Gostaria de já ter enviado essa mensagem a todos vocês, trazendo a boa nova da paz, já na Semana Santa, mas não foi possível. De qualquer maneira, como a Páscoa apenas começou no Domingo da Ressurreição (4 de abril) e segue até o Domingo de Pentecostes (esse ano, 23 de maio), esta hora, este momento ainda é muito propício para desejar a todos uma Feliz e Santa Páscoa.
Para o comércio, entretanto, para a mídia e para quem não sabe o que está celebrando, a Páscoa já acabou. Mas a Páscoa é um acontecimento tão grandioso, tão sublime, tão estupendo, tão além das nossas concepções, que não tem como ser vivida em um dia apenas. Precisa ser ruminada, saboreada, apreciada, contemplada. Nosso mundo é um mundo de alienação dos sentidos. Come-se, bebe-se, transa-se, cumprimenta-se, cala-se, fala-se, diverte-se, trabalha-se, até mesmo se reza, sem se saber o motivo e o sentido profundo de cada realidade. De que nos falam, a que nos motivam? Tudo é banal. “Tudo é vaidade” (cf. Ecl 1,1). Na realidade, já se tem uma profunda alienação do próprio homem. Que dizer, então, com relação a Deus e à espiritualidade?
Há muitas visões acerca desse Deus tão falado e tão pouco conhecido. Esse Deus enviou seu Filho, do qual fala o Evangelho de João, escutado no dia de Natal: “No princípio era o Verbo; o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. (...) E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,1.14). Atenção aos dualistas: carne, dentro da cultura de João, significa o homem todo em sua fragilidade, e não apenas corpo material, como alguns poderiam pensar. Assim, o texto diz que o Filho de Deus, Filho na essência, gerado eterna e misteriosamente de Deus Pai, tão Deus quanto Ele, mas gerado, tendo o Pai como fonte de sua pessoa (Filho, portanto), se fez homem. Não brincou de ser, nem fez de conta que foi homem, em tudo: no choro de bebê nos braços da Virgem Maria, na pobreza, nas suas andanças em busca de trabalho junto com José, no conhecimento da oração e da Palavra de Deus, na sua exultação por ser aos simples reservada a verdadeira alegria, na sua proximidade com os homens, fazendo-lhes o bem e curando a todos os dominados pelo mal (abriu os olhos aos cegos, libertou os cativos de suas prisões, fez surdos ouvirem e mudos falarem, deu sentido à vida de muitos, fez coxos andarem, revivificou mortos), assumindo seu papel na sociedade de seu tempo (denunciou as injustiças, de modo particular a falsa religiosidade dos líderes religiosos), chorou, sofreu a dor da traição, do abandono, morreu vergonhosamente. A única realidade não vivida de per si foi o pecado, alienação de Deus. Sim, pois seu alimento era fazer a vontade do Pai. Entretanto, tendo entrado profundamente na realidade humana, assumiu em si as dores desta realidade, desde o choro de bebê, até a morte. Kenosis é a palavra que resume tudo isso (cf. Fl 2, 6-11), ou seja, total humilhação de sua condição divina, no ocultamento sob a condição humana. Mas foi assim, esquecendo-se de si, que deu a verdadeira consolação a todos os que dela necessitavam, porque sentiam o peso de ser gente. Jesus experimentou essa carga inteirinha porque não veio para ser servido, mas para servir e entregar a sua vida por causa de muitos. Esse gesto foi profundamente simbolizado no lava-pés (cf. Jo 13, 1-15), na ocasião em que instituíra a Eucaristia (i.e. Missa), sacramento de sua entrega por causa de nós, a mesma entrega que fez de toda a sua vida e de todo o seu tempo para simplesmente amar e servir. Ali temos realizado continuamente esse grande mistério.
Mas não se esgota aí. Jesus morreu, de fato. Mas o que significa isso. Esse gesto de profundo serviço (lavou os pés de toda a humanidade) e de infinito amor (entregou a sua vida por causa de muitos) foi um tanto que banalizado e, por Jesus ser Deus, não se esgota no fato de simplesmente terem se esgotado suas funções vitais. A morte de Jesus é o momento em que ele entrega seu Espírito ao Pai (cf. Lc 23, 46; Jo 19, 30). O que ou quem é o Espírito?
O Espírito é o vínculo que une o Pai ao Filho. É por onde o Pai gera o Filho, por onde o Filho jamais se vê dissociado do Pai, nem o Pai do Filho. O Espírito é o ambiente em que o Pai é Pai, e o Filho é Filho. Segundo outras comparações, é como que o útero de Deus, onde eternamente o Pai gera o Filho. E, no Espírito, o Pai só é Pai porque gera, e é a única coisa que sabe fazer, o resto é conseqüência; e o Filho só é Filho porque é gerado, se deixa envolver pelo Pai, se alegra com o que ouve e recebe do Pai e se alimenta de realizar a sua obra. Só Jesus é Filho por essência e excelência. Fora disso, o Pai, o Filho e o Espírito perdem sua identidade.
O que chama a atenção nessa visão trinitária de Deus é que em todas as pessoas divinas circula uma só realidade: a doação de si - o amor. O Pai se dá ao Filho, e o Filho se dá ao Pai; o Espírito é a entrega de cada um, conforme a Igreja professa: “creio no Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho” (Credo Niceno-constantinopolitano). Por isso, João pode dizer: “Deus é amor” (1Jo 4,16). Quando Jesus morre (= entrega seu Espírito), Jesus assume a condição dos sem Deus, dos pecadores, já que o pecado é essa alienação de Deus. Mas isso é uma ruptura. Será possível? O amor foi até o absurdo de amar? Sim, é por isso que João diz: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). Mas será que esse amor é capaz de ir até o absurdo: uma morte em Deus? Não uma morte de Deus, mas em Deus, Porque o vínculo do Pai e do Filho já não estava mais com o Filho, e o Filho já não parecia mais Filho. Também desse modo, que dizer do Pai? Como pode, tal desolação ocorrer no seio do próprio Deus? Quando Jesus se tornou o último de todos, o pecado do mundo (o meu, o seu, o de todos) marcou as próprias relações em Deus. Que mistério!
No entanto, Deus é amor e não pode negar sua paternidade. O Pai não se cansa de gerar, o Pai faz de tudo para estar em profunda relação com o Filho. Quem ama, diz: “quero que vivas”. Pense num parente amado que já partiu e qual foi a sua sensação. Só que você não pode trazê-lo de volta. Deus pode infinitamente mais pelo Filho. Não se cansa de gerar. Infunde seu Espírito no Filho para que ressuscite, não mais com uma vida perecível, mas com uma vida que não possa sofrer mais as conseqüências da fragilidade humana, uma vida na qual só a voz de Deus fala: “vive”. E Deus fala isso eternamente ao seu Filho. Sim, o Filho foi ressuscitado dos mortos. Era o ponto fraco de Deus: ele queria sempre ser chamado de Papai. Mas como o Filho veio ao encontro do último de todos os homens, ele, na companhia do Filho, ressuscitou também. Deus quis ser chamado de Papai, por esse também. Esse sou eu, é você, todos os que, batizados, ou seja, mergulhados nas águas da Morte e Ressurreição de Cristo, podem chamar a Deus de Pai, e, não-batizados, têm uma abertura para uma nova relação com o Deus vivo.
“Ó Deus, quão estupenda caridade vemos no vosso gesto fulgurar: não hesitais em dar o próprio Filho, para a culpa dos servos resgatar!” (Precônio Pascal)
Somos felizes, porque, órfãos neste mundo, temos um Pai eterno, que nos ama assim: de uma maneira que ninguém é capaz de nos amar, entregando sua única riqueza por nós. Este é o sentido da Páscoa: o Pai de Cristo se tornou nosso Pai; o Deus de Cristo se tornou nosso Deus. Ele nos gerou. Medite sobre isto, porque este ó sentido da Páscoa da Morte e Ressurreição de Cristo Jesus. A ele, a glória, pelos séculos. Amém!
E assim, neste sentido, reitero meu desejo de uma Feliz e Santa Páscoa para todos vocês.
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