurreição de Cristo, saberíamos entrar e sair em nossa sepultura, em nosso deserto, em nossas noites, e saberíamos que não somos NADA, e, ao mesmo, recebemos TUDO, absolutamente TUDO aquilo que nos serve para uma vida que valha à pena através desse Mistério. Reflexo dessa crise de fé é o desmantelo litúrgico pelo qual passa nossas comunidades, em sua maioria.

Mas não pensemos que os apóstolos eram melhores do que nós. Aquela frase: “até os demônios nos obedecem” já era uma manifestação de vanglória. A partir do momento em que Jesus diz que “o Filho do Homem deve ser morto” (Cf. Mt 16; Mc 8; etc.), eles já não conseguem fazer milagres. Lembram do homem que tinha o filho epiléptico e que os apóstolos já não conseguiam cura-lo? Era a crise. A fé dos apóstolos, num Cristo que precisava morrer, já estava abalada.

Nesse momento, cumpre perguntar: a morte de Cristo nos escandaliza? O silêncio aparente de Deus nos espanta, nos assusta? Por que somos tão incapazes de silêncio, de uma busca de harmonia interior? O que achamos que iremos levar para o mundo se não levarmos em séria conta de nossa vida o silêncio de Deus e os silêncios que Ele nos proporciona? Jesus diz: “a boca fala do que o coração está cheio”.

A Boa Nova a ser levada aos homens de nosso tempo precisa ser vivida dentro de nós. Precisamos assumir que Cristo nos desconcerta, nos põe sempre em questão e nossas questões e desconcertos não são diferentes das dos outros homens, crentes ou não. Somente assim, poderemos encarar sem medo os desertos, os horizontes, os mares do mundo. A missão é levar essa Boa Nova em cada pequeno ambiente em que estamos, pertençamos ou não a movimentos, não porque estamos imbuídos de uma causa ou de uma ideologia, mesmo de caráter cristão, mas porque fomos marcados por aquele que nos amou primeiro. Podemos ser missionários em darmos a perceber que aqueles que vêm ao nosso encontro são amados, com aquele mesmo amor com que Cristo nos amou, no qual criou o mundo e o redimiu.

E, recuperando a nossa proposta inicial sobre a questão missão x conservação, diríamos mais uma breve palavra sobre o assunto: é preciso conservar para transmitir; caso contrário, corremos o risco de tão logo não termos mais o que transmitir. Aliás, cabe aqui perguntar: o que temos transmitido mesmo?

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Sobre o drama da homossexualidade e outros dramas hodiernos

E não é porque alguém não é homossexual que não pode inferir algo sobre algum assunto. Afinal de contas, um pode ser homossexual, outro pode ser irviolento, outro pode ser guloso, outro ainda depressivo e ainda desonesto ou ter uma outra dessas características. Ou seja, cada um tem seus dramas e sei que os homossexuais também têm os seus.

É no lidar com os próprios desequilíbrios (e isso todo homem tem) que o homem aprende a escutar os dos outros e perceber que há dramas associados a eles. Trata-se, entretanto, de observar a natureza e a essência dos seres e dar-se à verdade acerca dos mesmos, e não ficar sujeito a percepções subjetivas que só alimentam os sentidos. Aliás, o fenômeno da homossexualidade acontece unicamente dentro de uma sexualidade globalmente doente, o que também vale para certa heterossexualidade em questão. Perceba, pois, que minhas colocações sobre a homossexualidade não têm exatamente um foco apenas nela, mas na sexualidade como um todo. O problema é que a sexualidade de nossa cultura está toda doente, alimentada pelos anseios do mercado e das ideologias pós-jacobinianas, pós-marxistas e pós-niilistas, desembocando num relativismo cultural exacerbado e sem fronteiras, com apoio de uma mídia, de uma ONU e de governos por demais imbuídos dessas causas.

O problema é: posso fazer o que quero com meu corpo? Muitos aqui respondem sem pestanejar a essa questão. E as supracitadas instâncias sócio-políticas chancelam essa resposta. É o que chamamos de cultura do "politicamente correto". Mas a pergunta mais uma vez não quer calar: "posso fazer o que quero?"

A resposta reflete o quanto estamos reféns do corpo. E veja bem: não é alguém que não tem fantasias e exigências do corpo quem vos fala. Não se trata de não sentir essas coisas, seja com relação a alimento, sexo, atividade física, afetiva, etc. Não se trata de um platonismo que se mede no abandono do corpo, como se ele fosse uma prisão à alma.

Trata-se de uma subordinação necessária para que o homem encontre o seu Real: a subordinação do corpo (onde os fatos acontecem) à alma (onde as decisões acontecem). Caso o contrário se estabeleça, o homem já não é homem; é apenas um animal dotado de uma sub-razão. E o que é a sub-razão, senão a razão subordinada ao corpo. Pobre do homem: de nada lhe adianta ter uma razão assim. Seria melhor não tê-la ou mesmo ser um outro ser. Mas não é, e aí é que se encontra o problema e o desequilíbrio.

Mas e a razão? Seria dona de si mesma? Seria soberana de todas as decisões acerca do corpo? Pode ser que a razão se engane muitas vezes acerca das decisões a tomar acerca do corpo. Pode mesmo ser enganada por ele. A razão em absoluta soberania pode ser escrava de si mesma quando não da fantasia. Somente uma razão aberta e em relativa soberania é que pode seobreviver enquanto tal, sob pena de se degenerar. A razão só pode sê-la quando aberta ao Outro. Ou seja, há elementos externos que a razão necessita assimilar para ser o que foi destinada a ser.

Primeiramente, o outro está nos pais (= casal homem-mulher, objetivamente), naturais formadores da razão na criança. Mas os pais não são tudo. Há um momento em que a sociedade terá sua importância. Aí estarão a escola, a universidade, a religião, o ambiente de trabalho, a natureza. Mas isso também não é tudo. Há um momento na vida apartir do qual é necessário silenciar para que a razão assuma sua verdadeira maturidade. É verdade que para aprender algo com todas essas instâncias foi necessário silenciar e até mesmo obedecer para só depois perceber os efeitos de tal atitude. Por vezes, nossa vontade quis se impôr por causa de nosso medo de deixar de ser quem somos. Mas na realidade, só aprendemos a ser o que somos perante o outro, como diria Emanuel Lévians, ou melhor, perante o Outro.
E para que esse silêncio? Não se trata de ficar zanzando por entre as emoções, frustrações e carências de si próprio, embora também seja interesante escutá-las, mas elas ainda não têm o veredito.

Há um Nada em nós que precisa ser percebido. E ao sê-lo é que começa a aventura da maturidade. Há como que uma garganta do tamanho do universo aberta e esperando ser preenchida. Certamente esse sentimento já aconteceu quando a mãe negou uma bala na infância, ou quando uma mulher nos disse "não", ou ainda quando estivemos sem emprego ou não fomos compreendidos em nossa família ou comunidade. Mas agora já naõ se trataria de visões do Nada, mas o próprio Nada. O Nada que sou, o Nada que minha alma é, o Nada que ainda mais justamente é o meu corpo.

Essa foi, por exemplo, a compreensão de Buda ao ver aquelas imagens de um doente, de um velho e de um cadáver. Pois bem, penetrar no Nada é perceber que se é humano. Eis a Verdade sobre o homem: ele é Nada! E tudo o que seu corpo produz pode estar fadado a se dissolver em nada. Mas isso é uma visão terrivelmente desoladora. Não será por isso que nossa humanidade procura nas consolações do corpo a fuga do nada? Não será a doença da sexualidade ferida de nossos tempos um sinal de desespero? Não será o fenômeno hodierno da homossexualidade um sinal de que as próprias relações estão em crise? E assim, por diante, sexo sem prole, prole sem sexo, tudo à mercê do bel prazer do hipotálamo. Ao mesmo tempo, não será por isso que o Ocidente busca nas religiões orientais uma certa fala sobre o nada, sobre o Nirvana, que aliena dos deveres presentes, inclusive para com opróprio corpo, mas já aí distorcendo a mensagem de Buda?

Mas o nada... o nosso nada, apesar de necessário,... não é tudo. Por longos séculos, o Ocidente teve a oportunidade de aprender que nosso nada é amado. Não precisa ser explicado, não precisa ser esquadrinhado. Precisa ser assumido. Mas a capacidade do homem assumir seu nada é pequena. Nessa hora, ele está encurralado - tem de se entregar: ou ao desespero ou à fé. Pronto: agora o homem está diante de questões verdadeiramente fundamentais: ou se desespera e perde tudo o que pensava ter ou crê e entrega tudo o que ainda tem para recebê-lo ao cêntuplo...

A fé é a instância do jogar-se, de verdadeiramente abrir à razão a uma realidade que ela pode até conhecer, em certo sentido, mas jamais esuqadrinhá-la por si só. A fé, nessa hora, abre caminho para que a razão encontre seu verdadeiro sentido e mesmo seu agir honesto. Se se opta por isso, a razão agora há de se subordinar finalmente à fé.

É na fé que o homem encontra sua medida. Ele sabe que é nada, mas há agora uma diferença: seu nada é amado. E amado por quem? Por Deus? Seria assim que responderia o homem moderno? Talvez titubeasse muito em responder. Responderia facilmente que pode fazer o que quiser com o próprio corpo (na verdade, a essa altura, o corpo manda nele), mas nessa hora a resposta desaparece. Somente a fé responde. E fé é aprendida em comunidade, onde essa escuta se dá no aprendizado do amor que aí é derramado. E não é primeiramente nosso amor não. É o amor de Deus.

Mas vamos ao concreto disso tudo: o Ocidente aprendeu isso e deve tudo o que tem a uma cultura formada dentro dessa fé. Deus entrou na carne humana, assumiu nosso nada e se fez Nada. É na carne crucificada de Cristo que todas as nossas elucubrações sobre Deus se mostram pequenas, porque o aparente absurdo está ali. É exatamente o que muitos de nós afirma: não pode ser Deus ali. É justamente no aparente absurdo que se dá a graça. Cristo entra profundamente do Nada que ser humano algum deseja estar: o Nada da ausência de Deus. O homem não agüenta isso (sozinho!). ELe precisa de uma referência para continuar, mesmo que seja uma devoção, mesmo que seja uma idéia de Deus, mesmo que seja a razão fechada em si, mesmo que seja a natureza, mesmo que seja o corpo. Deixar tudo só é possível se o Impossível acontecer: Deus entrar na história de maneira radical e indelével.

Tudo isso é para dizer que nossa cultura, fechada sobre a razão e já mesmo sujeita ao corpo e suas fantasias perde seu sentido de ser, se não se abre ao Espírito, a um Sopro que não nos pertence, mas nos conhece e nos ama mais do que nós a nós mesmos. A doença da sexualidade, onde se encontra o hodierno fenômeno das ideologias de gênero (?!?), bem como de toda a nossa cultura está em não dar espaço a Ele.

É por essas e outras que a Igreja, desde seu fundamento, que é Cristo, passando pela sua doutrina, sua Tradição, seu magistério, seus membros hierárquicos até seu povo, simples cristãos, que no dia-a-dia procuram dar testemunho do Amor que gera e regenera o homem, não cessa de dizer isso: "é pela sua graça que somos salvos!" Só por Ele, somente com referência a Ele, encontramos a medida do homem e a cura. Pode ser que ainda a vida de cada um de nós esteja em processo de cura, mas a esperança é que a move, dia após dia.

Pérolas de Bento XVI (2) - O Discurso Escatológico de Jesus

Depois de lembrar das imagens apocalípticas que se seguem à destruição do Templo, Bento XVI nos lembra de que Jesus relativiza os acontecimentos cósmicos, centralizando-os na esfera pessoal:



" 'O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão' (Mc 13,31). A palavra é um quase-nada quando confrontada com o poder do universo material, é um sopro momentâneo na grandeza silenciosa do universo; pois bem, a palavra é mais real e duradoura do que todo o mundo material. É a realidade verdadeira e merecedora de confiança, o terreno firme sobre o qual podemos apoiar-nos e que permanece inclusive com o escurecimento do Sol e a queda do firmamento. Os elementos cósmicos passam; a palavra de Jesus é o verdadeiro 'firmamento' sob o qual o homem pode estar e permanecer."

Jesus: nosso céu, nosso único céu, nosso tudo, nosso mais que tudo.


Pérolas de Bento XVI (I) - sobre o zelo de Jesus no Templo

Na obra "Jesus de Nazaré", um fato essencial para a compreensão da mesma é o significado da expulsão dos vendilhões do Templo, sua purificação e posterior destruição. Tudo isso porque Jesus é o novo Templo que é instaurado pelo Pai, onde se oferece o único e verdadeiro sacrifício. Houve, na Teologia e na Exegese quem O identificasse com um zelota, movimento cuja origem concreta remonta a Matatias, no tempo da invasão selêucida, de Antíoco Epífanes, quando instaurou um culto idolátrico em Jerusalém.



Assim, "o termo 'zelo' (em grego: zelos) foi a palavra mestra para exprimir a disponibilidade de se empenhar pela força em favor de Israel por meio da violência."

"Jesus deveria ser colocado nesta linha do zelos segundo a tese de Eisler e de Brandon, tese esta que, nos anos 60, suscitou uma vaga de teologias políticas e teologias da revolução. Agora, como prova central dessa teoria, apresenta-se a purificação do templo, que teria sido evidentemente um ato de violência, porque sem violência não seria possível realizar-se, embora os evangelistas tenham procurado escondê-lo. A própria saudação dirigida a Jesus como filho de Davi e instaurador do Reino de Davi teria sido um ato político e a sua crucifixão por obra dos Romanos sob a acusação de "rei dos judeus" demonstraria plenamente que Ele fora um revolucionário - um zelota - e como tal fora justificado."

"Entretanto, foi-se acalmando a vaga das teologias da revolução que, com base num Jesus interpretado como zelota, tinham procurado legitimar a violência como meio para instaurar um mundo melhor: o ' Reino'. Os terríveis resultados de uma violência por motivos religiosos encontram-se, de modo bem drástico, diante dos olhos de todos nós. A violência não instaura o Reino de Deus, o reino do humanismo; pelo contrário, é um instrumento religioso preferido pelo anticristo, por mais motivada que possa ser no plano religioso-idealista. Não aproveita ao humanismo, mas sim à desumanidade".

(...)

"No justo sofredor, a recordação dos discípulos reconheceu Jesus: o zelo pela casa de Deus leva-O à Paixão, à Cruz. Esta é a reviravolta fundamental que Jesus deu ao tema do zelo. Transformou no zelo da cruz o "zelo" que queria servir a Deus através da violência. E assim erigiu definitivamente o critério para o verdadeiro zelo: o zelo do amor que se dá. Segundo este zelo é que o cristão se deve orientar; está aqui a resposta autêntica à questão sobre o zelotismo de Jesus."